Inteligência artificial e trabalho na periferia do capitalismo
"As transformações digitais estão tensionando as formas de trabalhar, mas também de se organizar no âmbito sindical. As respostas na América Latina até agora são embrionárias. Ainda é necessário um maior reflexão sobre a inteligência artificial e as transformações no mundo do trabalho a partir do Sul Global".
O comentário é de Mónica Sladogna, diretora de projetos da Fundação Friedrich Ebert (FES) na Argentina, e Svenja Blanke, diretora do escritório da FES na Argentina e da revista Nueva Sociedad, em artigo publicado por Nueva Sociedad, setembro e outubro de 2023.
O mundo está se transformando, e está fazendo isso em grande velocidade. A adaptação à crise climática e a digitalização são as forças motrizes dessa mudança. Embora estejam intimamente relacionadas, muitas vezes são tratadas separadamente. No entanto, sem a inteligência artificial (IA), não será possível combater as mudanças climáticas, e, ao mesmo tempo, a IA e o setor de tecnologia digital exigem muita energia. Essa mesma energia, que não provém de fontes renováveis e limpas, será responsável por 14% das emissões globais de gases de efeito estufa até 2040 [1]. A digitalização também está transformando o mercado de trabalho na América Latina. A mudança já está aqui, embora ainda não seja fortemente sentida em algumas profissões, mas em outras está virando tudo de cabeça para baixo. Os mercados de trabalho da "periferia" enfrentam um futuro muito incerto.
China e Estados Unidos estão ditando o ritmo: tanto as empresas quanto os próprios Estados disputam o domínio das tecnologias de IA; a Europa investe menos, mas é pioneira em regulamentação. O restante do mundo, ou seja, o chamado Sul Global, teve até agora um papel secundário: limitou-se a observar e consumir. No entanto, a digitalização do trabalho também está avançando na América Latina. Afeta tanto os trabalhadores individuais quanto o coletivo: os dados são usados e explorados, as máquinas e os robôs assumem o controle; o tempo é registrado digitalmente; as esferas privada e profissional se confundem, especialmente nos empregos de colarinho branco; os dados estão cada vez mais determinando o trabalho, e isso acontece silenciosamente. A digitalização por meio da IA não ocorre apenas como uma conquista técnica, mas é uma "política por outros meios", buscada deliberadamente. E, como política, é necessário analisar os recursos naturais que a impulsionam, a energia que consome, o trabalho oculto na cadeia de suprimentos e a grande quantidade de dados extraídos de cada plataforma e dispositivo que usamos todos os dias [2].
Kate Crawford, cofundadora do Instituto AI Now, afirma em seu Atlas de Inteligência Artificial que os sistemas de IA contemporâneos dependem da exploração dos recursos energéticos e minerais do planeta, da mão de obra barata e dos dados em grande escala; que os sistemas de IA não são neutros, não são autônomos, racionais ou capazes de discernir algo sem treinamento extenso e intensivo. São sistemas projetados para servir aos interesses dominantes já existentes; são, finalmente, um certificado de poder [3]. Crawford deixa isso bem claro ao escrever que a IA não é artificial nem é inteligência, mas material feito de recursos naturais, energia, trabalho humano, infraestrutura, logística, histórias e classificações. Este é um aspecto muito importante muitas vezes ignorado ou negado pelo discurso dominante: focar ou reduzir a IA às suas dimensões técnicas oculta os interesses econômicos e políticos por trás.
A IA reflete e reproduz relações sociais e interesses dominantes. Se a América Latina quiser ser uma participante ativa nas mudanças relacionadas a ela, os países individualmente, os atores políticos chave e a região como um todo devem fazer perguntas desconfortáveis e desafiar os pressupostos generalizados. Porque as vozes daqueles que mais sofrem o impacto da IA (ou das mudanças climáticas) estão ausentes do processo de design e tomada de decisões: é preciso ouvir as vozes do Sul global e de sua força de trabalho. Portanto, as visões críticas pedem a desconstrução dos interesses e poderes por trás de uma questão que parece neutra, mas está longe de sê-lo. É necessário colocar a transformação digital na mesa das políticas prioritárias e em um contexto político mais amplo.
