02 Março 2024
"Há 50 anos, dois países destacados do Sul Global firmaram relações diplomáticas. Agora, poderiam buscar formas de cooperação que desafiem as lógicas eurocêntricas e envolvam da reindustrialização brasileira à Amazônia e à Internet".
O artigo é de Antonio Martins, editor de Outras Palavras, em artigo publicado por Outras Palavras, 27-02-2024.
Em setembro de 2023, o Conselho de Estado da China publicou sua proposta para uma Comunidade Global de Futuro Compartilhado. O novo conceito sistematiza três pronunciamentos feitos por Xi Jinping em palcos internacionais a partir de 2013. O texto o apresenta de forma discreta. Mas a ideia tem, quando decifrada, enorme capacidade de transformar o cenário geopolítico atual, marcado pela hegemonia norte-americana e suas crises.
Pequim questiona as bases políticas e éticas da ordem internacional eurocêntrica, que domina o mundo há cinco séculos. Relações tidas hoje como naturais – a aspiração à condição de hegemon; a pressão dos países ricos sobre os pobres, para obter vantagens; a competição como mola propulsora principal do progresso, entre outras – são consideradas anacrônicas. Propõe-se, em contrapartida, as noções de que a Terra é a “casa comum”, cujo cuidado precisa prevalecer sobre os lucros e o exercício do poder; de que as riquezas devem ser partilhadas, pois a prosperidade não é aceitável se for excludente; de que um sistema internacional só será democrático se for menos hierárquico; de que as parcerias entre os países podem ser mutuamente favoráveis, em vez de leoninas.
Os próximos parágrafos destinam-se a um exercício de imaginação política. Brasil e China podem estabelecer, a partir do Sul Global, uma parceria extremamente inovadora, caso levem em conta os princípios apontados em 2023 pela liderança chinesa. Esta cooperação seria uma alternativa às relações típicas do capitalismo extrativista, que condena os países da periferia ao papel de eternos exportadores de produtos primários. Ela daria ao Brasil bases para reverter o ciclo de desindustrialização e reprimarização iniciado com a crise da dívida dos anos 1980. E ofereceria à China condições mais favoráveis para enfrentar o cerco econômico, geopolítico e militar que os Estados Unidos procuram lhe impor, por temerem perder seu poder dominante. Eis algumas das dimensões que ela poderia assumir.
A China tornou-se, há anos, a fábrica do mundo. Estima-se que seja, sozinha, responsável por 30% da produção industrial do planeta. Mas seu crescimento tem sido ameaçado pela imposição de barreiras tarifárias, pela tentativa dos EUA de negar-lhe acesso aos chips de última geração e pelos processos de reshoring e friendshoring, por meio dos quais o Ocidente busca relocalizar indústrias estratégicas em territórios que vê como “seguros”. O Brasil precisa, ao contrário, superar a desindustrialização mais dramática da história, ocorrida nas últimas quatro décadas. O país, que reunia até os anos 1980 a indústria mais avançada e diversa entre os países do Sul, é agora apenas o 16º produtor industrial do planeta, com mero 1,2% do valor gerado.
O tema voltou à pauta no governo Lula, com o lançamento do programa Nova Indústria Brasil. Mas os recursos financeiros disponíveis ainda são muito limitados. Uma parceria industrial estratégica com a China daria impulso novo ao projeto. Ela pode assumir múltiplas formas: transferência de tecnologia, facilidade para implantação de indústrias chinesas, sociedades entre empresas dos dois países. O Brasil poderia, inclusive, apropriar-se da vasta experiência acumulada pela China nas relações com o capital externo – cuja presença esteve sempre condicionada a cumprir objetivos econômicos, sociais e ambientais fixados pelo Estado.
O Brasil construiu, com base em lutas sociais e em produção intelectual de décadas, o maior sistema público de Saúde do mundo. O Sistema Único de Saúde (SUS) é um oásis de igualdade e respeito à dignidade humana, num país ultra-hierárquico e às vezes brutal. Porém, anos de subfinanciamento tornaram-no distante de sua concepção original e desatualizado – em especial em relação às tecnologias da informação e à inteligência artificial.
A China não tem um SUS. Mas é extremamente eficaz e inovadora em tecnologias ligadas à Saúde. Também empregou intensamente a Inteligência Artificial (IA) no esforço vitorioso de superação da pobreza extrema. A possível parceria salta aos olhos. O acesso às tecnologias chinesas contribuiria para revolucionar o SUS. E examinar a experiência do sistema brasileiro – inclusive sua capacidade de gerar postos de trabalho para as novas gerações –, em intercâmbio com sanitaristas brasileiros, poderia ser muito inspirador para a China.
