01 Fevereiro 2022
Sem canonistas capazes de imaginação e de profecia, a Igreja não poderá se renovar.
A opinião é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em artigo publicado por Come Se Non, 30-01-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
São muitos os méritos do texto que Pierluigi Consorti escreve no último número da revista Il Regno, a respeito de uma “reavaliação do direito canônico” (Il Regno, n. 2, pp. 3-7, 2022). A questão é muito séria: o direito canônico perdeu toda a profecia, rendeu-se ao “direito positivo” e não fornece mais nenhuma verdadeira aceleração à vida da Igreja. Ele funciona quase apenas como um freio, como um freio de mão ou de pedal, ou mesmo como um servo-freio, mas pouco mais.
É singular o fato de que, para pôr as coisas em movimento, o Papa Francisco, nos últimos motu proprio, trabalhou “cinzelando” os cânones individuais, liberando energias de tradução, de ministerialidade, de correlação... Mas sempre e apenas de modo “episódico”. Porque falta uma visão de conjunto, acima de tudo por parte dos canonistas, que muitas vezes se interpretam simplesmente como “funcionários da autoridade”.
Examinemos mais de perto o discurso de Consorti, para depois acrescentar algumas questões de caráter estritamente teológico.
A observação inicial é forte: depois do Concílio, uma forte atualização da teologia e da ciência jurídica não correspondeu a uma análoga atualização do direito canônico. Em particular, tal atualização custa a receber “novas evidências” que os últimos 200 anos impuseram no nível jurídico e cultural.
A igualdade entre todos os homens e as mulheres, a proteção de terceiros, a divisão de poderes não parecem estar ali reconhecidos, enquanto persiste a pretensão de deslocar regras discriminatórias para o nível do “direito divino”. A recente reforma do direito penal canônico, em grande parte decepcionante, ou as reações eclesiais em tempos de pandemia – inutilmente burocráticas – atestam o descolamento entre a forma jurídica e a realidade humana e eclesial.
O direito canônico não intercepta o real e o reconstrói conjecturalmente. Assim, a Igreja parece forçada a interceptar o real em outros níveis (morais, políticos, veritativos...) justamente porque o mecanismo institucional de relação não funciona mais.
Por outro lado, é a própria ideia de um “código de direito canônico” que oferece um “esquema interpretativo” demasiado rígido e totalmente alheio à grande tradição canônica. Diante disso, os canonistas parecem permanecer passivos.
Consorti pede uma “mudança de paradigma” (retomando uma imagem já sugerida por C. Fantappié e M. Neri). Nessa mudança, um direito canônico se torna “periférico”, não porque se torna mais irrelevante, mas porque pode dar voz à periferia: às mulheres, aos pobres, aos migrantes, às vítimas de abuso. O caminho sinodal é o lugar não apenas ideal, mas também real, no qual pode ser aberto um debate sério, no qual canonistas eclesiásticos, canonistas leigos e teólogos possam debater sem reservas.
Já foi dito em outras ocasiões: uma teologia que não se ocupe do direito canônico permanece vítima de dogmáticas jurídicas inadequadas. Por isso, é vital ouvir a solicitação de P. Consorti: sem a profecia dos canonistas, a reforma da Igreja não se realizará.
Tento identificar a título de exemplo uma série de três “pontos dolentes” da recente história comum:
a) Faz-se uma “reforma do direito penal canônico”, e quase nenhum canonista toma a palavra para dizer como estão as coisas: ou seja, que a reforma é nominalista, e que os “crimes contra a pessoa” continuam sendo uma categoria não recebida na estrutura do texto normativo. Não se fazem reformas apenas com “novos títulos” e com entrevistas complacentes.
b) A ideologia da “obediência” impede a mais de um canonista o exercício profissional da crítica. Lembro-me bem de alguns canonistas de autoridade, na época do motu proprio Summorum Pontificum, que justificavam o injustificável, ou seja, a possibilidade de que normas litúrgicas contraditórias pudessem estar em vigor ao mesmo tempo. Um canonista de verdade e sério não pode justificar o injustificável, nem mesmo que um papa o diga. É verdade, então, que eles também encontravam mais de um teólogo indulgente nesse mesmo caminho acomodado.
c) As categorias do “direito matrimonial” e do julgamento “sobre a nulidade” são já abstratas e não conseguem captar a “história do vínculo”. Ou, melhor, como categorias jurídicas, excluem que o vínculo possa ter uma história. Assim, tornam incompreensível a história de muitos casais e famílias, que experimentam exatamente aquilo que o direito não pode ver.
