24 Fevereiro 2024
"Um dos traços marcantes do protagonista é seu silêncio. Mesmo não saindo de cena, ele marca presença com seu silêncio significativo e seu olhar atento aos mínimos detalhes. Em meio à sua luta diária, há sempre vislumbres de humor e beleza, por onde quer que passe, seja no trabalho ou nos lugares por onde circula", escreve Faustino Teixeira, teólogo, professor emérito da Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF e colaborador do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Um dos grandes cineastas de nosso tempo é o alemão Wim Wenders (1945 - ). Ele procede do Novo Cinema Alemão, que marcou presença na década de 1970, dando prosseguimento ao movimento da pós-nouvelle vague francesa. Em seus primeiros trabalhos, Wenders vem tocado pelas obras dos cineastas americanos. Uma viagem ao Japão, quando finalizava o seu filme Paris Texas (1984), marca uma mudança fundamental em sua visão cinematográfica. É quando aperfeiçoa o seu conhecimento da obra do cineasta japonês, Yasujiro Ozu (1903-1963), e por ela se apaixona. Um novo olhar vem facultado com filmes fundamentais, entre os quais Era uma vez em Tóquio (Tokyo Monogatari, 1953). Foi um legado que floresceu em trabalhos fundamentais de Wenders, como Tokyo-Ga, de 1985, que traduz um de seus projetos mais pessoais e intimistas. Com o influxo de Ozu, Wenders aperfeiçoa a arte de representar a realidade através da imagem.
A paixão pelo Japão ganha um novo patamar com seu filme mais recente, Dias Perfeitos (Perfect Days), de 2023, que é uma coprodução alemã-japonesa. O diretor tinha sido convidado para filmar uma série de curta-metragens de ficção em Tóquio, em torno de quatro ou cinco com cerca de vinte minutos de duração. A ideia era de poder documentar os projetos dos banheiros públicos japoneses, idealizados por grandes arquitetos do país, entre os quais Tadao Ando e Shigero Ban. Diferentemente do que ocorre em outros países, os banheiros públicos no Japão são verdadeiros exemplos de “santuários de paz e dignidade”, expressão viva de uma dimensão comunitária e de uma cultura do acolhimento.
Wim Wenders fez uma contraproposta, dado que os curta-metragens não traduziam a sua linguagem cinematográfica. Ele propõe um longa metragem, e a ideia foi logo aceita. Já no início o diretor se propunha a fazer um trabalho circunscrito a poucos locais, com a presença de um protagonista particular. Para realizar o intento, ele viaja ao Japão, e passa 10 dias em Tóquio, pois precisava ver o local com seus próprios olhos. Ele diz numa entrevista: “Não consigo imaginar uma história sem conhecer os lugares onde ela decorre” [1]. A viagem foi realizada em maio e as filmagens em outubro, durante 17 dias. Para o trabalho, Wenders contou com a preciosa colaboração de Takuma Takasaki, que ajudou no roteiro.
Durante sua estadia em Tóquio, Wenders encontrou o ator perfeito para o papel. Tratava-se de Kôji Yakusho, que o diretor já conhecia por outros trabalhos realizados pelo ator, entre os quais, Dança comigo? (1996) e Babel (2006). Para as locações do filme, Wenders escolheu o bairro de Shibuya, muito apreciado por ele. O filme concentra-se no tema dos banheiros japoneses, não se fixando, porém, nos locais como tal, mas naquele que cuida desses lugares tão singulares para a comunidade. Na visão de Wenders, o filme deveria concentrar-se naquele personagem que cuidava do ambiente: alguém “real e verdadeiramente verossímil”. Como revelou o diretor,
“a sua história importaria, por si só, e ele só nos prenderia se sentíssemos que valia a pena ver a sua vida, conhecer aqueles lugares, e todas as ideias associadas a eles, como o sentido agudo do 'bem comum' no Japão, o respeito mútuo pela 'cidade' e de 'uns pelos outros' que tornam a vida pública no Japão tão diferente da do nosso mundo” [2].
