24 Mai 2023
"Somos convidadas/os a uma lucidez maior, a uma contínua descentralização de nosso egoísmo para sermos capazes de avaliar com maior justeza nas mãos de quem e nas cabeças de quem nossas denúncias vão cair e se vale a pena levantá-las neste momento, dessa ou de outra forma. Esse é um risco e um aprendizado que nos acompanha sempre", escreve Ivone Gebara, religiosa pertencente à Congregação das Irmãs de Nossa Senhora, filósofa e teóloga, que lecionou durante quase 17 anos no Instituto Teológico do Recife – ITER e que dedicou-se a escrever e a ministrar cursos e palestras, em diversos países do mundo, sobre hermenêuticas feministas, novas referências éticas e antropológicas e os fundamentos filosóficos e teológicos do discurso religioso.
Quem pode atirar a pedra do julgamento em alguém como se fosse ele ou ela justo? E quem pode enxugar as lágrimas dos injustiçados/as através dos rápidos julgamentos efetuados através da dureza de nossos corações ao longo da História? E quem pode exigir sujeitos eticamente estáveis numa realidade instável? Seria a ética algo fixo?
Culpados! Inocentes! Acusados! Acusadores! Punições! Liberações! Tudo isso se move em direções múltiplas.
Como penetrar na complexa galáxia que somos nós? Como conhecer melhor nossos comportamentos e suas confusas motivações? Que potente raio x seria necessário para que vislumbremos com mais clareza as convicções e as sombras que estão em nós? Como atinar para os limites de nossa consciência, de nosso conhecimento, de nossos julgamentos?
A ‘pedra’ do julgamento é tema difícil de ser abordado pois envolve nossas entranhas plurais, nossas escolhas, nossos preconceitos, nossa formação, nossos interesses pessoais, religiosos, políticos e econômicos. Envolve nossa família, nossas amizades, o desenrolar de nossa vida, nossa ideologia, nosso partido político, nossas simpatias culturais e sociais. Esse problema torna-se mais agudo numa sociedade onde se valoriza mais o indivíduo e menos a coletividade, o homem mais do que a mulher, o negro mais do que o branco e assim por diante.
Nossos julgamentos são marcados por hierarquias, por extrapolações, por privilégios, por pré-julgamentos inevitáveis. Nossa consciência é limitada a nós mesmas/os sobretudo quando se arvora a querer julgar o mundo e proclamar a justiça e o direito numa visão fixista e egocêntrica. E por isso, nesses casos nossa pele é sempre mais importante do que a do outro...
Minha breve reflexão se justifica diante da crucifixão de pessoas que tiveram toda a sua vida dedicada a mudar a vida do próximo para melhor, pessoas convencidas da necessidade da justiça nas relações coletivas, da inclusão dos marginalizados e famintos. Sem dúvida viveram isso dentro dos limites de sua vida, nos altos e baixos de suas decisões, nas fraquezas e grandezas de seu caráter e de suas emoções.
Diante de um fato obscuro de sua vida tornado público, tudo o que foi sua existência parece então jogada no esgoto ou num depósito de lixo mediático muitas vezes incontrolável. Torna-se assunto importante na mídia, convoca as discussões e posições beligerantes. Bastou um deslise verdadeiro ou imaginado ou ainda criado pelo sensacionalismo das polarizações de nosso tempo para desmerecer toda a vida de alguém.
Lembro-me de um maravilhoso velho rabino já falecido que deu sua vida defendendo a justiça para os pobres e para os prisioneiros políticos. E, uma vez tentado por um insignificante objeto exposto numa loja de aeroporto tomou-o para si. Os ‘justos’ e ‘éticos’ da sociedade capitalista o acusaram, criticaram, desmereceram sua vida inteira com uma espécie de intransigência cruel incapaz de acolher o joio e o trigo presentes em todas as vidas. Mas, sem dúvida, suspeito que a causa da acusação pública não era o objeto insignificante que tomara para si, mas porque defendeu a vida toda os oprimidos do sistema capitalista e dos regimes ditatoriais.
O objeto insignificante foi apenas o pretexto que encontraram. O crucificaram por um ato falho, por um gesto impensado, por um desejo proibido que de repente tomou conta de sua lucidez. E esse ato é valorizado, posto à público fazendo esquecer o conjunto de sua vida. Esse ‘roubo’ insensato tornou-se a pedra de tropeço de sua vida.
