22 Dezembro 2011
“O tempo interior, de silêncio, paciência e meditação, tem sido cada vez mais preterido pelo imediatismo, que é a noção de um tempo dessacralizado. A mística e a poesia, contra essa engrenagem perversa, nos fazem lembrar de um amadurecimento lento das coisas, de um vazio para ser preenchido pelo que não é vontade nossa, e do quanto pode o nosso olhar quando atenta para uma leitura da realidade em níveis que transcendem o visível e o material. Porque, antes de tudo, o que a poesia e a mística despertam é a nossa faculdade de atenção”.
O convite a essa “profunda disposição para o silêncio” nos é feito pela poeta paulista Mariana Ianelli, em entrevista por e-mail à IHU On-Line. Esse silêncio, derivado de “um estado concentrado de atenção” ao qual somos levados pela poesia e também pela mística, torna-se, assim, “uma abertura, como que uma chave de acesso, para essa via secreta do Mistério, que de outro modo não seria percebida”.
“O que acontece dentro desse espaço de atenção – afirma Mariana –, na abertura dessa passagem para o que se pode chamar de inefável, é o instante de uma configuração, quando uma verdade se dá a ver em uma figura”. A partir daí, “pensar em uma mística do feminino é também pensar nos mistérios do amor”.
Mariana Ianelli é poeta, mestre em Literatura e Crítica Literária pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP, autora dos livros Trajetória de antes (1999), Duas Chagas (2001), Passagens (2003), Fazer silêncio (2005), Almádena (2007), Treva Alvorada (2010). Colabora para os jornais O Globo, caderno Prosa&Verso (RJ) e Rascunho (PR). Sua página na internet é www.uol.com.br/marianaianelli.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Em sua opinião, como a poesia e a mística colaboram para aguçar a percepção sobre o Mistério? Que vínculos você percebe entre poesia e mística?
Mariana Ianelli – O que as torna tão próximas, a poesia e a mística, é uma profunda disposição para o silêncio, o silêncio de um estado concentrado de atenção que, justamente por estar preservado do ruído, encontra uma abertura, como que uma chave de acesso para essa via secreta do Mistério que, de outro modo, não seria percebida. E porque a palavra que vem dessa mirada, tanto poética como mística, não pretende, como faria a ciência, submeter ou reter nela mesma essa realidade mais profunda, sua expressão se dá musicalmente, na forma do canto e da prece, que são formas aladas, por assim dizer, também vinculadas entre si, que têm como origem e destino o silêncio, e são inapreensíveis no registro de uma linguagem instrumental.
O que acontece dentro desse espaço de atenção, na abertura dessa passagem para o que se pode chamar de inefável, é o instante de uma configuração, quando uma verdade se dá a ver em uma figura. Os símbolos a que recorrem os poetas e os místicos são uma espécie de receptáculo dessa verdade que, se antes pediu um estado profundo de atenção para ser percebida, agora pedirá a atenção e o coração aberto de um outro que procure ver além da figura.
IHU On-Line – Um de seus ensaios está intitulado Por uma Poética do feminino, em que você afirma que “mito, história e corpo cantam quando canta uma mulher”. Como se dá a relação entre poesia e feminilidade?
Mariana Ianelli – Penso nos mistérios de Elêusis, nos séculos e séculos em que a mulher esteve obrigada à reclusão doméstica e ao mutismo, e em seu próprio corpo, em sua potência de gerar vida dentro de si, como diferentes marcas do feminino que convergem para essa intimidade com o oculto, com o que se elabora em segredo e tem por metáfora o duplo trabalho de Penélope , que é também sua arte e seu destino, de fiar e desfiar indefinidamente num exercício de esperança e sacrifício.
Aí estão as figuras emblemáticas de Marta e Maria em uma só mulher, aquela que ao mesmo tempo comparece em um gesto eficaz diante do mundo, e esta que se guarda no seu olhar contemplativo. Isso, levado para a poesia, encarna a paciente gestação interna de um poema face o ímpeto da escrita, os maravilhosos encadeamentos de um processo intuitivo, às escuras, e a trama que daí se vai constituindo à luz do dia.
São as duas respirações de que falava María Zambrano, a da vida e a do ser, esta, oculta no silêncio, que orienta o sentido do poema, engendra musicalidade e é “o hálito do ser depositado sobre as águas primeiras da Vida”, e aquela outra, que está justamente na superfície do viver e que sofre a ameaça de interromper-se não apenas por alguma razão fisiológica, mas sobretudo se falta a respiração do ser, que sustenta em silêncio a respiração da vida.
IHU On-Line – Amor, erotismo, segredo, ventre, criação... São diversos os símbolos relacionados ao feminino que fluem entre poesia e mística. A partir de um olhar poético-místico, o que é o feminino?
Mariana Ianelli – Vejo o feminino, sob essa perspectiva poética e mística, representado magnificamente na personagem bíblica de Judite. Uma mulher que, diante do cerco à cidade de Betúlia pelo exército de Nabucodonosor, quando os anciãos da cidade se reúnem para estabelecer um prazo para a manifestação de Deus, como se isso fosse possível, coberta de cinzas, faz sua oração mais fervorosa e pede a Deus para ser habitada por três forças: palavra, astúcia e ímpeto. Nessa prece, ela diz: “Tu é que fizeste o passado, / o que acontece agora e o que acontecerá depois. / O presente e o futuro foram estabelecidos por ti, / e o que pensaste aconteceu”.
E então ela roga: “dá-me o ímpeto que pensei”, rogando, assim, pelo pensamento divino dentro dela, por um impulso em conformidade com uma vontade superior. Depois da oração, Judite se despoja do seu luto, põe seu vestido de festa, perfuma-se e se adorna com todas as suas joias, enche um odre de vinho, uma bilha de água, um alforje de farinha e com sua serva atravessa os portões da cidade para ir ao encontro de Holofernes, chefe do exército inimigo. Já pelo caminho, Judite vai seduzindo pela sua beleza os soldados que encontra e, ao ter com Holofernes, Judite o seduz também por sua palavra, uma palavra ambígua e profética, que fala de Deus enquanto Holofernes julga que ela fala de Nabucodonosor.
É assim que essa mulher permanece infiltrada entre 140 mil homens, durante quatro dias, nos quais, durante a madrugada, dirige-se ao pé da fonte da sua cidade para orar, para beber espiritualmente à fonte do pensamento divino. No quarto dia, quando Holofernes, em um banquete, pretende dormir com Judite, finalmente ela desempenha o gesto, aquele gesto preciso, movido por um ímpeto transcendente, por isso violento, de decapitá-lo com dois golpes de alfanje.
Acredito que essa narrativa, de uma mulher que afugenta um exército de milhares com a sedução da sua palavra ambígua, com a astúcia de um caminho que vai sendo urdido subterraneamente, sob o véu da beleza, e com o fervor, um fervor que se nutre da fé, e que transborda para a realidade num golpe mortal, acredito que esse episódio bíblico concentra de maneira emblemática, espiritual e poeticamente, em uma tríade perfeita, toda a potência que existe e está guardada sob a aparente delicadeza do feminino.
IHU On-Line – Por outro lado, em sua opinião, podemos também falar de uma “mística feminina” ou de uma “mística do feminino”? Quais seriam as contribuições do olhar feminino à percepção do âmbito místico da existência?
Mariana Ianelli – Creio que sim, que podemos pensar em uma mística do feminino sob muitos aspectos, um deles, a partir da visão para qual Maria Madalena é a escolhida, por amor, entre todos os discípulos, tornando-se ela a portadora de uma revelação secreta. Se lembramos das Moradas de Santa Teresa e das Visões de Hadewijch de Antuérpia, vemos o percurso de uma viagem interior, pródiga em figuras, que se vai delineando à vista dessas mulheres místicas e que nos remete ao relato visionário, de Maria Madalena em seu Evangelho, da ascensão da alma através dos céus até o silêncio e o repouso.
Não desconsidero com isso os místicos e poetas que também figuraram à sua maneira as jornadas da alma em suas etapas de purificação; apenas destaco a relevância desse vínculo intrínseco entre as viagens espirituais descritas por mulheres místicas e a visão de Maria Madalena, que provém de um conhecimento oculto cuja revelação ela, Maria, por ter sido a escolhida, tem o privilégio de transmitir aos outros homens.
A partir daí, pensar em uma mística do feminino é também pensar nos mistérios do amor. Quanto à importância da figura, é inevitável sua relação com a poesia, e aqui vale mencionar a poeta Cristina Campo, que se dedicou a refletir intensamente sobre o valor de uma poesia hieroglífica, que sintetizaria de forma cifrada, na beleza da figura, a exemplo da sarça ardente, não a arbitrariedade da imaginação fantástica mas a verdade do real.
IHU On-Line – Na literatura ou na história, quais mulheres mais encarnam essa abertura místico-poética ao Mistério e à Realidade Última, em sua opinião? Por quê?
Mariana Ianelli – Cito mulheres que fazem parte do meu cotidiano de leitura, com as quais me identifico, e que transitam por esse espaço de poesia e mística. Cristina Campo, por ter se dedicado a pensar uma poesia que é refúgio do esplendor e que, semelhantemente aos ritos litúrgicos, celebra os mistérios divinos. Cristina Campo escreveu pouco mais de 30 de poemas, e dizia que gostaria de ter escrito menos, tal era o valor da paciência e do segredo que a palavra lhe impunha. No cenário dessacralizado do pós-guerra, Cristina teve a coragem de defender, em seus ensaios e poemas, a beleza, que ela considerava uma secreta virtude teologal e que parecia inadmissível em sua época porque aceitar a beleza, segunda ela, “é sempre aceitar a morte, o fim do velho homem e uma difícil vida nova”.
Outra figura marcante é Simone Weil, cuja obra, aliás, Cristina Campo foi uma das primeiras a estudar na Itália, em meados dos anos 1950, e com a qual dialoga em seus escritos. Simone Weil e Cristina Campo compartilham valores fundamentais: a atenção elevada ao grau de prece, a importância de um estado de vigília e a necessidade de amar aquele que está ausente, considerando aí toda a responsabilidade e o sofrimento que uma dedicação como essa implica, além da disciplina para compreender os símbolos através do olhar, uma disciplina que deveria levar a inteligência a se tornar contemplação.
Uma poeta cujos textos me deslumbram, justamente porque transcendem os limites do literário, é Alda Merini, com os poemas de A Terra Santa e de Magnificat: Um encontro com Maria. Entre o seu livro de estreia, A presença de Orfeu, e A Terra Santa, Alda Merini passou cerca de vinte anos sem publicar, sete deles internada num hospital psiquiátrico. O que surge depois desse silêncio é uma transubstanciação da poesia em mística, especialmente no caso de Magnificat, um livro em que a autora dá voz à mãe de Cristo como aquela que se torna, ela mesma, a morada da Palavra, simbolizando aí a poesia quando se funde à mística: Maria como aquela que traz a boca unida à boca de Deus e o pensamento criador feito carne. Nesse longo poema que é o Magnificat, Maria é aquela que morre crucificada e ressuscita com o seu filho num “duro grão de amor”. O que alimenta a poesia de Alda Merini é a ancestralidade de um canto originário, que vem da natureza, e o que funda sua poética é o amor.
Outra poeta que passou um longo período em silêncio desde a publicação dos seus primeiros textos, e que mais tarde escreve sobre situações marianas, é María Victoria Atencia. Sua relação com a poesia envolve uma inspiração que independe da vontade e o momento subsequente da criação, que exige trabalho, esforço e técnica. María Victoria regressa à poesia depois de quinze anos com o livro Marta e Maria e, dez anos mais tarde, publica Transes de Nossa Senhora, poemas que vão pela mesma via do Mistério que Alda Merini percorreu, que falam do Verbo encarnado, da “prenhez gloriosa” de Maria, a que foi a escolhida e que por isso tem os seus sentidos incendiados.
Uma escritora, filósofa e também poeta com quem María Victoria Atencia dialoga e que encarna perfeitamente essa abertura místico-poética é María Zambrano, por tratar dessa aventura iniciática de descida ao fundo do coração, de onde se pode emergir com uma prece ou com um poema que espelha, como obra de criação, o próprio poeta na sua dimensão de criatura. Dos escritos de María Zambrano, as ruínas como lugares simbólicos de ressurreição e esperança, a morte como promessa de amor, a existência de uma palavra que nunca é pronunciada nem humanamente concebida, que permanece oculta e por isso inviolada, abrindo o espaço do silêncio da revelação, são algumas dessas passagens para o Mistério e para o desvelamento do real.
Em seu texto sobre São João da Cruz, que é belíssimo, María Zambrano se pergunta que religião é essa, do Monte Carmelo, que honra a Virgem Maria e faz dos seus santos poetas, a exemplo de São João da Cruz e Santa Teresa d’Ávila. Essa pergunta nos leva a pensar em uma mística do feminino sob a perspectiva de Maria como a portadora da palavra encarnada e da sua relação com a poesia, uma relação que justamente inspira os livros de María Victoria Atencia e Alda Merini.
