Hikikomori. O mundo dentro de uma sala

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30 Novembro 2021

 

O mundo de Matteo está todo dentro de uma sala, porque Matteo se retirou da vida social, decidiu voluntariamente não ir mais à escola, interromper todas as relações e atividades, e viver recluso na sua toca doméstica, passando o tempo na frente da tela do seu computador e na companhia dos videogames.

 

A reportagem é de Tina Simoniello, publicada em La Repubblica, 25-11-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Sara, educadora chamada pelo colégio do jovem e pelos serviços sociais, tenta ajudá-lo. O desafio é complicado: Matteo, de 17 anos, precisa voltar ao colégio em três meses para não perder de novo o ano letivo. Depois de uma série de encontros, com tenacidade, paciência e competência, Sara consegue romper a solidão de Matteo, e o rapaz volta ao colégio.

 

Mas o sucesso da intervenção foi questionado pelo passo em falso da mulher. Exceto pelo fato de Matteo ter feito uma descoberta sobre a vida de Sara que ainda pode evitar o fracasso de ambos.

 

Essa é a trama do curta-metragem “Ho tutto il tempo che vuoi” [Tenho todo o tempo que quiser], uma história intensa de dor e esperança que, em 26 minutos, conta a relação entre um adolescente hikikomori – o termo é japonês e indica quem optou por se retirar da vida social, atingindo níveis extremos de isolamento e que, na Itália, se estima que diz respeito a cerca de 100.000 jovens – e uma mulher, uma profissional, que tenta ajudá-lo a se reinserir no mundo.

 

 

O filme é dirigido por Francesco Falaschi (“Quanto basta”, “Emma sono io”), que o coescreveu com Alessio Brizzi, e é produzido pela Associazione Culturale Storie di Cinema, em colaboração com a Rai Cinema, com a contribuição da COeSO Società della Salute de Grosseto. No papel de Matteo, está Luigi Fedele (“Io ti cercherò”, “Quanto basta”) e, no de Sara, Cecilia Dazzi (“La Porta Rossa”, “Habemus Papam”).

 

“Ho tutto il tempo che vuoi”, que já recebeu uma dezena de prêmios e reconhecimentos, está disponível a partir de 27 de novembro no Raiplay por ocasião do 5º Dia Nacional sobre as Dependências Tecnológicas e o Ciberbullying. A Rai Pubblica Utilità o tornará acessível para as pessoas com deficiência visual e auditiva por meio de audiodescrição e legendas.

 

“Tínhamos o objetivo e a exigência de jogar luz sobre uma prática tão delicada e atual quanto perigosa pela sua difusão entre os muito jovens”, diz Falaschi, que, além de ser diretor e roteirista, é também professor de literatura em uma escola secundária de Grosseto.

 

“É necessário – acrescenta – fazer campanhas de sensibilização sobre as condições ou os problemas sociais ou psicológicos, também com o cinema e o audiovisual, sempre se documentando: porque as imagens não sabem apenas dar emoções, mas também estimulam a curiosidade e o interesse pelos fenômenos dolorosos. E o curta-metragem, nesse sentido, é um instrumento particularmente útil.”

 

Ansiedade social, medo do julgamento e vergonha

 

Hikikomori é um desconforto adaptativo descrito e observado pela primeira vez no Japão. “Hoje ele não é codificado como psicopatologia, mas como síndrome social”, explica Marco Crepaldi, psicólogo presidente e fundador da associação Hikikomori Italia. “Usamos a palavra fenômeno para defini-lo, mas – acrescenta o especialista – a patologia é evidente: estamos falando de uma forma de isolamento social peculiar, diferente dos outros, que tem como pedra angular a ansiedade do julgamento, a dificuldade de adaptação ou a vergonha por não conseguir se adaptar.

 

Gostaríamos que fosse reconhecido como psicopatologia, porque, nas suas versões extremas, é uma psicopatologia: o hikikomori grave se isola de todos, até mesmo dos pais, da web. Há jovens que não falam mais com os familiares nem se comunicam com outras pessoas na internet. Existe um potencial desvio profundamente psicopatológico do hikikomori, que tem riscos depressivos e suicidas. Na Itália, estimamos que cerca de 100.000 adolescentes e jovens adultos podem ser afetados pelo hikikomori, considerando-se todas as formas, e pelo menos 75-80% são do sexo masculino, embora na nossa experiência até 90% deles sejam homens.”

