12 Março 2024
"Emergências ligadas à fome devido a guerras devem ser enfrentadas rapidamente antes que se transformem em ameaças em grande escala".
O comentário é do cientista político italiano Mario Giro, professor de Relações Internacionais na Universidade para Estrangeiros de Perúgia, na Itália, em artigo publicado por Domani, 09-03-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
O Relatório Global de 2023 sobre as Crises Alimentares indica três causas principais de risco para a segurança alimentar: conflitos, choques econômicos e condições climáticas extremas (inundações, secas, etc.). Segundo os dados, essas três causas condenam, respectivamente, mais de 117 milhões, 84 milhões e mais de 56 milhões de pessoas à “insegurança alimentar aguda”.
A guerra na Ucrânia deu o golpe de graça numa situação que já se tinha tornado crítica devido à crise financeira de 2008 e instabilidade ecológica global. Rússia e Ucrânia eram juntas responsável por 30% da produção mundial de trigo, 20% de milho e 80% do óleo de sementes. Os países árabes, a Europa, mas também a África ou o Brasil dependiam deles. A guerra que já dura há dois anos tornou o mercado de grãos imprevisível e impôs uma forte pressão sobre os preços. Segundo a ONU, estão em risco endêmico de fome ou carestia mais de 40 países – africanos ou menos desenvolvidos – que importavam pelo menos um terço dos seus cereais da Ucrânia e da Rússia, dos quais pelo menos 18% até 50%.
Por enquanto, não se criou uma crise aguda, apesar do efeito negativo sobre os preços. É preciso estar atento também a outros conflitos que provocam crises mais localizadas, como a guerra interna sudanesa e a crise etíope. Estamos vendo a segurança alimentar deteriorar-se nesses dois grandes países africanos devido a crises políticas complexas que ainda não encontraram solução. O Sudão, em particular, é devastado pelos combates, e a população das grandes cidades, como no caso da própria capital Cartum, corre risco de fome também devido à falta de transporte e abastecimento juntamente com o fechamento dos mercados.
A lição que se pode deduzir de tais instabilidades e crises violentas é que quando o Estado implode e desmorona, a vida das pessoas é colocada em sério risco, a começar pela falta de água potável e alimento. Na Líbia, na Síria, no Sahel, assistimos a situações semelhantes, onde a própria distribuição humanitária de gêneros alimentícios tornou-se difícil, sem falar da tragédia de Gaza, onde falta tudo.
Tais emergências ligadas à fome devido a guerras devem ser enfrentadas rapidamente antes que se transformem em ameaças em grande escala. No final de 2022, os conflitos e as transições pós-conflito já tinha alcançado níveis recorde de insegurança alimentar generalizada: até 350 milhões de pessoas em 79 países (Somália, Afeganistão, Etiópia, Haiti, Sudão e Sudão do Sul, Iêmen, Síria, Sahel, Mianmar, etc.) estavam e ainda estão hoje, no início de 2024, enfrentando níveis críticos da fome, carestia ou condições precárias. Existe também um aspecto multilateral da crise alimentar a sinalizar: as agências da ONU (como o PMA e o PNUD, por exemplo, mas também o CICV e outras) têm dificuldade em encontrar e adquirir os alimentos necessários para as suas intervenções, devido à escassez ou a preços excessivamente elevados.
A múltipla crise conecta as consequências das guerras com aquelas das crises climáticas (diminuição da produção em alguns países) e dos efeitos a longo prazo da pandemia (bloqueios logísticos ou gargalos e inundações de portos): tudo isso pesa nos custos ou na produção de alimentos (como os cereais).
A estratégia de reserva implementada por alguns países também não deve ser subestimada. As guerras são intrinsecamente violentas e prejudiciais, mas uma má ou desigual distribuição dos recursos pode por vezes criar danos ainda mais catastróficos por serem de longa duração. Como observamos na Ucrânia, mas também no Sahel, em Gaza ou no Sudão, as partes em conflito podem saquear as reservas alimentares dos adversários, destruindo deliberadamente plantações, rebanhos e infraestruturas civis.
Acima de tudo, as guerras tornam inabitáveis e inutilizáveis (devido à poluição causada pelas armas) áreas inteiras onde não é mais possível produzir, como acontece na Ucrânia, mas também noutros lugares.
Tais situações provocam o deslocamento de um grande número de pessoas, cortando-as de seus recursos alimentares e meios de subsistência e forçando a comunidade humanitária internacional a esforços gigantescos para responder às prementes necessidades. A maioria desses refugiados e deslocados (Idp) é composta por mulheres, que também representam a maior parte da força de trabalho agrícola na África e no Oriente Médio: a sua ausência das áreas de cultivo tem efeitos devastadores.
A conexão entre crise política e crise dos refugiados tem consequências pesadas para alguns países: basta pensar, por exemplo, na situação no Líbano, assolado pela crise econômica e pela instabilidade interna a que se acrescenta o fardo de aproximadamente 2 milhões de refugiados sírios que fugiram desde 2011.
Muitas outras zonas de conflito ou pós-conflito necessitam desesperadamente de ajuda humanitária duradoura ao longo do tempo, como no Afeganistão, mas as operações de socorro são quase impossíveis porque não é permitido alcançar as populações necessitadas. Em alguns casos, como no Sudão, algumas operações humanitárias para deslocar pessoas em dificuldade foram atacadas pelas partes em conflito.
Por fim, vale sinalizar o lado “silencioso” da atual crise alimentar na África: aquele que se refere ao aumento dos preços da energia que reduziu a zero a capacidade de compra de alguns países e o seu próprio fornecimento em moeda forte, indispensável para atuar no mercado internacional. É, por exemplo, o caso atual do Malawi, onde não é mais disponível a moeda necessária para comprar alimentos e itens sanitários essenciais. Embora o continente tenha as maiores reservas de terras cultiváveis inexploradas do planeta (200 milhões de hectares, sem contar as florestas), a sua produção agrícola continua insuficiente. A África poderia produzir por si só muito mais produtos e toda a quantidade necessária de fertilizantes necessários para a pecuária, em vez de depender de importações.
O aumento dos preços está gradualmente provocando a subida dos custos, não de forma violenta como se esperava, mas certamente de uma forma que arruína agricultores e criadores. Assim se assiste a um paradoxo: o continente que poderia alimentar o planeta continua travado ao nível de subsistência alimentar. Muitas vozes estão se levantando a favor de um plano continental de resiliência agrícola, mas a União Africana é lenta a reagir. Se as próximas temporadas agrícolas forem comprometidas, os riscos para a segurança alimentar do continente duplicarão.
Na África, ainda não se transforma quase nada da produção agrícola local: exporta-se para importar de volta com o evidente aumento de preços. A renovada crise da dívida, a inflação e a escassez de alimentos poderiam causar graves distúrbios sociais em regiões já desestabilizadas por tensões políticas. Num contexto econômico complexo, a dependência produtiva torna-se uma vulnerabilidade extrema, revelando as carências estruturais do continente. É sobre tal questão que é preciso intervir com uma nova programação conjunta.
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As causas da insegurança alimentar global. Artigo de Mario Giro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU