02 Março 2024
"Quais as motivações que estão levando as pessoas a buscarem as nossas casas de formação? Por que e para que estamos formando padres, religiosos e religiosas? Os formandos e formandas, como também os que já estão ordenados e consagrados, estão inseridos, sendo sal e luz, pastores com cheiro das ovelhas, na vida e na história do povo fiel de Deus?".
O comentário é do padre Matias Soares, mestre em Teologia Moral (Gregoriana), pós-graduado em Teologia Pastoral (PUC-Minas), membro da Sociedade Brasileira de Teologia Moral (SBTM), coordenador Arquidiocesano da Pastoral Universitária e pároco da paróquia de Santo Afonso M. de Ligório, Natal-RN.
O Papa Francisco, recentemente, num discurso feito aos participantes de um congresso realizado em Roma, sobre a formação permanente dos presbíteros, assim admoestou aos presentes: “A graça pressupõe sempre a natureza, e por isso temos necessidade duma formação humana integral. Na verdade, ser discípulo do Senhor não é um revestimento religioso, mas um estilo de vida e por conseguinte requer o cuidado da nossa humanidade. O contrário disto é o padre ‘mundano’. Quando a mundanidade entra no coração do padre, estraga-se tudo. Peço-vos para investir o melhor das vossas energias e recursos neste aspecto: o cuidado da formação humana. E também o cuidado por viver de maneira humana”. O presbítero não pode ser alguém que tem medo da sua humanidade. Sua história, seus afetos, anseios existenciais e sonhos de realização pessoal devem ser cuidados e ordenados por uma capacidade humana e evangélica de amar. A vocação deve estar situada numa condição humana integral e integrativa.
Os desafios que estão sendo postos à Igreja, que precisam ser enfrentados, têm sido causa de escândalo e muita tristeza, principalmente na dimensão humano-afetiva dos ministros ordenados. A atenção dada à formação humana é mais do que indispensável. É urgente. Essa dimensão da existência sacerdotal foi tratada com desconfiança por séculos. A teologia que tinha suas bases no neoplatonismo penetrou na espiritualidade cristã e, ainda mais, no ordenamento formativo dos ministros ordenados. O tratamento dado aos sacerdotes, como homens do sagrado, principalmente depois do Concílio de Trento (1545-1563), mesmo com seus avanços para a época, pouco a pouco foi sendo superado e surgindo novas necessidades e demandas de atualizações. Envolvidos pela mística da ascese e do sacrifício, como sinal da mortificação das pulsões humanas, o sacerdote do antes do Vaticano II é o homem que deve ter como marcas distintivas: a sabedoria, a saúde e a santidade. Essa integração, nem sempre foi tratada com tanta clarividência e contando com as possibilidades ofertadas pelas ciências humanas, especialmente a psicanálise. Depois de Sigmund Freud (1856-1939), novos questionamentos surgem acerca dos dramas existentes na formação da identidade da pessoa, marcada na sua história por alegrias e tristezas. A Igreja tentará assumir caminhos novos. O humanismo integral e o personalismo serão a base antropológica do Concílio Vaticano II e, com estes, a atenção que será dada à subjetividade humana, colocando a pessoa no centro, como protagonista da própria formação.
Um novo cenário se nos é posto. Na atualidade, estamos a falar de pós-humanismo, inteligência artificial, pós-secularismo e, depois da pandemia, questões na área de doenças mentais, que colocam desafios novos à própria formação permanente dos presbíteros. A Igreja volta o seu olhar para esta urgência. Um novo humanismo pode ser elaborado. Com o neotomismo, tão em voga ainda nas proposições conciliares, a pessoa ainda era tida como realidade integral, que precisava ser integrada. Na nossa hipermodernidade, o humano é definitivamente apresentado como fragmentado e com possiblidades de ser transumanizado, buscando novas formas de ser e agir, a partir de suas subjetividades. Com a determinação de ‘ser no tempo e instantaneamente’, com a confirmação dos pressupostos heiddegerianos. Isso está visível nas novas manifestações do ‘Ser’. Esse (Dasein) é o homem contemporâneo, tão simplesmente, com suas escolhas e autodeterminações.
Nessa conjuntura do estilo de ser e estar no tempo, encontra-se a Igreja que ainda não encontrou um método equilibrado de se relacionar com essas subjetividades. Pois sempre foi aquela que, basicamente dos séculos IV ao XIX, impôs, e não propôs o modo de agir da cultura ocidental. Na formação dos futuros presbíteros e para a formação permanente dos atuais, como nos encontramos numa mudança de época e numa época de mudanças, os métodos precisam ser ressignificados e mudados. A formação, como os ensina o Papa Francisco, também precisa absorver a perspectiva da ‘sinodalidade’. Com menos disciplinamento e mais autoconsciência. Ouso a dizer que a pedra de toque desse modo de ‘ser Igreja’ é o acolhimento das diferenças, por meio da capacidade de escuta de todos. É o respeito e reconhecimento dos sujeitos que são envolvidos no processo formativo. O que é de interesse de todos deve ser participado por todos. Mais confiança que gera responsabilidade e promove a adesão consciente e personalizada do processo formativo. Basta a percepção dos sinais, que estão aí, na maioria dos que são ordenados atualmente. A vida de oração está sendo substituída pelas mídias, os livros estão sendo trocados pelos smartphones e vaidades nas vestimentas, que refletem mais o anseio de autoafirmação, na maioria dos casos, a comunhão presbiteral é distorcida pelos lobbies e, ainda, a proximidade ao povo fiel de Deus, especialmente com os que estão nas periferias geográficas e existenciais, que é trocada pelas relações de conveniências. Esses sinais são fenômenos que dizem muito das motivações e problemáticas humanas dos ministros ordenados e de como as nossas estruturas formativas não estão preenchendo os hiatos existentes nos variados perfis individuais. Está faltando paixão presbiteral e missionária. Uma grande parcela está se tornando despreparada e agindo como simples ‘funcionários do sagrado’.
O presbítero dos nossos dias, considerando estas manifestações, precisa ser um ‘homem com um coração dilatado para o amor’. E num horizonte de fé, isso só pode acontecer a partir de uma profunda experiência de Deus. Algumas indagações precisam ser respondidas pelos ambientes formativos e demais casas religiosas da Igreja, a saber: Estamos formando homens e mulheres de Deus? Percebemos pessoas performadas segundo o Espírito? Há mais preocupação com o que é mundano nas casas de formação, do que com o que é próprio da ação missionária? Existe desejo de conversão permanente, com a abertura ao que é proposto pelo Evangelho? Quais as motivações que estão levando as pessoas a buscarem as nossas casas de formação? Por que e para que estamos formando padres, religiosos e religiosas? Os formandos e formandas, como também os que já estão ordenados e consagrados, estão inseridos, sendo sal e luz, pastores com cheiro das ovelhas, na vida e na história do povo fiel de Deus? Os nossos métodos formativos estão servindo para que o discernimento evangélico e espiritual aconteça neste processo de maturidade humana e vocacional? Etc.
Os fechamentos ao que pode ser aprofundado é, talvez, a principal dificuldade que temos para avançarmos. Enquanto não nos confrontarmos com a nossa verdade, inclusive enquanto instituição, não conseguiremos falar e agir com ‘parresia’, ou seja, com coragem de encarar a verdade no encontro com nossas fragilidades internas e diferenças externas. Por isso, o fechamento em bolhas e a grande dificuldade de dialogar e agir neste mundo hipermoderno que nos desafia e desacredita constantemente. Na Igreja, ainda temos muito medo da verdade; por isso, não conseguimos ser livres. Com frequência, nos esqueçamos que só ela pode nos dar a liberdade (cf. Jo 8,32). Ou ela é endógena a vida da Igreja e, para isso, precisa ‘acontecer’ na existência de cada um de nós, ou teremos a impressão de que somos uma composição, ou uma simples instituição, na qual muitos ainda não viveram o encontro pessoal com Jesus Cristo e, desta forma, ainda não se tornaram cristãos. A seguinte afirmação de Bento XVI sintetiza bem essa reflexão à qual me proponho neste momento: “Nós cremos no amor de Deus — deste modo pode o cristão exprimir a opção fundamental da sua vida. ‘Ao início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo’. No seu Evangelho, João tinha expressado este acontecimento com as palavras seguintes: ‘Deus amou de tal modo o mundo que lhe deu o seu Filho único para que todo o que n'Ele crer (...) tenha a vida eterna’” (cf. DCE 1).
Enfim, instigados a formar um coração dilatado ao amor, sem jaulas e correntes, verdadeiros e sinceros, ternos e misericordiosos, podemos amadurecer. O Papa Francisco tem nos provocado positivamente. Para os que ainda vivem no ‘país das maravilhas’, com uma mentalidade pré-moderna e com odor de cristandade, se chega a afirmar que “este Papa não gosta dos ministros ordenados”. Penso que esta não seja a questão! Ele denuncia a mentalidade clericalista e mundana de muitos de nós, que estamos ainda protegidos pela força de uma instituição que vem sendo desafiada a repensar seu modo de ser no mundo de hoje. Numa realidade na qual todos estamos “desnudados”. Numa sociedade do cansaço e do digital (cf. Byung-Chul Han), na qual tudo é visto e todos se veem sem conhecimento profundo e personalizado. Nós estamos inseridos neste tempo e nessa história. Temos que sair das nossas casinhas e construções oníricas. Só conseguiremos ser fortes e perseverantes, como ministros ordenados e consagrados, se tivermos corações dilatados para amar e ser amados. Assim o seja!
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O presbítero: homem de coração dilatado. Artigo de Matias Soares - Instituto Humanitas Unisinos - IHU