A América Latina enfrenta essa transformação de maneira prejudicada em vários aspectos, tanto devido aos numerosos desafios políticos e sociais internos de muitos países quanto à existência de uma infraestrutura digital inadequada, grandes lacunas na educação e treinamento profissional, e falta de estratégias no campo da transformação energética e digital. Complica ainda mais a situação o fato de a região não ter uma voz comum, nem mecanismos que funcionem para articular interesses. Pouco parece restar da América Latina da primeira década do século XXI, com suas expectativas de crescimento, suas políticas progressistas inovadoras e sua aposta em uma maior autonomia.
Neste contexto, queremos destacar a conexão econômica, comercial e, portanto, política, entre a digitalização e os mercados de dados, a energia que os sistemas de IA consomem e os recursos energéticos e minerais que a América Latina oferece à economia mundial em transformação. Todas as pessoas preocupadas com o desenvolvimento da região deveriam estar alertas. Um novo extrativismo está se somando ao antigo, enquanto este último se redefine: ao extrativismo de recursos, junta-se o extrativismo de dados no contexto da transformação energética. A nova extração coleta dados em massa de qualquer pessoa que se conecte à internet, e a transição energética global requer novos minerais como o lítio, um recurso-chave para a descarbonização do transporte e para a portabilidade das tecnologias da informação e comunicação. Assim, a pesquisadora Luciana Benotti descreve o papel da região latino-americana nesse grande negócio de transformação: "Agora fornecemos dados brutos e recebemos IA quase da mesma maneira que exportamos grãos e importamos comida processada". E pode-se acrescentar: "da mesma forma que exportamos lítio e importamos tecnologias de ponta" [4].
A maioria das economias latino-americanas depende da exportação de matérias-primas e produtos agrícolas. A baixa diversificação das economias nacionais, o baixo investimento em ciência e tecnologia e os quase nulos registros de patentes [5] são aspectos que indicam a atual falta de capacidade da América Latina para participar mais ativamente nos processos de transformação em curso. Além disso, os índices de desigualdade mais altos do mundo e os elevados índices de pobreza exigem atenção política imediata e, portanto, não há tempo para pensar a médio ou longo prazo na inserção nos debates sobre o futuro do mercado. A transição energética do Norte Global oferece mais uma vez à América Latina a oportunidade de explorar "novas" matérias-primas, ainda pouco exploradas, seja o lítio, minerais raros ou similares. Este novo mercado tem um enorme potencial; a região possui matérias-primas que serão necessárias na economia do futuro. Ao mesmo tempo, existe o perigo de que, nessa economia, a América Latina continue sendo fornecedora de matérias-primas. Até agora, pensou-se pouco na participação regional na cadeia de valor. Os críticos de esquerda falam até mesmo de uma nova fase do colonialismo, apenas que desta vez com roupagens verdes.
Não haverá um mundo utópico onde a IA resolva todos os nossos problemas atuais, mas também a IA não será o fim do mundo. A tecnologia não é boa nem má por si só, ela pode substituir o trabalho humano, mas também pode criar novos empregos em outras áreas. Depende também da capacidade de intervenção, antecipação e monitoramento de atores sociais como sindicatos e trabalhadores. Em última análise, trata-se de ajudar a moldar o mundo para que não sejam outros, com interesses diferentes, que o façam, como tem acontecido até agora. Para isso, é necessário conhecimento, informação, educação, novas ideias, iniciativas que não se limitem às empresas. São necessários representantes que lidem com o assunto, que tenham penetrado nele pelo menos parcialmente. Porque se deixarmos que atores poderosos da economia ou da política controlem nossa atenção, perderemos nossa autonomia diante do "sistema".
Quase todos nós somos trabalhadores das novas tecnologias: obviamente, aqueles que programam, mas também escriturários, funcionários públicos, professores, motoristas, médicos, mecânicos ou agricultores. Todos trabalhamos com computadores, com sistemas de IA, produtos tecnológicos diversos para controle, monitoramento e avaliação. E as lacunas que já caracterizam a América Latina – especialmente em seu mercado de trabalho – podem se aprofundar ainda mais: "com a digitalização, a demanda por habilidades se transformará", lê-se em todos os lugares. É necessária uma maior ênfase em habilidades digitais, como programação, análise de dados, IA, cibersegurança e gestão de projetos tecnológicos.