Aqui também não se trata de “culpas” individuais, mas de um sistema radicalmente distorcido. Sobre o qual os canonistas deveriam começar a estudar e do qual deveriam imaginar uma profunda reforma, sem simplesmente esperar por ela como uma possível iniciativa do papa. Isso também ajudaria muitos bispos a não inaugurar os “anos judiciários” com discursos excessivamente retóricos.
No entanto, o defeito a ser sanado não é apenas jurídico, mas também teológico e eclesiológico. Trata-se de assumir a ciência jurídica em uma leitura que não seja “de funcionário”. O canonista nunca deveria trabalhar apenas com o “ius conditum”, mas também deveria estar sempre aberto ao “ius condendum”.
Isso sempre foi verdade até o Código de 1917, que deu a todos a ilusão de que se encontrava no Código a “lex perennis”, com base na qual seria possível redefinir toda a existência eclesial. O positivismo do Código, como projeção da “societas perfecta” e como modelo da “societas inaequalis”, havia nascido como “normalização institucional” diante do mundo tardo-moderno. E tinha, em si, muitas falhas do antimodernismo.
Não por acaso o Código era um dos primeiros objetos de reforma pensados por João XXIII com a convocação do Concílio Vaticano II. A reforma de 1983 assumiu alguns princípios de caráter teológico do Concílio, mas permaneceu institucionalmente em uma substancial continuidade com o Código anterior.
Assim, uma Igreja que caminhava teológica e pastoralmente segundo a mens do Concílio corresponde a um “governo” marcado por lógicas antimodernistas. A falta de “divisão de poderes” e a “irrelevância de terceiros” parecem ser hoje, precisamente no drama dos abusos, um “ponto cego” no ordenamento eclesial. É mais fácil jogar a cruz contra culpados individuais do que compreender o defeito “institucional”, que, para ser remediado, demanda uma reforma estrutural muito cuidadosa.
Sem falar de como as “representações” que a dogmática canônica levanta (e às vezes pretende impor) muitas vezes constituem uma leitura reduzida e estilizada da experiência eclesial e sacramental, à qual o teólogo e o pastor nunca pode se limitar nem ser limitado.
A oportunidade de um grande caminho eclesial que redescubra a sinodalidade como “método” tem um impacto singular sobre a competência canônica. Que pode contornar o “estilo sinodal” de três modos, com três “truques”:
a) reduzindo o Sínodo a um grande e precioso procedimento de escuta recíproca, sem tomar nenhuma decisão. Os sínodos são feitos para decidir em comum, não apenas para se escutar. Os canonistas deveriam dizer isso em voz mais alta do que os outros: ai de nós se não nos escutássemos, mas o modo último da escuta são normas mais adequadas, mais respeitosas, mais precisas, mais clarividentes. A primeira forma para realmente escutar é garantir direitos de palavra estruturais, necessários, não concedidos paternalisticamente.
b) desempacotando a escuta em “sedes” diferentes por competência. Assim, com base em uma superestrutura hierárquica que sabe “a priori” onde se deve discutir o que, então cada nível (diocesano, nacional, universal) é recomposto segundo lógicas de competência estritamente distintas, de modo que o efeito é que, a cada pedido de discussão e de escuta, recebe-se a resposta: “Este não é o guichê certo. Você deve se dirigir para outro lugar”...
c) reduzindo o Sínodo às suas “condições jurídicas do seu exercício formal”: e assim reduzindo-o apenas à forma diocesana, excluindo tudo aquilo de que o Código não fala. Como se a realidade sinodal, de debate, de escuta, de relação, dependesse das palavras normativas do Código. Um positivismo ideológico muitas vezes tempera os discursos de fiéis e pastores e os altera fortemente. Uma dogmática jurídica antiquada, que serve de filtro para tudo, torna-se a raiz de uma autorreferencialidade doentia e quase incurável.
O canonista não deve simplesmente “registrar” e “relançar” esse triplo defeito. Deve levantar a questão, propor correções, elaborar reformas. Não há alternativa: é o seu conhecimento técnico que pode recuperar o tempo perdido. Se ele não fizer isso, quem deveria fazer?
As normas canônicas são instrumentos para outras coisas. Um bispo, uma comunidade ou um canonista que pensasse em usar o Código como “fim” – e que deixasse ao Código, acima de tudo, a interpretação do real – cairia em um erro muito grave e quase irreparável. O convite formulado por Consorti a uma nova assunção de responsabilidade por parte dos canonistas no caminho de reforma sinodal da Igreja é uma palavra importante que merece ser ouvida. Sem canonistas capazes de imaginação e de profecia, a Igreja não poderá se renovar.
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O atraso teológico do direito canônico. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU