17 Abril 2023
"As redes sociais estão se tornando, infelizmente, um espaço para destilar o ódio ou as 'formações internas' negativas que foram se firmando em nosso mundo interior num mundo que carece de compaixão e de maravilha", escreve Faustino Teixeira, teólogo, colaborador do Instituto Humanitas Unisinos - IHU.
Não queria mesmo voltar ao assunto polêmico da semana, mas precisei, por razões internas profundas dizer ainda algumas coisas para mim tão fundamentais.
Em primeiro lugar, reconhecer a dignidade da dor de tantas pessoas, de tantas mães, muitas delas queridas por mim, que se sentiram profundamente adoradas com as cenas que viram na internet, embora saibamos que teve uma “edição” da cena, que descontextualizou o que ali ocorreu.
Felizmente, vieram em seguida novos vídeos, que puderam nos mostrar o quadro integral, inclusive com as falas carinhosas da criança envolvida e de sua mãe. A dor que essas pessoas sentiram não pode, sem dúvida, ser minimizada e ela tem plausibilidade sagrada, sobretudo em tempos difíceis onde a pedofilia vem sendo denunciada, ainda com timidez, e sabemos que ela está presente em toda parte: nas igrejas e religiões, também no budismo tibetano, nos seminários, nos quartéis e nas famílias.
Em segundo lugar, dizer o quão fundamental se revela o discernimento verdadeiro em situações como a que ocorreu na Índia. Seguir o exemplo de Santo Inácio, evitando agir impetuosamente sob o efeito das paixões. Elas podem, muitas vezes, traduzir um equívoco doloroso.
No caso em questão, ela colocou em dúvida a nobreza de um dos nossos maiores mestres espirituais contemporâneos, um dos poucos que resistem bravamente na luta cotidiana em favor da paz.
As redes sociais estão se tornando, infelizmente, um espaço para destilar o ódio ou as “formações internas” negativas que foram se firmando em nosso mundo interior num mundo que carece de compaixão e de maravilha. Como diz um amigo querido, Rodrigo Petrônio, “a internet se transformou em um lixão radioativo”, ou outro amigo sempre presente, Eduardo Losso, que traduziu com clareza e pasmo sua visão dos “juízes de plantão”, que o que foi que muitos aqui se transformaram, sem nenhum remorso.
Em postagem que li, de Sonam Soksang, ele sublinhou que os últimos dias:
“foram dos momentos mais agonizantes para todos os tibetanos e admiradores” de Dalai Lama em todo o mundo.
Com dor expressou a sua admiração pelo líder de uma tradição que é a sua:
“Nunca vi Sua Santidade fazer algo humilhante ou prejudicial a alguém (...)."
Pessoalmente, Sua Santidade fortaleceu a minha crença na humanidade e na bondade que às vezes parecem perdidas no mundo de hoje. Ele moldou a minha atitude e trouxe sentido à minha vida.
Não há como negar que Sua Santidade dedicou a sua vida a tornar o mundo um lugar melhor, apesar de ser um refugiado e lutar pela liberdade do seu povo sob a brutal ocupação da China.
Sua Santidade trabalhou incansavelmente para promover a compaixão e colmatar lacunas entre várias religiões, ciência, educação, ambiente e disparidade entre ricos e pobres, igualdade e assim por diante, que pode ser testemunhada por pessoas de todas as esferas de vida em diferentes campos.
Temos que pensar em primeiro lugar nas crianças, mas temos que pensar também nos mais idosos, que merecem de nós igual consideração. Uma das coisas lindas que vejo no papa Francisco é a sua preocupação atual em resgatar o valor e a cidadania dos idosos, de sua sabedoria e dignidade. Vivemos num tempo que facilita o descarte dos idosos. O que vi com muita tristeza, foi uma tentativa malsã de descartar Dalai Lama.
Digo a vocês que busquei ler muito sobre a tradição tibetana. Vi também diversos vídeos, sendo um deles, com um jovem monge tibetano, profundamente preconceituoso e indelicado. Mas, por sorte, pude ver outros vídeos diferentes, e textos lindos, ajudando-me a crescer no meu discernimento, evitando julgamentos prévios e maldosos.