Ainda pensando na Ordem do Carmo, temos esta outra mística, Edith Stein, que foi leitora fervorosa de Santa Teresa e uma figura emblemática da história, por ter sido conduzida, na trajetória da sua vida e da sua obra, ao extremo do silêncio interior, do amor e da expiação. Podemos dizer sem erro que Edith Stein encarnou o sentido espiritual do nome de Cristina Campo (cujo verdadeiro nome era Vittoria Guerrini): “a portadora de Cristo nos campos do III Reich”.
IHU On-Line – Em um de seus recentes poemas, Pietà, você diz: “Por delicadeza / Devia cada um resolver seu vestígio, / Não deixar o corpo a esmo, / Atravessado na passagem, / Sem desejo, sem enigma”. Como podemos compreender a relação entre o corpo, a nossa materialidade, e a expressão místico-poética pessoal?
Mariana Ianelli – Pensando na natureza como uma “metáfora do sobrenatural”, como diz Cristina Campo, o corpo é esse casulo que guarda a alma até ela estar pronta para o voo. É também uma espécie de receptáculo semelhante à palavra. Se há espaço nesse corpo para o que não é vontade própria nem vontade imposta por um outro, se há espaço para uma inexplicável intuição encher esse vaso até o limite, e mais: se pode essa intuição transbordar para a vida, acontece uma inversão na ordem das coisas. Passamos a atuar como que na voz passiva, em vez de mover sentimos como se fôssemos movidos. Essa é uma maneira de realizar que o corpo que dizemos nosso na verdade nos é dado, é a nossa casa e, como toda casa, um dia será abandonado.
O fato de irmos perdendo o controle sobre ele, de sermos traídos pela falta de vigor e de memória, por exemplo, isso também é uma lição que a vida impõe, em geral, para nós, a contragosto: de que esse corpo tão íntimo, tão pessoal, não é tudo ao que nos resumimos nem é sempre imediatamente reconhecível como nosso. Temos, materialmente falando, o mesmo destino da Abadia de Tintern que tanto encantou Wordsworth. E deixar esse vestígio para ser recolhido pelos outros é ainda uma lição.
O poema continua: “Mas se me fica o teu corpo / Eu te arrepanho nos braços / Com a maternidade do ofício / E lavo os teus ombros / De quanto pesou sobre eles, / O teu sexo, que a nenhum afago responde, / Lavo os teus pés, o ato mais santo. / Eu te arremato, eu te limpo da vida, / Faço com que desapareças, / Que o teu equívoco me abasteça / Da razão dos humildes. / Fardo ensoalhado esse, / De amparar o meu próprio destino”.
Porque o vestígio de alguém nos dá a ver a nossa própria morte e saber que vamos nos recolhendo uns aos outros ensina uma certa humildade e também um sentido maior de esperança. Ensina que, depois de um desastre, não importa o quão devastador ele seja, se depois a vida ressurge, então isso é a misericórdia. A observação dessas coisas passa pela vivência, pelo olhar e pela intuição, e a poesia, servindo-se disso, paralelamente à mística, encontra à sua maneira uma via de acesso para leituras da realidade em um nível além imediato, do visível e do material.
IHU On-Line – A linguagem mística muitas vezes se manifesta de forma ousada e radical. Como essa gramática e semântica se relaciona com a gramática e a semântica poética? Que relações ou distanciamentos você constata entre essas duas linguagens?
Mariana Ianelli – Não existe pudor quando se trata de ir ao mais íntimo da palavra, quando a linguagem ronda o indizível chegando ao extremo de circundar aquilo que já não é palavra. Esse mais além do verbo é o que se guarda e permanece cifrado sob a figura em uma representação simbólica. A forma ousada com que a linguagem mística se expressa se dá pelo arrojo de uma voracidade amorosa, e não somente os símbolos aos quais essa linguagem recorre, mas sobretudo uma unidade na aproximação dos contrários, se relacionam com uma lógica poética, como quando Santa Teresa diz: “Vivo sem viver em mim / E de tão alta vida espero, / Que morro porque não morro”. Desse paradoxo aparente, de um intermédio entre dois mundos, de uma palavra repleta de silêncio e um “contentamento descontente” também se faz a poesia.
O enleio de perseguir e ao mesmo tempo ser perseguido é o que alimenta o fogo da linguagem mística numa espécie de rito entre amantes que se aproximam se afastando, num jogo análogo à natureza insaciável desse amor que só se pode consumar em uma outra vida. Aqui, a relação entre corpo e alma se manifesta num elo dos sentidos físicos com os sentidos sobrenaturais e, ao mesmo tempo, em uma tensão da matéria como uma espécie de cárcere que impede a plena conciliação amorosa.