Um outro acontecimento mediatizado, analisado e verificado em minucias fotográficas se referiu a um ‘beijo’ de um internacionalmente conhecido líder e sábio oriental a uma criança. A sociedade se fixa no ‘escândalo’ do beijinho à criança, julga e condena sem se preocupar nem com a idade, nem com a história das lutas desse homem. Acusam-no, atribuem-lhe adjetivos impróprios e alguns chegam até a condená-lo à prisão perpétua.
Nesse momento a imprensa divulga a história de um louvável professor, eminente pesquisador social internacional acusado de assédio sexual por uma aluna. Não vale descrever todos os meandros dessa história, porém apenas ressaltar que nossos comportamentos, nossas virtudes, nossos conhecimentos não são isentos de deslizes. E os deslizes não invalidam nossa luta, os deslizes não apagam todo o bem que com outros tentamos fazer na sociedade humana. Os deslizes não invalidam nossa ciência e nosso compromissos em fazer o bem e buscar a justiça. Os deslizes somos nós misturados às nossas lutas pela dignidade da vida e ligados aos nossos inegáveis limites e paixões.
Talvez os leitores/as estranhem essa reflexão que provém de uma filósofa e teóloga crítica feminista frente a acusação de uma mulher a um homem de reconhecido saber, valor e compromisso social. Mas aqui não se trata apenas de feminismo. Trata-se de uma ética maior, de uma visão mais ampla dos seres humanos. Portanto de uma visão que inclui também os feminismos. Trata-se de considerar a desproporção que nos constitui, de nossa fragilidade humana que nos revela os muitos tropeços na pretensa retidão de nossos passos, de nossos comportamentos e acolhe os limites de nossa finitude assim como as vias estreitas e duvidosas nas quais muitas vezes andamos.
Por que em todos os casos, tanto de pequenas ou de grandes violações denunciar tudo na mídia? Ela tem a sua importância, mas não é isenta das mesmas injustiças que veicula. Há outros caminhos mais simples. Lembro-me de que na tradição de Jesus de Nazaré se falava em algumas circunstâncias de primeiro tentar dialogar com o agressor. Não sendo possível o diálogo, chamar algumas testemunhas que o ajudem a reconhecer seu delito e se ele não acolher, então tornar seu delito público.
Sei bem que esse processo metodológico não é fácil, porém nos convida a uma certa prudência frente aos sensacionalismos mediáticos destruidores de muitas vidas. É nessa perspectiva que temos que sempre desconfiar das emoções raivosas do imediato, reequilibrar nossos comportamentos, medi-los à luz de uma contribuição mais ampla do que um gesto impensado ou ainda frente as tentações de muitos tipos que nos acometem. Sem dúvida elas não são louváveis, porém não invalidam o valor de nossa vida.
Não é a mesma coisa um deslize amplo, político e social que reconhecidamente gera consequências nefastas à sociedade. Não é a mesma coisa pautar a vida em escolhas necrófilas para a vida de grupos e da coletividade. Não é a mesma coisa exterminar comunidades e tirar-lhes o direito à vida digna. E frente as esses crimes muitas vezes as pessoas e a mídia se calam.
Sei bem que estou em campo minado, que estou frente a uma operação reflexiva arriscada pois sempre haverá argumentos que me contrariem e novos argumentos que surgem em mim mesma. Qualquer passo que eu der alguém gritará a favor ou contra minha reflexão ou lançará outra saída. Posso entender perfeitamente e aceitar a situação frente as polarizações em que vivemos. Porém, mais uma vez, isso não invalida a extrema necessidade de aprender a pensar antes de levantarmos um nome publicamente, de enxovalharmos sua vida a partir de alguns deslizes, talvez condenáveis, mas partes de nossa limitação.
Conheci uma jovem que foi estuprada pelo irmão, um cidadão de grande valor tomado por um envolvimento fugaz com a irmã. Ela calou publicamente esse segredo pois provocaria um escândalo social e decidiu guardar para si o deslize ao qual ela mesma teve, talvez, algo de implicação. E isso para não prejudicar a causa maior à qual seu irmão estava se dedicando frente a mesquinhez da sociedade.
Conheci um homem ilustre que apenas separou-se de sua mulher profissional publicamente reconhecida quando soube que ela convivia com outro homem a muito tempo às escondidas. Não houve escândalo público, apenas mudança de rumo e de casa.
Sei bem que essas reflexões podem confundir o chamado Direito e as lógicas imediatistas nas quais estamos vivendo. Podem igualmente levar a considerações relativistas ou a desculpar crimes de lesa a pátria ou de lesa cidadania se as usarmos com frivolidade, numa espécie de superficialidade epidérmica ou talvez com uma radicalidade insuportável. E não duvido que provavelmente esses métodos são usados e propagados indevidamente.
Ouso pensar que talvez até transformem a presente reflexão em sofismas públicos, em falsos argumentos num vale-tudo muito comum entre nós, porém quase sempre em vista da destruição de relações e não da real edificação de comportamentos éticos pessoais e sociais. Minha reflexão talvez vá ficar no campo das denúncias que se acumulam, mas que efetivamente não mudam os comportamentos sociais em profundidade. Mas, mesmo assim acredito que devo fazê-la pois poderia tornar-se uma alerta para alguns e possibilidade de reflexão para outros.
O mau uso dos argumentos leva a situações aparentemente sem saída, porém é preciso aprender a distinguir para discernir, distinguir para reconhecer responsabilidades, distinguir para avaliar os danos reais causados e evitar outros. Não estou abrindo brechas para o roubo, para o perdão automático do estupro, não estou perdoando a pedofilia, não estou promovendo a prostituição acadêmica. Estou apenas querendo lembrar das causas e causos de deslizes múltiplos e variados aos quais todas/os nós estamos sujeitas. Por isso há que abrandar nossa ira e dirigi-la contra os alvos que de fato merecem ser atacados. Tudo isso para que aprendamos a perceber a mistura mutante entre o individual e o coletivo nem sempre visível numa sociedade egoísta e ególatra como a nossa.
Não seria o caso de rever os processos educacionais e acadêmicos em vigor em nossa sociedade? Não seria o caso de avaliar melhor as consequências de nossas denúncias? Não seria o caso de rever o uso das mídias sociais?
Somos simplesmente peregrinos que tropeçam e caem, levantam-se, caem de novo às vezes por um escorregão inesperado ou por uma paixão abrupta e momentânea que nos toma e confunde. Outras vezes escorregamos por uma falta de pensamento, por um esquecimento, por uma vontade perversa, por uma ganância desmedida, por uma paixão narcisista. Não somos de uma cor só, mas de muitas cores misturadas que se sucedem ao longo de nossa curta ou longa vida. Somos emocionalmente inconstantes, intempestivos, arrogantes e até perversos. E, sabemos bem que nosso ‘direito’ público e nosso ‘avesso’ sombrio se sustentam mutuamente como um único tecido.
Nunca observamos a perversidade de uma criança em relação à outra? De um velho frente a um jovem? De uma idosa frente a uma jovem? De uma mulher frente a outra? De um homem frente a outro? Nunca provamos um pouco mais de um doce que estava à venda, nunca nos apossamos de mais de um chocolate à disposição? Nunca diminuímos valores de objetos para conhecidos e o aumentamos para desconhecidos? Nunca burlamos algo das leis vigentes? Nunca mentimos para nós mesmos até que nossa mentira se tornasse verdade para nós? Nunca prejudicamos o próximo de mil e uma maneiras? Atire a primeira pedra quem nunca escorregou na corrida da vida!
Talvez muitas/os dirão que essas pequenezes cotidianas as quais enumerei não têm nada a ver com o estupro, com a violência conjugal, com o assédio sexual, com a invasão de terras, com a prostituição acadêmica e outros malefícios dos quais somos mestres produtores. Não têm nada a ver com o sensacionalismo da mídia capaz de multiplicar ao infinito informações falsas ou verdadeiras com o intuito de vender seus produtos, destruir pessoas, desviar caminhos de bem e de justiça?
Porém, essas pequenezas começam em nós e crescem em nós, se agigantam nos sistemas sociais e nas pretensas éticas que aplicamos ao mundo. Muitas vezes não as assumimos para nós e servem apenas para julgar os outros. Por isso, voltar a admitir-nos frágeis, finitos, mentirosos, corruptos, interesseiros, ignorantes - todos/as nós - não seria uma solução definitiva, mas uma brecha importante de reconhecimento de nosso ser e da frágil solidariedade que devemos construir em nosso meio. Isto vale para as lutas sociais, para o feminismo, para o antirracismo, para os movimentos contra as guerras, para os movimentos ecológicos, para as religiões.
Somos convidadas/os a uma lucidez maior, a uma contínua descentralização de nosso egoísmo para sermos capazes de avaliar com maior justeza nas mãos de quem e nas cabeças de quem nossas denúncias vão cair e se vale a pena levantá-las neste momento, dessa ou de outra forma. Esse é um risco e um aprendizado que nos acompanha sempre. Temos que ser astutas como as serpentes, visionárias nas noites escuras como as corujas e ternas e misericordiosas/os quando o coração nos convidar a sê-lo.
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Sobre a rigidez que desconhece a fragilidade humana. Artigo de Ivone Gebara - Instituto Humanitas Unisinos - IHU