Dias Perfeitos contou com a bela fotografia de Franz Lustig ( 1967 - ). Com sua sensibilidade peculiar, Lustig conseguiu favorecer um olhar expressivo para a rotina do personagem Hirayama (Kôji Yakusho) no seu dia-a-dia. Com sua câmera na mão, Lustig conseguiu de forma graciosa manter o equilíbrio dos atos rotineiros com os ângulos diferenciados escolhidos para o seu trabalho fotográfico, evitando as repetições e o cansaço. Como apontou Guilherme Jacobs em resenha sobre o filme, o lendário diretor de fotografia conseguiu “encontrar poesia em todo canto da metrópole japonesa” [3]. Vai também um destaque especial para a trilha sonora do filme, composta por empolgantes hits dos anos 1960-1980, que inclui trabalhos preciosos de Lou Reed, Patti Smith, Nina Simone, The Velvet Underground, dentre outros.
O título do filme tem sua raiz numa canção de Lou Reed, Perfect Day, de 2007. A letra já aponta para o tema principal do filme de Wenders: a alegria de viver “apenas um dia perfeito”, com o frescor da sangria no parque, a satisfação de poder alimentar os animais no zoológico e poder curtir um filme no entardecer.
Para a realização desse dia perfeito, Wenders contou com a singular presença e atuação de Kôji Yasuko, vivendo o papel de Hirayama, um protagonista impecável. Como revelou Wenders, o sucesso do filme se deve de forma muito particular à atuação de Hirayama, que vai ganhando lugar de destaque no olhar do diretor:
“Foi o nome que decidimos dar a este homem que aos poucos foi tomando forma diante da nossa visão interior. Imaginei um homem que tivera um passado privilegiado e rico e que resvalara profundamente. E que então, um dia, quando a sua vida estava no ponto mais baixo, tivera uma revelação, ao observar o reflexo das folhas criado pelo sol que brilhava milagrosamente no buraco do inferno em que ele estava a acordar”.
O longa, de 123 minutos, concorreu no Festival da Cannes de 2023, angariando o prêmio de melhor ator para Kôji Yakusho. E agora concorre ao Oscar de melhor filme estrangeiro. A obra vem sendo elogiada e aplaudida em diversas partes do mundo, incluindo o Brasil.
Como apontou Wenders, “tudo saiu de Hirayama”. O personagem tomou conta do filme, com uma impressionante técnica de domínio do olhar. Alguém que mantinha com sua visão o controle de tudo. Foi, sem dúvida, o maior aliado do diretor. No filme, ele exerce o papel de um homem com mais de sessenta anos, marcado por um método de vida bem comum, seguindo sua rotina diária sem grandes transformações. Uma vida de baixa definição, onde repete cotidianamente seus afazeres habituais. Assume com seriedade e dignidade o trabalho de homem de limpeza de banheiros, numa vida de simplicidade e modéstia. Trata-se de alguém “dedicado, satisfeito com as poucas coisas que possui, entre elas a sua velha máquina fotográfica (com a qual ele só fotografa árvores e komorebis), os seus livros de bolso e o seu velho gravador com a coleção de cassetes que guardou da juventude” [5].
Hirayama é alguém profundamente avesso às tecnologias e sua presença em Tóquio revela um singular contraste com o ritmo frenético da cidade. É alguém que conseguiu se desvencilhar de seu passado e leva agora uma vida diferente, marcada pela simplicidade, paciência, tranquilidade, calma e serenidade. Tudo é realizado por ele em seu tempo, sem nenhuma mudança abrupta. Exerce como ninguém o papel de alguém habitado pela espiritualidade Zen, em que a vida cotidiana exerce um papel essencial. Como diz um dos textos clássicos do Zen, “o coração cotidiano é o caminho”[6] . Ou também como indica um dos grandes pilares do Soto Zen, Mestre Dôgen (1200-1253), num dos capítulos de seu Shôbôgenzô, dedicado ao tema da vida cotidiana (Kajo), ao revelar que não há nada de muito nobre nos grandes mestres do Zen: eles simplesmente comem arroz e bebem chá [7].