 

O perfil do hikikomori

 

No Ensino Fundamental e Médio, quando as competências relacionais são necessárias para a integração com os pares, os hikikomori não se integram, a ponto de abandonarem todas as atividades. É como se, em certo ponto, dissessem: “Chega, cansei de jogar, vocês continuam, eu saio de campo”.

 

“Na realidade, a metáfora do jogo descreve bem a situação”, continua Crepaldi. “Esses jovens ‘abandonam o campo’ porque têm funcionamentos sociais diferentes, porque talvez sejam tímidos ou são talentosos demais. Os motivos são muitos, mas, de todos os modos, estão ligados ao medo do julgamento e à ansiedade social, ao medo de ser rotulado como diferente e à sensação de não ‘se sentirem parte’.”

 

Quando é preciso se preocupar

 

O hikikomori, como muitos distúrbios psicológicos, é um continuum que vai desde uma condição moderada – na qual a pessoa tem dificuldades de relacionamento, mas continua indo à escola e tem alguns amigos – até uma condição em que a pessoa não é mais capaz de se relacionar com os outros, e então começa a abandonar tudo: primeiro as atividades extraescolares e depois a escola.

 

“A evasão escolar quase sempre é o sinal de alerta das famílias, que só então se mobilizam. Mas os sinais existem antes da recusa da escola: são a tendência de ficar em casa, de passar muito tempo no computador, principalmente nos videogames, de ficar acordado à noite e de dormir durante o dia. Quando os pais captam esses sintomas, eles devem começar a se interrogar e a refletir, junto com a escola, sobre a possibilidade de um caminho didático alternativo, que não inclua necessariamente a presença em sala de aula e que evite que o jovem acabe em um estado de burnout e de recusa definitiva da educação. Esta não é ditada pela falta de vontade de estudar – especifica Crepaldi –, porque muitas vezes os hikikomori também tem bons resultados escolares. O fenômeno dos hikikomori diz respeito muitas vezes a filhos de pais com boas carreiras e com altas expectativas de realização social e escolar para os filhos ou até mesmo laboral. É preciso dizer que o hikikomori diz respeito também a jovens adultos, às vezes até à adultos: há casos de homens que viveram durante décadas isolados em casa, totalmente dependentes das famílias.”

 

Mães presentes e pais nem tanto

 

Por falar em famílias, parece que os jovens hikikomori têm um padrão comum, tanto na Itália quanto no Japão e no Ocidente em geral. “Nos contextos familiares desses jovens, existem elementos que, embora nem sempre estejam presentes, se repetem”, retoma o psicólogo. Por exemplo? “Mães muito presentes, ansiosas e com tendência à apreensão e que às vezes se tornam excessivamente exigentes em relação aos objetivos do filho. Pais mais fracos, figuras mais rarefeitas, que não conseguem se relacionar com o filho, que tendem a se tornar marginais e a delegar, e que, quando surge o problema, não sabem como ajudar: dos mais de 3 mil familiares que contataram a nossa associação e que fazem parte dos nossos grupos de autoajuda para pais que organizamos gratuitamente em toda a Itália, as mães são quase a totalidade. Muitos núcleos familiares são constituídos por uma mulher – a mãe – e por um homem – o hikikomori.”

 

O papel da internet e o ciberbullying

 

Existe a tendência de associar o isolamento social à dependência da internet, mas como os dois fenômenos estão relacionados? “A partir dos estudos disponíveis hoje, podemos deduzir que a internet não é a causa do hikikomori. Mas a rede pode ter um papel, que pode ser negativo ou positivo: positivo quando permite que esses jovens mantenham contato com o mundo; negativo quando instaura uma dependência muito forte, principalmente dos videogames, o que pode agravar a situação. Para não pensarem e não passarem o tempo ruminando sobre os seus sofrimentos, os jovens acabam se jogando no mundo do videogame e passando todo o dia todo nele, tornando-se viciados. Mas o videogame não pode ser considerado a causa primária, no máximo uma consequência ou uma comorbidade do hikikomori, e, se eu resolver o problema da dependência do videogame ou da hiperconexão à internet, eu não resolverei a causa do mal-estar que está a montante e que é outra”, explica Crepaldi. “O bullying, por outro lado, mesmo na sua versão ciber, muitas vezes é uma causa concomitante dessa forma de isolamento voluntário.”