Esse fogo, esse hálito primeiro que impulsiona a criação, na linguagem poética, supõe um ponto de partida que é um estado de caos, de matéria informe anterior ao fiat lux da palavra. Nesse lugar intermediário entre o deserto e a vida, nesse espaço genesíaco entre noite e aurora, que remete à pré-história da poesia no seu parentesco com a palavra sagrada, o ato de criar materializa no poema aquela mariposa que devora a prisão do seu casulo para sobrevoar os vales e as montanhas com as asas de um canto.
Os distanciamentos que vejo em relação às duas linguagens, tal como os opostos de que ambas se alimentam para consagrar a beleza da unidade, são direções complementares de uma mesma seta, que tanto se lança para o alto como se crava no fundo do coração: a mística se servindo da figura para simbolizar o reino da outra vida neste mundo, ou relatar um itinerário espiritual, e a poesia estabelecendo, a partir da realidade sensível, uma senha mágica para ingressar nessa realidade sobrenatural, nesse instante do inefável.
IHU On-Line – Em entrevista à IHU On-Line, Faustino Teixeira afirma que você, em sua poesia, manifesta “a presença de um ‘céu absoluto’ que inspira os mais profundos enigmas. E também a busca de um Deus palpável”. Como você percebe a sua mística pessoal em sua vivência cotidiana e em sua obra de poetisa?
Mariana Ianelli – Desde os primeiros poemas já me atraía intuitivamente uma presença do sagrado. Em pelo menos dois poemas do primeiro livro (Trajetória de antes, 1999) posso reconhecer o começo dessa busca, Acalanto para Cassiana e Três vezes Cristo. Cassiana foi uma colega de escola, uma menina linda, que um dia fui obrigada a ver no meio de uma sala, deitada sobre um monte de flores. A morte dessa menina, que tinha a minha idade, me despertou para o sentido de muitas coisas, inclusive da poesia.
Nos poemas de Passagens que vieram quatro anos depois, uma releitura poética das Lamentações bíblicas e do Livro de Jó me pôs em contato com esse conflito da fé que se ressente de uma sensação de injustiça diante de uma calamidade. Há também nesse livro um poema que surgiu de um caso particular, quando meu avô sofreu um AVC e durante algum tempo ficou sem identidade. O poema diz assim: “Para honrar tua vontade, festejamos. / Esse amor rente à boca nos ensina / A crer no tempo da eternidade, / Num espaço em que a matéria é luz, enfim, / E onde o temor da morte se destrói. / Atravessamos a época de um verão que faz sofrer, / Uma serpente se levanta entre os cascalhos / E se põe contra quem vem pelo caminho. / Mas somos muitos, somos teus, e aguardamos. / Se coragem há que torne as horas mais tranquilas, / Nós não sabemos, / Apenas contamos com o retorno dos teus olhos / E ao poder da natureza suplicamos / Que recuperes a mesma identidade / Pela qual te reconhecíamos diariamente / Como o soberano autor de tua vida / E não este ser convulso que de nós se afasta / Para vagar numa esfera invernal / De mudez, alienação e indiferença. / Estamos em ti sempre que te ausentas”.
O livro que veio a seguir foi Fazer silêncio (2005), e nele o que existe é “uma paragem para ir à fonte”, como diz María Zambrano. E depois de um conflito pessoal inspirado pelo Livro de Jó, depois de realmente perceber a paciência que um poema exige, o que me aconteceu foi uma gratidão, um olhar para esse triunfo da vida, apesar dos desastres. Essa gratidão está em Almádena, um livro que foi escrito com o pensamento no Sermão de Quarta-Feira de Cinzas, de Antônio Vieira.
Além de um canto de ofício, ter visto a casa dos meus avós se transformar em uma ruína, ter passado pelo fim de uma geração da minha família, e perceber que a vida continua existindo, absoluta, agora acrescida de todos esses que vão conosco, apesar de já não estarem vivos, isso me impôs uma das tarefas mais difíceis, a tarefa de encontrar vida onde parece não haver mais nada, e de entender que essa vida que surge depois de uma casa arruinada é a própria misericórdia. Simone Weil fala a esse respeito, mas para compreender o significado disso, o livro que precisei ler foi o da vida, e o sentimento de esperança que veio dessa leitura, eu o reconheço agora nos poemas de Treva Alvorada (2010).
IHU On-Line – Como mulher e poetisa, em nossa situação contemporânea, qual o papel e o valor da poesia e da mística? Quem seriam as principais místicas-poetisas (ou poetisas-místicas) de hoje, em sua opinião?
Mariana Ianelli – Vivemos em uma época de tirania da produtividade, de apologia do que é novo e eficaz e de um aparente benefício de tudo o que nos abrevia o sofrimento, o esforço e uma aprendizagem demorada. As coisas não amadurecem mais no seu próprio tempo, amadurecem à força, como uma planta de estufa. Vejo isso atingir as relações humanas e mesmo certa dimensão da criação literária que se ancora na linguagem, nos pressupostos do método e da técnica, e pouco abre espaço para uma inspiração que não pode ser instrumentalizada.
O tempo interior, de silêncio, paciência e meditação, tem sido cada vez mais preterido pelo imediatismo, que é a noção de um tempo dessacralizado. A mística e a poesia, contra essa engrenagem perversa, nos fazem lembrar de um amadurecimento lento das coisas, de um vazio para ser preenchido pelo que não é vontade nossa, e do quanto pode o nosso olhar quando atenta para uma leitura da realidade em níveis que transcendem o visível e o material. Porque, antes de tudo, o que a poesia e a mística despertam é a nossa faculdade de atenção. E, como diz Cristina Campo, “pedir a um homem que nunca se distraia”, que não ceda “à preguiça do hábito, à hipnose do costume (...) é pedir-lhe uma coisa muito próxima da santidade numa época que parece procurar apenas, com cega fúria e arrepiante sucesso, o divórcio total da mente humana em relação à sua faculdade de atenção”.
Pensando nesse outro tempo, não no presente imediato, as “poetisas-místicas” que eu mencionaria são duas: Hilda Hilst e Maria Gabriela Llansol. A leitura da obra de Hilda Hilst, sob a perspectiva da mística associada ao lirismo, revela uma jornada interior real, profunda, extraliterária, para a qual temos como chave de acesso a beleza, no caso da sua poesia, a extravagância no caso da sua prosa. Sobre a tua grande face é um dos muitos livros de poesia de Hilda Hilst em que o “exercício da procura”, como ela mesma diz, se reveste de um esplendor de imagem e de musicalidade para invocar o “Obscuro”, o “Sem Nome”, o “Desejado”. Na sua prosa acontece a mesma procura. Em Qadós (“Kadosh”), o “Pacto que há de vir” com que Hilda inicia o texto é também onde começa “o delírio de perseguição” de que fala María Zambrano no livro O homem e o divino: o delírio de quem não sabe se persegue ou é perseguido até verbalizar esse conflito poeticamente e sair do delírio para o pacto.
Quanto à Maria Gabriela Llansol, sua poética talvez esteja bem mais próxima da mística do que da literatura porque passa ao largo da intenção de um construto e deseja “entrar no real” através do texto, abrindo aí uma espécie de clareira onde um “mundo novo e fulgurante” pode ser sentido. Para Llansol, não existe o “como se”; para ela, “uma coisa é ou não é”, o que no texto se manifesta em um lugar de envolvimento afetivo com a beleza, a vida e o pensamento, um lugar que Llansol chama de “espaço edênico”. Nesse espaço, o que importa é a misericórdia, o princípio de bondade e a vontade de conhecer.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Mariana Ianelli – Já que o nosso ponto de chegada foi Hilda Hilst e Maria Gabriela Llansol, aproveito para transcrever um poema chamado Neste lugar, que foi escrito depois de uma visita que fiz à Casa do Sol, que é também o lugar de uma passagem, um portal, um espaço edênico onde “a coisa é”, por isso não se conforma a analogias ou comparações. O poema diz: “Nenhum traço de delicadeza / Só palavras ávidas / E o tempo, / A devoração do tempo. / Um jardim entregue / Às chuvas e aos ventos. / O que para os cães / É febre de matança / E para um deus / Um dos seus inúmeros / Prazeres. / Caminho de sangue / Onde reina o amor primeiro. / Morada de súbita / Ausência do medo. / Um despenhadeiro, o céu / E uma queda / Sem alívio de esquecimento”.
(Por Moisés Sbardelotto)
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Poesia e mística: o silêncio como origem e destino. Entrevista especial com Mariana Ianelli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU