"A mudança tecnológica continua acelerada, mas dado o individualismo exacerbado que o neoliberalismo pregava e a teoria econômica neoclássica legitimava como “científico” a partir da redução do sujeito ao homo economicus que sempre maximiza seus interesses, o sujeito contemporâneo se tornou desorientado e infeliz", escreve Luiz Carlos Bresser-Pereira, economista e professor emérito da Fundação Getúlio Vargas, em artigo publicado por A Terra é Redonda, 12-11-2021.
Qual o preço que é preciso pagar pela modernidade?
O filme de Sergei Loniztsa, Na neblina, que se passa durante a Segunda Guerra Mundial na Bielorrúsia ocupada, narra a história de um homem simples que participa de um ato de sabotagem com mais três companheiros de trabalho, mas que, sem explicações, é o único que não é condenado à forca pelos ocupadores alemães. Por isso ele é acusado pela sua própria comunidade de ter sido o delator, e assim, sem o reconhecimento dos seus, a vida perde o sentido para ele. No final das contas, sugere-nos o filme, cada indivíduo deve encontrar para si próprio o sentido de sua vida.
Em outro diapasão, em O porto, do diretor finlandês Aki Kaurimaki, o menino imigrante encontra nos pobres de Le Havre a solidariedade que dá sentido a suas vidas. Assim tanto o grande cinema como a literatura oferecem pistas para a busca e a realização do sentido da vida, mas afinal devemos exercer nossa liberdade e fazer nossas escolhas, sabendo que se elas não levarem em consideração o outro, se forem mera expressão de um individualismo exacerbado não nos levarão a lugar algum.
É esse o tema de um pequeno e fascinante livro que foi publicado na França contendo o debate que dois notáveis filósofos da modernidade, Christopher Lasch e Cornelius Castoriadis, travaram em 1986, intermediados pelo filósofo e jornalista Michael Ignatieff, no Canal 4 da televisão inglesa. Esse debate jamais havia sido publicado. Embora já se tenham passado 35 anos, e os dois debatedores já tenham morrido, esse debate, publicado sob o título La culture de l’égoïsme (Ed. Climat), continua atual, dado seu elevado nível de abstração e a qualidade dos debatedores. Christopher Lasch foi principalmente o autor de A cultura do narcisismo (Zahar), uma extraordinária crítica do capitalismo consumista e individualista, e Cornelius Castoriadis, depois de muito cedo ter feito a crítica pioneira do burocratismo comunista, em conjunto com Claude Lefort, tornou-se psicanalista e um crítico agudo tanto do marxismo quanto do capitalismo liberal.
O tema do debate já era então a crise da modernidade, o fato de que o espaço público e a ideia de um destino comum estava desaparecendo, e um individualismo avassalador tomava conta das pessoas. Enquanto isso, aqui no Brasil, o psicanalista e filósofo Joel Birman escreveu um belo ensaio, O sujeito na contemporaneidade (Civilização Brasileira) que não é um livro político, mas nos mostra como a psique humana mudou nesse período, e, na sua conclusão, assinala que, ao passarmos da modernidade para a contemporaneidade, nos tornamos vítimas do narcisismo que Christopher Lasch já denunciava: “numa cultura narcísica como a nossa, permeada pela moral do individualismo levada a seu exagero, cada qual trata apenas de sua vida, e considera o outro como o inimigo e o rival, seja isso real, seja potencial”.
O debate entre Castoriadis e Lasch começa com Ignatieff perguntando qual o preço que tem sido necessário pagar pela modernidade. Nossas tradições políticas nos dizem que um sentimento de comunidade é necessário, mas o espaço público se reduziu e vivemos cada vez mais uma vida privada. E pergunta: “Será que nos tornamos mais egoístas e menos capazes de engajamento político? Como vocês descrevem a mudança que ocorreu na nossa vida pública?”
Para Castoriadis, a mudança começou a acontecer no final dos anos 1950, e dois fatores foram determinantes: a desagregação do movimento operário, e do projeto revolucionário a que estava ligado, e a capacidade demonstrada pelo capitalismo de melhorar o padrão de vida das pessoas. Em consequência as pessoas viraram as costas aos interesses comuns e mergulharam no seu mundo privado, ainda que seja preciso colocar “mundo privado” entre aspas, porque “nada é jamais totalmente privado, o próprio indivíduo é uma construção social”.