3. Biocivilização solidária na Amazônia:
No território brasileiro está 60% da Amazônia, o bioma de maior biodiversidade do planeta. Há cerca de dez anos, o economista Ignacy Sachs viu a região como um possível laboratório de “biocivilização solidária nos trópicos”. A chave seria substituir as relações predatórias de hoje por atividades econômicas ligadas à manutenção da floresta em pé: produção de fármacos e cosméticos baseados no patrimônio genético e nos saberes indígenas, turismo ecológico, aquicultura, extrativismo sustentável e muitas outras.
Uma parceria entre os dois países pode criar, pela primeira vez, as condições para a realização deste projeto. O Brasil ofereceria à China acesso à região. Ele estaria ligado à construção de novas relações humanas e com a natureza: desmatamento zero, consentimento informado e participação ativa dos povos originários, condições de trabalho dignas, políticas públicas de excelência, infraestrutura ligada à preservação do bioma.
A China é líder mundial em geração e tecnologias de energia limpa. O território brasileiro tem imenso potencial hídrico, solar e eólico – mas ele está subaproveitado ou, em muitos casos, capturado por interesses privados. Por isso, o preço da energia é extorsivo (o segundo mais alto do mundo) e sua produção está frequentemente associada a pressões sobre comunidades camponesas.
Uma parceria com a China pode mudar este cenário. Ela envolveria a Petrobras e uma Eletrobrás reestatizada. Tecnologias avançadas, já existentes, permitiriam instalar painéis solares móveis sobre os lagos das hidrelétricas e turbinas eólicas em alto mar. Nas cidades, um programa de autogeração por placas solarse instaladas sobre os tetos de casas e prédios poderia gerar milhões de ocupações dignas. O Brasil, abundante em petróleo, pode pagar pela tecnologia assegurando à China fornecimento estável do combustível, do qual a humanidade ainda necessitará por algumas décadas. Será uma maneira muito efetiva de usar os combustíveis fósseis para a transição rumo a energias sem carbono.
O descaso pela soberania digital tornou o Brasil particularmente submisso às Big Techs e à vigilância dos Estados Unidos. As corporações norte-americanas controlam e impõem seus algorítimos e suas lógicas à navegação dos brasileiros na internet. Com um agravante: estão em poder destas empresas também os dados dos cidadãos brasileiros, do Poder Executivo, da Justiça, das Universidades e muitos outros.
A China tem corporações de internet tão desenvolvidas quanto as estadunidenses. O TikTok tornou-se a rede social que mais cresce no mundo. O Alipay faz tantas transações comerciais quanto a Amazon e a eBay juntas. O Wechat (da Tencent) e o Baidu oferecem alternativas reais ao Whatsapp e ao Google. No entanto, exceto o TikTok, nenhum deles tem a abrangência global de seus congêneres dos EUA.
Numa possível parceria, as empresas chinesas forneceriam tecnologia para uma infraestrutura de armazenamento de dados e de redes controlada pelo país e localizada em nosso território. Talvez pudessem cooperar com a criação de plataformas próprias. Em contrapartida, romperiam uma barreira que as limita ao terem, pela primeira vez, acesso ao público de um país ocidental relevante e populoso.
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Ideias como estas podem transformar as relações entre China e Brasil. O comércio bilateral multiplicou-se nos últimos anos e se aproximou de 150 bilhões de dólares em 2023. A China, sozinha, tornou-se o destino de mais de 40% das exportações brasileiras. Mas quase 100% da pauta exportadora brasileira estão concentrados em bens primários (soja e minério de ferro, sozinhos, compõem 56% das vendas). A extração destes produtos – dado o ordenamento colonial da sociedade brasileira – concentra riquezas, agrava a regressão econômica do país, elimina ou precariza trabalho e devasta o ambiente.
Às alternativas acima, poderiam ser acrescentadas inúmeros outros: por exemplo, na cooperação científica, finanças, moedas internacionais (para superar a ditadura do dólar), relações geopolíticas, forças armadas. As oportunidades para parcerias entre Brasil e China são incontáveis – desde que a relação passe a ser presidida não pelo interesse de lucro, mas pela vontade de construir, de forma consciente um “futuro compartilhado”. Possível primeiro passo: o governo brasileiro deveria aceitar o convite generoso feito pela China, e somar-se à Iniciativa do Cinturão e da Rota.
Transformar as relações internacionais está entre os desafios políticos mais árduos e complexos. A fase mais recente da globalização criou uma esfera mundial de poder para a qual não há, no momento, governança democrática. O novo conceito proposto por Pequim é um primeiro passo, pois introduz a hipótese de parcerias constituídas não a partir das lógicas mercantis, mas da reflexão sobre as necessidades reais e desejos das sociedades fazem para seu futuro. A jornada será longa. Mas como dizia Gautama, o Buda, “toda longa caminhada começa com um primeiro passo”.
*Texto produzido a convite da embaixada da China, que propôs a um grupo de brasileiros refletir sobre o futuro da relação entre os dois países.
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Brasil-China: por uma nova parceria. Artigo de Antonio Martins - Instituto Humanitas Unisinos - IHU