Mães que ao retornarem para seus lares, após longa e extenuante jornada de trabalho, encontram nada mais do que a brutal morte de seus amados filhos. Muitos criados com enorme dificuldade, sem o apoio dos pais ou ainda em meio à tão presente violência doméstica. Com os corpos dos filhos cravejados de bala, choram inconsoláveis como Maria ao pé da Cruz. O grito preso na garganta se une à confusão de Jesus diante da angústia do mal: meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?
O artigo é de Gabriel dos Anjos Vilardi, jesuíta, bacharel em Direito pela PUC-SP e bacharel em Filosofia pela FAJE. É mestrando no PPG em Direito da Unisinos e colabora no Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Apenas em junho de 2016 a Igreja reconheceu, por desejo do Papa Francisco, Maria Madalena como apóstola dos apóstolos, instituindo a sua festa no calendário litúrgico. Infelizmente, como reconhece a grande teóloga Ivone Gebara, “as teólogas feministas têm repetido o mesmo refrão em relação ao lugar das mulheres na instituição eclesial e em relação aos (...) conteúdos patriarcais que privilegiam o rosto de Deus como masculino e excluem da real cidadania nas Igrejas as mulheres” [1]. Essa escandalosa realidade de violência contra as mulheres tão presente no cristianismo hierárquico, não é diferente no Brasil das periferias. O Jesus Misericordioso parece dar lugar ao Deus dos Exércitos.
Sem nunca ter se confrontado com suas causas estruturais de desigualdade, fundadas na escravidão e no latifúndio, o país segue ansiando por esquecer seu passado. Esse insano desejo de apagar suas dores históricas, como o exemplo mais candente do presidente Lula de proibir a memória dos 60 anos do golpe civil-militar, apenas posterga para o futuro as feridas não curadas. As consequências são terríveis e continuam assolando impiedosamente de algum modo toda a sociedade, como a muito instigada tentativa de golpe, em 8 de janeiro de 2023.
Práticas contumazes e amplamente utilizadas nos calabouços dos sombrios quartéis e prisões políticas, a tortura e a execução permanecem como instrumentos de subjugação e opressão do Estado. Mas quem são as vítimas submetidas, em pleno século XXI, a ações tão abjetas como essas? Só podem ser aqueles mesmos corpos disponíveis para o trabalho análogo à escravidão nas fazendas do agronegócio, para o subemprego explorado pela religiosa classe média suburbana e ainda para a objetificação sexual do patriarcado dos brancos de bem. Corpos de segunda classe, baratos, matáveis. Os corpos negros e indígenas das periferias empobrecidas do país ainda tão profundamente injusto.
Como há muito tempo, é provável que desde o começo da colonização dessas terras, os habitantes das periferias são constantemente humilhados pela elite que se julga dona de Pindorama. O Estado tem servido como uma extensão desse projeto de domínio das vidas subalternizadas. E às forças de segurança, especialmente as Polícias Militares, cabem o trabalho sujo. Para tanto, herdaram toda a truculência tão bem exercitada nos períodos autoritários pelos quais passou o Brasil, como a longa noite de 1964 a 1985.
Uma polícia mal treinada, sem uma remuneração razoável e com poucas condições dignas de trabalho. Em um ambiente tão precarizado, só se poderia reproduzir aquilo que há de pior e mais entranhado no Estado, o racismo estrutural. Os corpos negros e indígenas estão em perigo. Ações corriqueiras de quaisquer jovens brancos são impensáveis ou arriscadas demais para um jovem negro ou indígena. Os índices de violência policial são alarmantes! Suas mães vivem em estado de tensão, quase sempre à espera do pior. Para além das diárias humilhações, agressões físicas e prisões arbitrárias que lotam os cárceres, o assassinato cruel paira em um horizonte muito próximo.
E na maior e mais rica unidade da Federação, São Paulo, o terror policial não tem dado trégua. Do final de julho do ano passado até o início de setembro, foi realizada pela Polícia Militar, na Baixada Santista, a Operação Escudo, como uma reação à morte do soldado Patrick Bastos Reis, pertencente às Rondas Ostensivas Tobias Aguiar (Rota). Em meio a execuções em série e denúncias de inúmeras ilegalidades foram assassinadas 28 pessoas. Representantes da Comissão de Direitos Humanos da OAB, da Assembleia Legislativa de São Paulo, da Defensoria Pública, da Ouvidoria de Polícia, do Conselho Estadual (Condepe) e Nacional (CNDH) de Direitos Humanos recolheram as denúncias e cobraram das autoridades as devidas responsabilizações.