Lasch concorda e acrescenta que esse individualismo não é o do estilo antigo, que surge nos séculos XVII e XVIII, mas é um novo individualismo, do “eu mínimo” ou do “eu narcisístico” – um eu crescentemente desprovido de conteúdo cujo objetivo “é pura e simplesmente a sobrevivência”. A alternativa à mera sobrevivência é uma vida moral, é uma vida pública ou uma vida voltada para o bem público, a qual, como já assinalava Aristóteles, para ser realizada com liberdade supõe a independência das necessidades materiais. O que já estava claro para os filósofos iluministas – acrescento. Eles distinguiam o egoísmo ou a cobiça – ou as paixões – dos “interesses bem considerados” que se constituiriam em uma alternativa mais realista e razoável ao comportamento dominado pelo individualismo exacerbado e ao altruísmo.
O que realmente caracteriza a sociedade contemporânea, para Castoriadis, é “a falta de projeto”. Cada um pensa na sua aposentadoria, na educação de seus filhos, mas “esse é um tempo privado; ninguém mais é parte de um horizonte de tempo público”. O caso limite é o da multidão em um grande engarrafamento de trânsito. Ela está “mergulhada no oceano da coisa social”, mas cada motorista está isolado, e todos se odeiam mutuamente.
Estamos então diante do “colapso do espaço público?” pergunta Ignatieff. Vivemos em um mundo muito instável, responde Lasch. Antes nós éramos rodeados de objetos sólidos e duráveis, agora de imagens e mais imagens, fantasmagóricas, proporcionadas pelas novas mídias. Desaparece, assim, a continuidade histórica que é uma referência fundamental para cada um. Mas Ignatieff cobra a resposta sobre a relação entre a crise do domínio público e o indivíduo voltado para si mesmo. Mas essa relação não é simples porque os dois elementos se determinam mutuamente, responde Lasch. As mudanças no indivíduo são também mudanças na sociedade. O problema está “no desaparecimento de um verdadeiro conflito social e político”. Porque, completa Castoriadis, “as pessoas tem a impressão, com razão, que não vale a penas lutar pelas ideias políticas que se encontram disponíveis no mercado”.
Mas e a política? “A política se tornou cada vez mais uma questão de grupos de interesse”, afirma Lasch. E dá um exemplo. O movimento pelos direitos civis, nos Estados Unidos, que teve como um de seus grandes líderes Martin Luther King, era um movimento cívico universal contra todos os racismos. Nos anos 1970 esse movimento foi redefinido como um movimento dos negros contra o racismo branco. Perdeu universalidade; tornou-se manifestação dos interessados. Como a direita faz a clássica “culpabilização das vítimas”, há, do outro lado, o que Lasch chama “a valorização da vítima”. Os movimentos sociais só ganham legitimidade quando apontam as vítimas de alguma discriminação. Desaparece, assim, a possibilidade de “uma linguagem que seja compreendida por todos e constitua a base da vida política”.
O que leva Castoriadis a concordar com força, também ele citando Aristóteles. Na pólis grega, quando havia interessados em uma determinada questão, eles não tinham direito a voto, porque a política estava voltada para o bem público, não para os grupos de interesse. Para a filosofia a partir do século XVII, com exceção de Rousseau, a política existe para defender o indivíduo do Estado. “Ela não aceita que possamos, nós mesmos, construir uma comunidade política”.
Isto significa que criticam a democracia liberal baseada no interesse? As concepções de bem público não se tornaram inviáveis nas sociedades muito grandes e muito divididas do presente? – pergunta Ignatieff. Os dois interlocutores não têm uma resposta clara para a pergunta. Não está claro no debate que há dois tipos de liberalismo político: o liberalismo da afirmação dos direitos civis ou do Estado de direito, que é uma conquista da humanidade, e o liberalismo político identificado com a política dos interesses em lugar da política do bem público, que eles vivamente criticam.
Ignatieff volta à crítica da sociedade contemporânea. Não estaria ela se dando conta que a lógica do gozo, do consumo privado, é vazia? Lasch concorda com veemência. “O consumo concebido como cultura e não como simples abundância de bens parece ter como resultado transformar as pessoas em brinquedos passivos de seus fantasmas…” O que “torna derrisório” o liberalismo baseado na soberania do consumidor.
Na verdade, assinala Castoriadis, o indivíduo só é indivíduo no quadro da sociedade; quando essa sociedade fornece a ele um sentido para sua vida – um sentido que ele necessita. “Cada um de nós necessita ser qualquer coisa de substancial”. Do que se conclui, observa Ignatieff, que a estruturação da identidade de cada indivíduo é uma questão política. E, continua ele, nenhum de nós pode se livrar de seu passado, de sua história, mas será a sociedade contemporânea tão desprovida de sentido? Não continua a existir nela a ideia de “caráter”? Ela não nos diz, “eis aqui o tipo de pessoa que nós honramos, que nós respeitamos”?
Sim, “aquilo que sustenta a imagem do eu é também o fato de que os outros a reconhecem”, responde Castoriadis. Mas aquilo que nós chamamos “respeito” e Hegel denominava “reconhecimento” perdeu sentido com o colapso do mundo público. Mas, retruca Ignatieff, “até que ponto você nos está empurrando para o pessimismo?” Onde está a liberdade do indivíduo? Pergunta que leva Castoriadis a concluir de maneira solene. A verdadeira liberdade, como a democracia, são conceitos trágicos, porque não há limites externos para ela. Nunca sabemos até onde podemos chegar em termos de liberdade e de democracia. “Na tragédia grega o herói não morre porque haveria um limite que ele haveria transgredido; esse é o pecado cristão. O herói trágico morre de sua húbris, ele morre por transgredir em um campo onde não havia limites estabelecidos anteriormente”. Citando por meu turno Aristóteles, não posso deixar de acrescentar que a prática da liberdade não conflita com o interesse, mas é incompatível com o egoísmo, porque ela só se realiza no espaço público.
Um pouco depois desse debate, a psicanalista e filósofa Maria Rita Kehl em A razão depois da queda, via nascer a pós-modernidade ou a contemporaneidade, e já fazia sua crítica: “Não ousamos mais dar asas à imaginação, ou seja, ao desejo… a pós-modernidade é o momento em que se decreta a falência das utopias modernas… a ideia do homem como sujeito da história vai sendo abandonada”.
Essa é a contemporaneidade, esse foi o tempo do neoliberalismo. Não foi apenas um tempo do liberalismo econômico, foi também um tempo de profunda crise do sujeito, foi um momento em que o individualismo se transformou em narcisismo e a solidariedade exercida no espaço público com vistas ao futuro cedeu lugar à perda da ideia de tempo e de futuro, de que nos fala agora Joel Birman. Em seu livro, ele não discute o esvaziamento do espaço público, mas ele está interessado em um problema com ele relacionado. Ele foca sua atenção no mal-estar da contemporaneidade – como esse mal-estar é diferente do mal-estar da modernidade que Freud analisou em O mal-estar da civilização (1930), livro no qual “sistematizou os impasses do projeto da modernidade, já então indicando como o narcisismo solapava por dentro a máxima ética do Iluminismo, centrada na felicidade, no culto do eu e no prazer”. Birman vai, portanto, fazer uma análise histórica do sujeito, na linha do próprio Freud, que, como observa o autor, jamais acreditou na natureza humana racional e abstrata, e pensou historicamente “não obstante a condição pulsional de base” do sujeito.
Joel Birman está interessado nesse sujeito, e para analisar seu mal-estar, ele vai opor três dualidades de conceitos. O que vemos, na transição da modernidade para a atualidade e a passagem do sofrimento à dor, do tempo ao espaço, e do desamparo ao desalento. O sujeito moderno, o sujeito de meados do século XX, enfrentava uma infinidade de contradições que o próprio Freud e grandes escritores como Arthur Schnitzler e Robert Musil, e filósofos como Herbert Marcuse e Walter Benjamin, analisaram, mas ele sabia reconhecer o seu tempo histórico ao invés de acreditar “que tudo se passa no tempo presente, no qual a repetição do mesmo é tão poderosa que não anuncia qualquer possibilidade de ruptura e de descontinuidade”.
Para Joel Birman o mal-estar da contemporaneidade está em primeiro lugar na incapacidade do sujeito de viver o tempo e a mudança que vem com ele. Quando ele sonha e se recorda do sonho, ele vive uma narrativa, mas hoje, ao invés do sonho, predomina o pesadelo e o pânico, que é traumático, e paralisa o sujeito em um espaço sem tempo. Mas para ele “o mal-estar contemporâneo se caracteriza principalmente como dor, e não como sofrimento”. A dor é física, é uma materialização sensorial privada, não envolve a alteridade que está presente no sofrimento – um sentimento psíquico. Se a dor se mantém apenas como dor, ela é só nossa, e talvez possa ser resolvida pelo analgésico ou pelo medicamento psiquiátrico; se logramos transformá-la em sofrimento, isto significa que fazemos parte de um todo social, e que podemos contar com a ajuda e a compreensão do outro e com a psicanálise.