 

O impacto negativo da Covid

 

Antes da pandemia, o comportamento dos hikikomori era claramente anômalo aos olhos da comunidade e dos familiares, mas as necessárias estratégias implementadas para conter os contágios podem ter atenuado a atenção midiática e social sobre o desconforto: simplificando, a Covid pode ter mascarado e encoberto o fenômeno hikikomori. É assim mesmo?

 

“A Covid tem efetivamente favoreceu uma diminuição da tensão por parte das famílias, dos jovens e da mídia, que pode levar a um agravamento e a uma cronicidade incontestáveis do fenômeno”, explica e confirma o psicólogo. “E também a um aumento dos casos: muito mais pessoas – falamos naturalmente daquelas com predisposição – experimentaram um alívio da pressão com o EaD ou com o trabalho remoto, concluindo que eles, em casa, estão melhor. Pois bem, tudo isso corre o risco de levar ao aumento dos casos de hikikomori ou de favorecer a sua cronicidade. Porque é preciso dizer que, quando falamos de hikikomori, não estamos falando sempre de uma fase transitória da vida: essas pessoas primeiro se retiram voluntariamente do mundo e depois, se não houver intervenção, não conseguem mais sair, correndo o risco de formas de depressão importantes e perigosas. No Japão, há homens isolados há décadas, e também na Itália temos casos de homens em casa há mais de 10-15 anos”, diz Crepaldi.

 

O que pais e mães podem fazer ou não

 

Mas os genitores estão confusos, não sabem muito bem como lidar com a situação e muitas vezes acabam piorando, geralmente usando a cenoura ou o bastão, dependendo do momento, e ficando muito frustrados. O que podem fazer? Em suma, o que significa “intervir”?

 

O primeiro objetivo é serem percebidos como aliados. Por isso, os genitores devem evitar aumentar a pressão sobre os filhos e não os forçar a fazer o que não querem ou não conseguem fazer, até mesmo voltar à escola. “Isso é contraintuitivo, porque é claro e provavelmente natural que quem tem um filho de 15 ou 16 anos que abandona a escola se sinta no direito e até mesmo no dever de forçá-lo a voltar, mas esse comportamento corre o risco de romper a aliança entre genitor e filho, e de favorecer a sua fuga também do próprio genitor, além do restante”, alerta o psicólogo.

 

E então? “Então, o adulto tem que parar e entender que o filho está nessa condição porque sentiu uma pressão sobre si mesmo e que essa pressão se tornou excessiva. E, depois, tem que tentar se encontrar com a escola, que deve aprender a se mostrar sensível a esses temas. Trata-se de um caminho alternativo que é muito possível de ativar: pode ser o EaD, o homeschooling. Ao mesmo tempo, é preciso tentar dar origem a uma relação íntima com o jovem, mesmo que seja difícil, porque os filhos raramente falam com os genitores com intimidade. Por outro lado, impedir que os jovens usem a internet não faz sentido: temos histórias de genitores que destruíram computadores e de filhos que responderam com a violência até mesmo contra si mesmos. Ao invés disso, faz sentido se dirigir a um psicólogo. Se o jovem se recusar a ir, há também uma rede de educadores, formados nos desconfortos sociais, que vão em casa para se encontrar com o jovem. Ao mesmo tempo, os adultos podem trabalhar sobre si mesmos.”

 

Trabalhar sobre si mesmo

 

Sim, porque, se um adolescente ou um jovem adulto está em um estado tão doloroso e debilitante, não é absolutamente óbvio que se trata de um problema apenas dele. Pode ser também uma questão de contexto.

 

“Certamente, pode haver comportamentos disfuncionais dentro da família. Então, os pais também devem recorrer a especialistas. Nós, como associação, temos grupos de genitores apoiados por psicólogos em toda a Itália. Em primeiro lugar, porque são os genitores que pedem ajuda, os filhos não pedem. Segundo, porque, trabalhando com mães e pais, é possível melhorar a condição dos filhos. Mas, se o ideal é se dirigir a um psicólogo ou a um psiquiatra que conhecem o transtorno, isso nem sempre acontece: os genitores se encontram diante de percursos de apoio falimentares ou custosos: no âmbito da saúde mental, o Estado não ajuda, e nem todos podem se dar ao luxo de custear psicólogos em longo prazo.”

 

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