Todavia, parece não ter sido suficiente. No dia 2 de fevereiro desse ano, após a morte de outro membro da Rota, Samuel Wesley Cosmo, foi desencadeada nova mobilização policial, agora nomeada de Operação Verão. Até a tarde do dia 27 de março já foram contabilizadas 54 mortes. Somando as duas reações policiais os mortos passam de 80 pessoas. Isso sem mencionar as ameaças e o clima de terror imposto às comunidades, com abusos de todo tipo.
Os resultados? Medo e humilhação, injustiças e perseguições, vidas ceifadas em meio a crianças órfãs e famílias destruídas. E ainda assim, fevereiro foi o mês mais violento em Santos desde 2013. Já no ano de 2023 houve 38% mais mortes de policiais em serviço do que no ano anterior e aumento de 63% de mortes por suicídio dos agentes de segurança. Além do abalo na saúde mental de milhares de policiais, não houve melhora alguma nos índices de criminalidade.
Essas citadas operações não são casos isolados, mas ilustram um padrão de comportamento adotado pelo governo Tarcísio de Freitas, com as chamadas “operações vingança”. O velho modelo “bandido bom é bandido morto” adotado pela direita raivosa. Apenas no primeiro bimestre de 2024 dobrou o número de mortos por policiais no Estado de São Paulo, chegando à chocante cifra de 147 pessoas. E para quê?
Mães que ao retornarem para seus lares, após longa e extenuante jornada de trabalho, encontram nada mais do que a brutal morte de seus amados filhos. Muitos criados com enorme dificuldade, sem o apoio dos pais ou ainda em meio à tão presente violência doméstica. Com os corpos dos filhos cravejados de bala, choram inconsoláveis como Maria ao pé da Cruz. O grito preso na garganta se une à confusão de Jesus diante da angústia do mal: meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?
De acordo com o “2º Relatório de Monitoramento de Violação de Direitos Humanos na Baixada Santista Durante a Segunda Fase da Operação Escudo”, produzido por entidades defensoras dos direitos humanos, entre elas a Comissão Arns, foram constatadas gravíssimas violações de direitos por parte da Polícia Militar do Estado de São Paulo, entre elas, execução sumária, tortura, omissão de socorro, ameaça às comunidades, obstrução proposital das câmeras corporais e fraude processual com alteração do local de crime. Condutas criminosas inaceitáveis por parte de quem deveria proteger a população, não a exterminar!
Mesmo diante de tamanha barbárie os órgãos de controle da atividade policial, tais como o Ministério Público Estadual e a Corregedoria de Polícia, dificilmente avançam nas investigações necessárias. O Poder Judiciário é pouco sensível a essa situação. A impunidade nesses casos é quase certa. A grande mídia pouco repercute os fatos, afinal não passam de meros “bandidos mortos em confronto policial”. Quem está realmente preocupado com garotos negros de comunidades empobrecidas?
Dentre as recomendações elencadas pelo supracitado relatório estão a adoção de um rígido protocolo que previna “operações de vingança”, o uso obrigatório de câmeras corporais e o fortalecimento da Comissão de Mitigação de Risco da PM, com a revisão de procedimentos e o investimento na formação. Seriam suficientes? Já não passou da hora de medidas mais radicais para enfrentar a epidemia de violência policial que impera país afora?
Com desfaçatez, o governador de São Paulo agiu como Pilatos e com arrogância e irresponsabilidade “lavou as mãos”. Quando confrontado pela imprensa com a iniciativa das entidades pró-direitos humanos de levar as denúncias para a ONU, respondeu com um revelador “não tô nem aí”. Sim, é simbólico a anuência das altas esferas governamentais ao extermínio deliberado dos corpos executáveis da sociedade.
Tristemente, os governos de esquerda não escapam à regra. A Polícia Militar da Bahia, estado governado pelo PT desde 2006, é uma das mais violentas do Brasil. No ano passado foram mortas 1.689 pessoas em ações policiais no governo de Jerônimo Rodrigues (PT), número recorde na série histórica. Trata-se do estado com o maior número absoluto de assassinatos, a frente inclusive do Rio de Janeiro, sob forte influência das milícias.
Qual a proposta da esquerda para a segurança pública? Até quando se permitirá que o discurso da extrema-direita continue encontrando eco em parte da população, sem sequer ser enfrentado com alternativas viáveis? Não se deveria extinguir definitivamente as Polícias Militares e apostar no policiamento comunitário, aliado a um amplo conjunto de políticas públicas para coibir as desigualdades sociais? É crível que ainda exista a Justiça Militar Estadual para julgar os policiais militares, com uma atuação corporativista? Infelizmente as forças progressistas parecem perdidas nessa seara. Falta visão, ousadia e assertividade.
Mais fácil repetir emboloradas e estéreis respostas como as multidões que pediram a crucifixão de Jesus. Em dezembro passado o governo Lula sancionou, depois de um acordo no Senado com o bolsonarismo raiz, a Lei Orgânica das Polícias Militares (Lei 14.751/2023). Segundo especialistas, o diploma legal reproduz trechos do anacrônico decreto-lei 667 de 1969, agora sob um malfadado verniz democrático. Não houve sequer discussão com a sociedade civil e se perdeu uma excelente oportunidade de reformar as forças de segurança pública, hoje grandes inimigas de uma maioria explorada da população brasileira.
Em meio ao silêncio ensurdecedor dos abusos policiais contra pessoas negras e pobres, aceito por uma opinião pública indiferente e anestesiada, as mães dessas vítimas continuam a descer da Cruz os corpos massacrados dos seus filhos. Mesmo violentadas até a alma por um Estado autoritário que deseja lhes amordaçar, essas mulheres têm se unido e levantado a voz para denunciar os crimes contra os seus jovens.
Grupos como o Movimento Independente Mães de Maio, as Mães de Manguinhos e o Núcleo de Mulheres Vítimas da Violência do Estado têm se multiplicado para buscar justiça pelos seus filhos. Baseado no apoio mútuo e na luta para que outras genitoras não tenham que sofrer o mesmo dilacerante drama, essas mulheres encontram força no cotidiano vulnerável de suas vidas. Nesse sentido ensina Gebara sobre a dimensão do cotidiano:
“Falar de resgate feminista da libertação é introduzir uma categoria sobretudo cara a nós mulheres: o cotidiano. O cotidiano é o social e o político vivido no hoje, no provisório, nas nossas casas, na busca da sobrevivência diária. O cotidiano é o que me sustenta e é condição para que o amanhã seja diferente e talvez melhor. O cotidiano é a vida de hoje, a necessidade de pão e de sentido para hoje. E é no hoje que experimento algo de liberdade ou de libertação, de acolhida, de ternura e sem dúvida também o seu contrário”. [2]
Em meio ao sofrimento desses crucificados, o cheiro de um Estado apodrecido exala nauseabundo. Como suportá-lo sem querer fugir como os apóstolos diante do Crucificado? Apesar de historicamente marginalizadas e apagadas pela hierarquia da Igreja, as discípulas de Jesus não o abandonam e vão até o fim no seu amor pela Vida Verdadeira. Com rebelde coragem não aceitam o sistema e pressentem um novo caminho de esperança prestes a se abrir. Na expectativa de uma Boa Notícia colocam sua resistente confiança.
Assim o fazem as mães das vítimas da violência policial ao enfrentar sua via dolorosa na exigência da justiça. Mesmo em plenas trevas da Sexta-feira da Paixão, turvadas pelo absurdo da perda de parte de si próprias, tateiam juntas à espera teimosa e ainda tênue da Ressureição que virá. Oxalá a sociedade civil e todas as pessoas de boa vontade possam ajuda-las a chegar com serenidade no Sábado de Aleluia, em preparação para Páscoa de um novo tempo. Tais quais resolutas Madalenas, dia após dia elas seguem, pois só possuem o cotidiano e o amor pelos seus filhos.
[1] GEBARA, Ivone. 50 anos de libertação de quem? In: 50 anos de teologias da libertação: memória, revisão, perspectivas e desafios. São Paulo: Recriar, 2022, p. 41.
[2] Idem, p. 49.