Fiquei profundamente triste ao ver pessoas atacando o Dalai Lama e com tranquilidade acusá-lo de pedófilo, ou dizer que está doente, velho, gagá etc. E que seu gesto revela, na verdade, a sua decadência… É muito fácil “jogar pedra na Geni”, ou atirar contra os outros esquecendo-se da palha que muitas vezes nos dificulta enxergar o mistério do real.
Em terceiro lugar, gostaria de expressar a minha perplexidade com tantas mensagens iradas, tomadas às vezes pelo ódio, que se voltaram não apenas contra o Dalai Lama, mas também contra a sua tradição religiosa.
Mensagens que atacaram sem dó também aqueles que buscaram defender o Dalai Lama, com honestidade, como Leonardo Boff, que viu o seu Instagram ser “poluído” por palavras injustas e violentas, que se serviram da ocasião, para divulgar seu ódio ao personagem Boff e as causas que ele defende, como a teologia da libertação. Em poucos dias, foram cerca de 6.200 comentários, muitos dos quais revelam ira e ódio.
Pude verificar claramente como o ódio e a raiva estão bem vivos entre nós. Como diz com razão o personagem Tatarana de Grande Sertão: Veredas, o ódio não tem razão… ele nasce, assim, de obscuros lugares, exalando um “vapor do mal” que habita em todos nós, e às vezes se manifesta como um “bicho subterrâneo” que desperta.
Em quarto lugar, dizer que nem sempre o “vapor do mal prevalece”, pois também somos habitados por uma “vozinha” interior que não deixa escapar o “perfume da virgem”, ou o perfume dos anjos… A “vozinha” que nos ajuda a caminhar por veredas seguras, ou “miúdos remansos, aonde o demônio não consegue espaço para entrar” (GSV).
Dos textos que li, esse que partilho agora com vocês, foi um dos que mais me emocionou, ajudando-me a esclarecer algo que foi fundamental para mim. Ele foi escrito por Lama Trinle Gyamtso:
“ (…) Uma das repetidas alegações feitas tem origem na confusão sobre a expressão tibetana 'GeCheLé Dyip', 'CheLa Sa'".
Na cultura tibetana é comum que os avós deem aos netos um doce ou comida diretamente de boca a boca.
Depois, quando, como não lhes resta nada na boca, lhes chamam 'CheLa Sa', 'coma-me a língua', como dizendo 'Dei-te todo o meu amor e os doces, então a última coisa que posso oferecer é a minha língua, pois coma-me a língua'”.
É um costume carinhoso e inocente, muito comum na região de Amdo de onde o Dalai Lama é originário e que as crianças conhecem bem, mas, logicamente, isso é percebido de forma muito diferente quando se traduz erradamente para inglês como 'chupa-me a língua'.
Esse erro de tradução para inglês (do próprio Dalai Lama) foi por isso que Sua Santidade se desculpou, 'pela dor que suas palavras podem causar'”.
Por fim, gostaria aqui de partilhar com vocês a visão que um dos meus grandes mestres espirituais, Thomas Merton, irradiou para nós, em seu Diário da Ásia, relatando os lindos encontros que teve com o mestre tibetano em sua experiência na Índia, um pouco antes de morrer.
Os dois espirituais, em três memoráveis encontros, estiveram “à beira da grande percepção do real”. Há uma linda foto de Thomas Merton ao lado de Dalai Lama, no Diário da Ásia.
O grande mestre tibetano impressionou muito Thomas Merton: sua vida espiritual, sua sensibilidade única, o seu jeito alegre de criança, e sua capacidade de transmitir um aroma que não é muito comum em nosso Ocidente viciado. Impressionou-lhe sobretudo por sua imensa capacidade de compaixão.
Assim como Merton teve um sonho onde estava “vestido com um hábito de monge budista”, de um “colorido mais tibetano do que Zen”, onde estavam juntos o preto, o vermelho e o dourado, assim também todos nós, deveríamos viver um sonho reparador semelhante, onde pudéssemos nos despojar de nossas vestes comprometidas com nosso etnocentrismo e deixar-nos habitar pelas cores e pela vida do Tibet.
Mensagem de Leonardo Boff para Faustino Teixeira, referente ao artigo "O desafio de deixar-se habitar pelo espírito tibetano"
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O desafio de deixar-se habitar pelo espírito tibetano. Artigo de Faustino Teixeira - Instituto Humanitas Unisinos - IHU