Mas os homens e as mulheres perderam essa capacidade na contemporaneidade. Diante da dor, diante do pesadelo e do trauma, ele fica paralisado ao não poder situá-la no tempo e transformá-la em sofrimento compartilhado. Ele enfrenta os excessos, as irrupções de suas emoções, mas como elas não podem se expressar em explosões porque a sociedade não as aceita, não lhe resta alternativa senão implodir, “colocando em questão a ordem da vida, porque os interstícios e as fendas do somático seriam as únicas linhas de fuga disponíveis para a materialização da implosão.” E assim, além da dor, vemos o sujeito mergulhar na hiperatividade, vemos a demissão do pensamento e a aceleração do comportamento, a ação se tornando um imperativo categórico.
A expressão artística do sujeito contemporâneo aparece de forma exemplar no filme de Stanley Kubrick, De olhos bem fechados, no qual “toda a narrativa se constrói entre a possibilidade e a impossibilidade da experiência de sonhar”. De repente, diante da mulher que lhe conta um sonho erótico com um marinheiro, o marido, a expressão da contemporaneidade bem sucedida e bem comportada que perdeu a capacidade de sonhar e imaginar, que reconhece apenas a aparência dos objetos à sua volta, se desconstrói e vive um pesadelo. Ora, observa Birman, como Freud ensinou, o desejo é o motor da vida, mas “para o sujeito desejar é preciso que possa também fantasmar”, é preciso que saiba usar a imaginação com liberdade – algo que o marido não tem.
Este não é um livro político, mas nesse mundo visto pelo sujeito como continuidade e repetição, nesse mundo no qual o sujeito perdeu a perspectiva do tempo e a capacidade de imaginar e de se comunicar com os outros, Birman não pode deixar de se referir ao fim da história de Francis Fukuyama e ao caráter neoliberal dessa visão. Porque, afinal, acrescento, essa contemporaneidade a que ele se refere foi o tempo do neoliberalismo, foram os 30 anos neoliberais do capitalismo que entraram em colapso com a crise financeira global de 2008.
Para Birman, na contemporaneidade, “o terror de se perder apodera-se do eu… a “despossessão de si” se anuncia assim como problemática crucial do mal-estar da contemporaneidade”. O sujeito se sente dominado pelo sentimento do vazio. Por que? Haverá uma razão geral para essa tragédia humana e moral? Birman não dá uma resposta direta a essa questão. Mas ele cita Lasch, que criticou “a constituição da cultura do narcisismo na atualidade”. E, afinal, o que é essa cultura, senão a cultura de um individualismo ou de um egoísmo extremado, que impede ao sujeito compartilhar valores e objetivos e dar sentido para sua própria vida? Conforme termina Birman, confirmando a análise anterior de Lasch, Castoriadis e Ignatieff, “a solidariedade, como valor que amalgama ainda os laços sociais na modernidade, desapareceu inteiramente do cenário na contemporaneidade”.
Seu resultado, porém, observo, não foi apenas trágico para o sujeito; foi também para a sociedade que, hoje, vive uma crise profunda, uma crise que não é apenas econômica, mas também cultural, que não se revela apenas na estagnação econômica nos países ricos e na redução do crescimento nos países em desenvolvimento, mas também na perda de valores e de uma ideia de destino comum. A mudança tecnológica continua acelerada, mas dado o individualismo exacerbado que o neoliberalismo pregava e a teoria econômica neoclássica legitimava como “científico” a partir da redução do sujeito ao homo economicus que sempre maximiza seus interesses, o sujeito contemporâneo se tornou desorientado e infeliz. Entretanto, essa visão do mundo e das coisas só foi plenamente hegemônica nos anos 1990.
Desde o início dos anos 2000 começou a ser contestada, e hoje está mais uma vez claro que uma sociedade presidida pelo utilitarismo e o narcisismo é incompatível com a vida social e a realização humana. Que a democracia, que foi uma conquista da modernidade, não pode ser reduzida a um eventual equilíbrio de interesses conflitantes, ou à cultura do egoísmo, porque ela só se realiza quando é o resultado de uma construção social compartilhada e participativa na qual o sujeito busca compatibilizar seus próprios interesses com seu espírito republicano que luta por um interesse público que ele reconhece como existente e legítimo.