16 Janeiro 2024
"No final de cada guerra, porém, fica sempre em aberto a mesma pergunta. Se o objetivo seja vencer a guerra ou conquistar a paz", escreve Francesca Mannocchi, jornalista e documentarista italiana, em artigo publicado por La Stampa, 15-01-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Falando aos cidadãos israelenses no centésimo dia de guerra, o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu prometeu vitória e reiterou “ninguém vai nos parar. Restauraremos a segurança tanto no Sul como no Norte. Ninguém vai nos parar, nem Haia, nem o eixo do mal, nem ninguém mais". Ele definiu “o ataque em Haia contra o Estado judeu” como hipócrita, “um ponto moral baixo - disse ele - na história das nações”.
O tom é o mesmo das declarações dos últimos três meses, na primeira, cem dias atrás, diante dos cidadãos traumatizados pelos ataques de 7 de outubro, tinha anunciado que usaria todas as forças à sua disposição para aniquilar o Hamas: “Vamos destruí-los”, disse e repetiu várias vezes.
A "destruição do Hamas", no entanto, foi e continua sendo um objetivo ambíguo e difícil de alcançar na prática, três meses depois do início da guerra, os líderes das FDI têm certeza de que a situação não é favorável a “desmantelar o grupo”, bem como a enfraquecer gravemente as suas capacidades militares, como explicou à CNN Bilal Y. Saab, membro associado no Oriente Médio e Norte da África da Chatham House.
“Esse tipo de missão não pode ser completado: já o vimos falhar muitas vezes ao longo dos anos”, disse Saab. Palavras claras e realistas, que explicam tanto que a influência do Hamas vai muito além de Gaza, quanto que o objetivo de uma derrota do grupo está se revelando um projeto demasiado ambicioso na prática, embora necessário para Netanyahu para a sobrevivência da sua liderança política.
Em mais de três meses de guerra, há sinais inegáveis de que Israel alcançou alguns dos seus objetivos declarados. Os seus militares afirmam ter matado 8.000 milicianos do Hamas (número que não é possível verificar de forma independente), ter apreendido e destruído as infraestruturas militares do Hamas, incluindo lançadores de foguetes, centros de operações e grande parte da sua rede de túneis subterrâneos. Mas ainda não capturou nem matou líderes do Hamas como Yahya Sinwar, o mais alto funcionário do grupo em Gaza, não conseguiu a libertação de mais de 100 reféns ainda vivos em cativeiro e aumentou a indignação internacional pelo número das vítimas civis em Gaza.
Daí a pressão especialmente do governo Biden para mudar o ritmo da guerra.
Hoje a guerra, pelo menos nas palavras dos líderes militares em Tel Aviv, entrou numa nova fase, de uma campanha terrestre e aérea em larga escala para uma fase mais focada contra o Hamas. Falando ao New York Times, de forma anônima, funcionários estadunidenses afirmaram que o “número das tropas israelenses no norte de Gaza teria caído para menos da metade dos aproximadamente 50 mil soldados que estavam presentes até o mês passado no auge da campanha", esclarecendo, no entanto, que o momento efetivo e real dessa transição não é claro. A mudança de ritmo se traduziria, nas palavras do contra-almirante Daniel Hagari, porta-voz do exército israelense, para um menor número de tropas, menos ataques aéreos e missões cirúrgicas de forças de elite que se moveriam dentro e fora dos centros habitados da Faixa, especialmente nos redutos do sul do Hamas (Khan Younis e Deir al Balah) à procura dos líderes do Hamas para eliminar e dos reféns ainda detido para serem resgatados.
Se é verdade que a nova fase da guerra começou com um desligamento lento, mas gradual das tropas, é igualmente evidente que as operações militares continuam como antes. A maior parte do exército permanece concentrada no Norte e no centro da Faixa, onde os combates não diminuem. Como não diminui a crise humanitária, porque se é fácil negar os planos e as declarações sobre as estratégias militares e os cenários futuros (na verdade sempre incompletos nos detalhes), é difícil negar os números atuais.
A crise humanitária está se agravando. Os hospitais que ainda funcionam parcialmente estão em situação de colapso, a falta de abastecimento de água no sul de Gaza aumentou o risco de uma rápida propagação de doenças. E, além disso, as estimativas dos mortos. Na semana passada, a organização britânica Oxfam declarou que o balanço cotidiano das vítimas palestinas em Gaza desde o início das operações excede o de qualquer outro grande conflito do século XXI: de acordo com o Ministério da Saúde de Gaza, pelo menos 23.469 palestinos morreram e 59.604 ficaram feridos, a maioria deles mulheres e crianças, enquanto os sobreviventes continuam com alto risco de doenças, de frio e de fome. Para a Human Rights Watch, Israel está intencionalmente matando de fome a população palestina, violando o direito internacional.
E também nesse aspecto é evidente a divergência entre o governo de Tel Aviv e a comunidade internacional.
Entrevistado pelo Haaretz há poucos dias, o ministro da Cultura, Miki Zohar, membro do Likud, respondendo a uma pergunta sobre a fome em Gaza, disse que a fome não existe. “Talvez uma carência", mas fome "Fome" é um termo muito extremo -. Essa não é a situação em Gaza.
“Quando teremos terminado de destruir a organização, teremos que entregar o bastão da administração civil a um determinado órgão, cuja identidade ainda não conhecemos".
Nada está claro sobre o futuro, portanto. Mas os palestinos continuam a morrer, ao ritmo de bombardeios que os empurram para o sul. Um milhão e 900 mil deslocados desde o início dos combates, 85% da população, mais de milhões fugiram da parte norte de Gaza para a parte meridional, seguindo as instruções de Israel, quadruplicando a pressão sobre as cidades que fazem fronteira com o Egito.
Imagens e vídeos evocam a cada dia que passa o antigo trauma dos palestinos, a Nakba, a catástrofe que gerou deslocamento de mais de 700 mil palestinos após a guerra árabe-israelense de 1948. Sair da sua terra natal sem poder voltar. E sobre isso as declarações dos ministros de Netanyahu continuam a não ser tranquilizadoras. Avi Dichter, ministro israelense da agricultura e do desenvolvimento rural, afirmou que o deslocamento em Gaza será lembrado como a " Nakba de Gaza de 2023".
E depois, claro, Bezalel Smotrich, o ministro das Finanças do partido sionista religioso de extrema direita, que já em 2017 havia publicado um programa sobre a questão israelense-palestina, intitulado “Plano Decisivo” para propor a anexação da Cisjordânia, situação em que os palestinos teriam de escolher se permanecer em território israelense sem plena cidadania (ou seja, sem direito de voto) ou optar por ir para outro lugar. Mas como evidencia numa análise recente Eyal Lurie-Pardes, pesquisador visitante do programa sobre a Palestina e os assuntos israelenses-palestinos do Middle East Institute, também outras figuras aparentemente mais “moderadas” do partido Likud, como Tzachi Hanegbi, atual chefe do Conselho de Segurança nacional de Israel, defendem “que os palestinos deveriam ‘lembrar’ as guerras de 1948 e 1967, porque quando quiser detê-las já será tarde demais. Será depois da Terceira Nakba".
Por essa razão, para muitos analistas, a nova Nakba já está em curso, e é precisamente neste ponto sobre o deslocamento forçado dos palestinos que está se movimentando parte da negociação diplomática internacional, porque, como a análise de Eyal Lurie-Pardes para o Haaretz destaca, “Assim como está, a guerra em curso em Gaza tem o potencial perigoso de evoluir com dinâmicas semelhantes às guerras de 1948 e 1967. Nos dois conflitos anteriores, Israel aproveitou a situação para remodelar os territórios palestinos e conter mais palestinos em menos território".
A nova fase da guerra, que responde mais a pressões internacionais do que a uma efetiva vontade de mudança de ritmo, dificilmente levará aos habitantes de Gaza as ajudas de que necessitam. Certamente Netanyahu tem de lidar com a queda de popularidade e com as consequências econômicas do conflito.
Durante o seu discurso de dois dias atrás prometeu apoio: “Vamos apresentar um orçamento que garanta a continuação da guerra: mais dinheiro – muito mais – para a segurança. Mais compensações e subsídios para os reservistas, as famílias, os trabalhadores autônomos e para todos aqueles que suportam o peso." Mas também nesse caso, números são números.
A guerra contra o Hamas está custando ao Estado de Israel aproximadamente 270 milhões de dólares por dia e é destinada a ter um forte impacto na economia do país. Num relatório de novembro, a agência de rating Moody's previu uma contração da economia de 1,5% em 2024, com 18% da força de trabalho israelense ausente devido à guerra, prejuízos que dependem tanto da mobilização de reservistas quanto das perspectivas de duração do conflito. “Embora a economia tenha resistido bem aos choques das últimas duas décadas, o atual conflito militar colocará à prova a resiliência econômica de Israel”, disse Kathrin Muehlbronner, vice-presidente sênior da Moody's, no mês passado.
Estimativas semelhantes são aquelas de um relatório do Instituto de Estudos de Segurança Nacional israelense: o custo total da guerra poderia atingir a cifra de 150.200 bilhões de shekels. "Não esperamos que o governo israelense enfrente qualquer dificuldade no financiamento de déficits substancialmente até mais elevados, dadas as suas amplas e diversificadas fontes de financiamento e o forte apoio da diáspora israelense", disse ainda Muehlbronner, mas não há dúvida de que os custos civis e os custos de defesa terão um impacto e um peso adicional na resistência política de Netanyahu.
Os funcionários israelenses declararam que a operação será longa, durante todo o ano e além, mas as estratégias de saída continuam a ser nebulosas, a divisão entre vértices militares e políticos sobre o futuro da Faixa é cada vez mais aguda. Por um lado, há aqueles que pedem aos civis israelenses que se reinstalem em Gaza, por outro, ministros como o da Defesa, Yoav Gallant, que descartou publicamente o retorno de uma presença civil israelense, mas apenas contemplou uma “gestão” da segurança, "requalificando" membros das forças da frágil Autoridade Palestina. No meio, as vítimas. Mais de dois milhões de civis presos e famintos na Faixa de Gaza.
“O Estado de Israel, as FDI e as nossas forças de segurança estão travando uma guerra justa e moral. Esta campanha de difamação internacional não enfraquecerá as nossas mãos e a nossa determinação de lutar até ao fim”, disse Netanyahu pelos cem dias de guerra.
No final de cada guerra, porém, fica sempre em aberto a mesma pergunta.
Se o objetivo seja vencer a guerra ou conquistar a paz.
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100 dias de guerra. É por isso que hoje é impossível acreditar na paz. Artigo de Francesca Mannocchi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU