Sobrecarga de trabalho, obediência, celibato: os requisitos esperados dos sacerdotes modernos têm a ver com a crise da Igreja ou mesmo com os abusos? O historiador da Igreja Klaus Unterburger estudou como se formou essa imagem do padre no século XIX.
Unterburger é professor de História da Igreja Medieval e Moderna na Faculdade de Teologia Católica da Universidade de Regensburg, Alemanha.
A reportagem é de Renardo Schlegelmilch, publicada por KNA e reproduzida por Settimana News, 24-02-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Prof. Unterburger, em que a imagem do padre no século XIX difere daquela que conhecemos hoje?
A partir da Idade Média, tornou-se cada vez mais importante que os padres fossem bons pastores. O ideal do bom pastor era muito importante e substituiu aquilo que antes era decisivo, ou seja, oferecer com mãos puras o culto, o rito, o sacrifício eucarístico. Esses aspectos não desapareceram, mas a dimensão pastoral tornou-se cada vez mais importante. No século XIX, foram acrescentados muitos outros aspectos.
Por um lado, o fato de uma sociedade hostil à Igreja, da qual era preciso se distanciar. Por outro lado, uma reforma da formação, de modo a garantir que os padres fossem formados academicamente e respondessem a determinados padrões acadêmicos. Derivou disso que os padres passaram a ser levados em alta consideração, sobretudo, naturalmente, pelos seus fiéis, mas muitas vezes também fora da Igreja. Trata-se de sacerdotes com formação acadêmica totalmente dedicados à sua comunidade, bons pastores, que assistem os doentes e os moribundos em seu leito, e se sentem responsáveis pela salvação de todo o seu rebanho e, ao mesmo tempo, procuram viver um ideal que, na realidade, não é possível aos cristãos normais e, por isso, gozam de um alto prestígio entre o povo católico de Deus.
Trata-se, portanto, de um ideal que, por um lado, suscita reverência entre os fiéis católicos, mas que, por outro, também é frágil. Um ideal difícil de viver, que nem todos conseguem viver e no qual o fracasso também é possível.
Você destacou que a sociedade do século XIX já havia se tornado crítica da Igreja. Ao mesmo tempo, muitas catedrais famosas e até ordens religiosas de sucesso surgiram nesse período. Como esses dois aspectos se encaixam?
São duas realidades que não se excluem necessariamente. Por um lado, pode-se dizer que, desde os tempos do Iluminismo e depois no século XIX, o liberalismo se difundiu a quase todas as sociedades católicas, assim como à área protestante. As correntes críticas contra a Igreja resultaram em uma queda da influência da Igreja. A palavra-chave passou a ser anticlericalismo...
Mas, ao mesmo tempo, ocorre uma espécie de automodernização e uma renovação da Igreja. Novos institutos religiosos são fundados e novas igrejas são construídas. A burocracia também não é um fenômeno totalmente negativo, pois consegue alcançar o povo de Deus de um modo intensivo, de modo que, se por um lado uma parte da sociedade está perdida para a Igreja, por outro a sociedade é fortemente motivada e percebida como Igreja popular, como nunca antes.
Portanto, em certo sentido, verifica-se também um fortalecimento do cristianismo. São fenômenos que, em certa medida, condicionam-se mutuamente. Precisamente porque se deseja se distanciar da incredulidade e das correntes críticas da Igreja nas grandes cidades, é preciso imunizar os fiéis, equipá-los, aprofundar a sua fé, organizá-los em círculos, formá-los por meio da imprensa eclesiástica e assim por diante. Tudo isso está conectado e é reciprocamente dependente.
Hoje, muitos padres falam de sobrecarga de compromissos, no sentido de que muitos consideram as suas tarefas administrativas como coisas que não têm nada a ver com a pastoral ou a liturgia. Esse fenômeno já estava ganhando forma nessa época?
Ele foi se revelando aos poucos, pelo fato de que a burocracia aumentou a partir do Iluminismo e também no século XIX. Isso simplesmente fazia parte do “profissionalismo” do ministério paroquial. Assim como a burocracia no Estado crescia cada vez mais, assim também ocorria na Igreja. Mas, naturalmente, era algo diferente, porque as paróquias no século XIX geralmente eram muito menores do que hoje, onde existem grandes associações. Trata-se de uma dimensão totalmente diferente, que hoje recai sobre os padres devido à escassez do clero.
Hoje, em certos ambientes, defende-se que os deveres sacerdotais, como a obediência e o celibato, não devem ser levados tão a sério. A realidade – dizem – é diferente daquilo que está escrito. Esse fato também havia se manifestado antes ou se trata de um novo desdobramento?
Na realidade, o século XIX foi a época em que sobretudo os párocos se tornaram muito mais dependentes do bispo. O bispo, naquele tempo, controlava muito mais de perto a formação dos padres. Enquanto nos séculos anteriores a maior parte do tempo de formação do seminário ocorria sob o controle dos bispos, agora é possível passar todo o período de estudos – muitas vezes até mesmo antes do Ensino Médio – em um pensionato.
Antes do século XIX, os párocos, nas suas paróquias, viviam em localidades geralmente distantes do bispo e eram mais independentes do que nunca. Podia haver talvez uma visita do bispo ou algum outro encontro. A pessoa era ordenada pelo bispo, e essa era a primeira e última chance de se encontrar com ele. No século XIX, nascem os grandes órgãos como os vicariatos gerais. Atualmente, os bispos têm possibilidades totalmente diferentes por meio das disposições, dos exercícios para os sacerdotes, da formação permanente etc. para tornar os sacerdotes e também os párocos cada vez menos independentes. Tudo isso, em certa medida, também está contido no Direito Canônico. Os párocos podem ser mais facilmente transferidos pelo bispo, e as pessoas consideram um dever de obediência por parte do pároco deixar a paróquia depois de alguns anos.
Que papel exerce o tema do abuso sexual? Ele também pode ser explicado por esses desenvolvimentos?
Essa é uma pergunta muito difícil, porque faltam as fontes do período anterior a 1945 ou são de difícil acesso devido ao sigilo do confessionário. Mas é possível considerar que algumas decisões desempenham um papel nesse sentido. Desenvolvimentos que dizem respeito ao ideal pastoral. Acima de tudo, há compromissos totalmente positivos, devido ao fato de que o sacerdote, o capelão em geral, tem a tarefa de cuidar da formação dos jovens e vivem alguns períodos com eles. São coisas que talvez nenhum padre fazia dessa forma na era pré-moderna. Trata-se de fatores estruturais que, em certa medida, podem possibilitar essas coisas (os abusos).
O que você espera de um grande congresso no Vaticano que tratará da figura moderna do padre [ocorrido entre os dias 17 e 19 de fevereiro]? Com que olhar ele a observará?
Acredito que esse debate vem acontecendo muito intensamente aqui entre nós [na Alemanha] há anos e recentemente também em muitas outras sociedades, particularmente na Europa ocidental e central. Estou certo de que não é um problema europeu ou estadunidense, mas tais fenômenos também existem em outras culturas e sociedades onde esses debates não ocorrem tão intensamente, tanto na Europa meridional, quanto na oriental, quanto em âmbito não europeu. Quando isso for discutido em Roma, é importante que haja uma sensibilização geral sobre grave problema na Igreja. Roma pode ter um certo efeito de sinal e, até certo ponto, fortalecer os padrões em todo o mundo. A atenção cresce. Essa é a minha esperança.