No filme, Hirayama acorda sempre à mesma hora, com o rumor da vizinha que varre a rua. Ajeita em seguida o seu colchão e as roupas da cama, dobrando sempre da mesma forma e colocando no mesmo lugar. Depois desce as escadas, acerta o bigode e a barba, pulveriza as plantas que guarda numa estufa interior, veste seu macacão de serviço e ajeita as coisas para ir ao trabalho. Na porta, olha para o alto, visando as copas das árvores, sempre com o mesmo sorriso singelo. Segue depois em seu furgão munido com os materiais para o seu serviço nos banheiros. Nos intervalos do trabalho, para o lanche, vai sempre à mesma praça, e aproveita para fotografar diariamente a mesma árvore, bem como os komorebi, ou seja, os feixes de luz do sol que passam por entre as folhas das árvores.
O trabalho nos banheiros é feito com dedicação única, sempre muito concentrado, higienizando com cuidado os espaços públicos, com dedicação e amor. Nada escapa ao seu olhar atento. É capaz de transformar o seu trabalho numa arte. Em seu ritmo cotidiano está sempre atento às pequenas coisas, com seu olhar inquisitivo, sempre desperto aos efêmeros encantos do dia-a-dia. Com seu jeito peculiar quebra a rotina e transforma o ritmo do momento, favorecendo um sabor especial à sua vida diária, envolvida pela “beleza de um ritmo tão regular”. Analisando esse cotidiano, Wenders pondera:
“O fato é que se aprendermos realmente a viver inteiramente no aqui e no agora, deixa de haver rotina, havendo apenas uma cadeia interminável de acontecimentos únicos, de encontros únicos e de momentos únicos. Hirayama transporta-nos para esse reino de felicidade e contentamento” [8].
Um dos traços marcantes do protagonista é seu silêncio. Mesmo não saindo de cena, ele marca presença com seu silêncio significativo e seu olhar atento aos mínimos detalhes. Em meio à sua luta diária, há sempre vislumbres de humor e beleza, por onde quer que passe, seja no trabalho ou nos lugares por onde circula. Num mundo que segue seu ritmo impiedoso e rápido, ele consegue encontrar o que é lúdico e engraçado. A atenção é a marca da sua generosidade, e seu sorriso um convite à hospitalidade. Podemos observar durante todo o filme essa marca de acolhida, com os personagens com quem interage ao longo de sua rotina diária: o seu preguiçoso colega e sua namorada, a criança que se perde no banheiro, a sobrinha que busca abrigo em sua casa, o mendigo que abraça árvores na praça etc.
Na verdade, Hirayama é capaz de descortinar num mundo habitado pela pressa e desatenção, uma ocular diversa, como se para além desse mundo houvesse um outro, habitado por singela melodia. E é essa melodia, que poucos são capazes de apreender, que opera em seu mundo interior, produzindo alegria. Em alguns momentos de sua vida, perpassam alguns sinais de seu passado superado, quando por exemplo encontra sua irmã, que aparece num carro luxuoso. Ela estranha o rumo tomado pelo seu irmão, mas ele com tranquilidade revela que é feliz, tendo tudo o que é necessário para sua paz pessoal. Para ele, a felicidade independe de grandes feitos, estando ligada aos pequenos instantes de plenitude que adornam com simplicidade a sua vida cotidiana.
[1] Disponível clicando aqui
[2] Ibidem.
[3] Disponível clicando aqui
[4] Disponível clicando aqui
[5] Ibidem.
[6] Wou-Men. Passe sans porte. Paris, Villain et Belhome, 1968, p. 79.
[7] Maître Dôgen. Shôbôgenzô. Traduction Integrale – Tome 3. Paris: Sylly, 2007, p. 306 (Kajô)
[8] Disponível clicando aqui
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Wim Wenders, Dias Perfeitos – 2023. Artigo de Faustino Teixeira - Instituto Humanitas Unisinos - IHU