A digitalização e a automação levam à substituição de certas tarefas e empregos por tecnologia avançada. Isso pode afetar inicialmente empregos que envolvem tarefas rotineiras e repetitivas, mas não apenas eles. Portanto, alguns empregos desaparecerão ou evoluirão. Por sua vez, a criação de novas tecnologias, aplicativos e serviços digitais pode gerar demanda por profissionais em áreas emergentes, como desenvolvimento de software, gerenciamento de dados, marketing digital e comércio eletrônico. Mas em termos concretos, isso ainda não pode ser quantificado. Além disso, a expansão da economia digital pode levar à criação de empregos em setores relacionados, como logística e suporte técnico. A digitalização também facilita o trabalho remoto e a flexibilidade laboral e apresenta desafios de inclusão.
A brecha digital, a falta de acesso à internet e a desigualdade na distribuição de tecnologia são desafios importantes em muitos países da América Latina. Portanto, a tarefa explícita dos tomadores de decisão deve ser garantir que todas as pessoas tenham acesso à tecnologia e às habilidades necessárias para se beneficiar da economia digital. Um programa progressista (tanto em nível local quanto nacional) deve priorizar o acesso à internet, tratar a educação digital como essencial e incluir programas de treinamento para garantir que ninguém fique para trás. A Central Única dos Trabalhadores (CUT) do Brasil [6], a Central de Trabalhadores Argentinos (CTA) [7] e a Confederação Geral do Trabalho (CGT) [8], ambas da Argentina, e a Central Única dos Trabalhadores (CUT) [9] do Chile expressaram em várias ocasiões sua preocupação com o impacto da digitalização no emprego. Já em 2019, Daniel Gaio, secretário nacional de Meio Ambiente da CUT brasileira, manifestava sua preocupação a respeito:
"Uma questão determinante no processo de acumulação de capital e diretamente relacionada a essa nova distribuição são as cadeias globais de produção, onde existe uma clara divisão entre países que concentram tecnologia de ponta, desenvolvimento de produtos com alto valor agregado e concentração de "propriedade intelectual", e outros países relegados à produção com baixo valor agregado, baixa capacidade de inovação tecnológica, que se resignam apenas a reproduzir ou montar produtos e equipamentos (…) Ao estruturar grandes cadeias de produção, as empresas transnacionais podem transferir as cargas sociais, ambientais e trabalhistas e as ameaças à instituição para os últimos elos da cadeia, para empresas locais localizadas nos países do Sul, enquanto os principais benefícios se concentram nas mãos das empresas-mãe". [10]
Ele destacou ainda que o tema das "tecnologias e seu papel na economia não é uma questão de determinismo tecnológico, mas de seu controle e aplicação em benefício da maioria da população. O Sul Global, em geral, tem pouca participação nesse debate" [11].
O que deve ser incluído rapidamente na agenda são políticas e demandas que promovam a inclusão digital. O futuro do trabalho de qualidade não deve ser apenas fonte de preocupação, mas também coloca a necessidade de lidar com seus impactos antecipando-se a eles.
A geração de cidadania em termos de acesso a direitos tem dois pilares: educação e emprego/trabalho, que hoje estão sendo questionados em relação à sua capacidade de lidar com as transformações mencionadas. As organizações sindicais estão preocupadas com o futuro do trabalho, mas parecem ainda carecer de capacidade para compreender e enfrentar a profundidade das mudanças. Questões como salários, inflação, desigualdade ou precarização preenchem a agenda sindical, enquanto a inteligência artificial avança sobre profissões, ocupações, mercados, setores, identidades, direitos e interesses dos trabalhadores. O problema, então, é passar da preocupação para a atuação sindical nessas questões.
A história do século XX mostra como as mudanças produtivas impactaram os trabalhadores e suas organizações. O taylorismo atacou a profissão, impôs a divisão técnica e social do trabalho e garantiu o controle de tempos e métodos. O cronômetro fez sua entrada triunfal no mundo do trabalho. As mudanças impactaram aqueles que trabalhavam e a forma de representação política de seus interesses: os sindicatos. O fordismo levou a especialização ao extremo ao estendê-la a ferramentas, máquinas, equipamentos e trabalhadores: a linha de produção impôs seus ritmos. Foi uma época em que o desenvolvimento social e econômico convergiram junto com o pleno emprego e a produção em massa de bens padronizados, moldando a sociedade salarial, com seus sindicatos por ramo ou setor.
Mas a partir da década de 1970, o toyotismo consolidou um novo modelo de produção que demanda trabalhadores polivalentes, polifuncionais, que compartilhem os objetivos da empresa e atendam às necessidades do cliente. Sua forma de representação sindical não é o sindicato por ramo, mas o sindicato por empresa. Os saberes coletivos que fomentavam os processos de identidade e solidariedade das classes trabalhadoras são colocados sob o foco da transparência empresarial. Uma empresa mínima, uma rede de fornecedores, um mercado em constante mudança que exige produtos diferenciados, atender às necessidades do cliente just-in-time: o modelo de integração horizontal vai do fornecedor ao cliente, mas desintegra o coletivo de trabalho. A "autonomia responsável" do trabalhador entra em cena junto com a automatização.
A derrota sindical nos EUA e no Reino Unido nas décadas de 1980 e 1990, as ditaduras cívico-militares na América Latina e o neoliberalismo vitorioso apresentavam-se como a cura para os supostos males causados pelo Estado de Bem-Estar. As políticas neoliberais impactaram a região através das receitas propostas pelo Consenso de Washington. Houve a transição de políticas universais para focalizadas, de políticas passivas de emprego para ativas – aquelas que colocam sobre os indivíduos a responsabilidade por sua situação laboral –, da regulamentação para a desregulamentação dos mercados, da classe trabalhadora para o empreendedor do próprio destino.
Essas transformações impactaram a América Latina, marcada pela precarização, desigualdade e informalidade, em vez do desenvolvimento industrial com pleno emprego promovido pelo Estado de Bem-Estar europeu. Em 2011, Enrique de la Garza chamava a atenção para compreender as novas realidades trabalhistas. Sua análise do mercado informal no México descreve a configuração de outros espaços de trabalho, com relações laborais que envolvem outros atores no controle sobre o processo de produção e na construção social da ocupação. Seu apelo era para "repensar o âmbito dos direitos trabalhistas, das identidades coletivas e das formas de organização dos trabalhadores" [12].
De la Garza escrevia dez anos após a difusão massiva da internet e um ano após o surgimento do smartphone, com sua possibilidade de uso em larga escala. Essas tecnologias combinadas transformariam o mundo conforme o conhecíamos: globalização em tempo real e livre circulação de mercadorias, finanças e pessoas. Em 2023, as mudanças tecnológicas na América Latina ainda são marcadas pela desigualdade e exclusão: duas quintas partes da população ainda não têm acesso aos benefícios da conectividade digital. No entanto, segundo um relatório da GSMA [13], até o final de 2021, o número de assinantes móveis únicos na região atingiu aproximadamente 450 milhões, e espera-se que chegue a 485 milhões até 2025, representando 73% do total da população; o maior aumento se concentrará no Brasil e no México, e um grande crescimento é previsto em mercados com baixa penetração, como Guatemala e Honduras.
Graças a essas transformações, aqueles que trabalham se apropriaram dos meios de produção, como propõe a teoria marxista? E com isso, eles tomaram posse dos instrumentos de poder e submissão? Eles se libertaram do controle patronal ou isso se tornou invisível e onipresente?
A crise de representação sindical já era percebida nos anos 80, com o surgimento de novos sujeitos: mulheres e jovens, que expressavam múltiplos interesses além do trabalho. E essa crise se ampliou com a massificação das novas tecnologias. Da classe trabalhadora pensada como um todo homogêneo, passou-se para a fragmentação de experiências e a diversidade de interesses que levam ao individualismo meritocrático. As mudanças tecnológicas e organizacionais impactam os trabalhadores e, com isso, as formas de representação sindical do século XXI, em quatro dimensões críticas: (a) as formas de controle; (b) os espaços de trabalho; (c) os tempos de trabalho; e (d) a força de trabalho ou os dados.
O uso generalizado das tecnologias de informação e comunicação, juntamente com a disseminação de dispositivos celulares, proporcionou uma fonte massiva de geração de dados e, com isso, a gestão algorítmica de objetos e humanos. A ampla disponibilidade de dados favorece o uso de tecnologias baseadas em IA, como big data, mineração de dados (data mining) e aprendizado de máquina (machine learning), que permitem analisar dados, avaliá-los e tomar decisões sem intervenção humana. Isso acarreta transformações gigantescas no que chamamos de "trabalho", juntamente com formas de controle que prescindem dos seres humanos "visíveis".
A portabilidade das novas tecnologias modifica as formas de controle do trabalho: "o mundo da interação cara a cara está enferrujando, deslizando para o passado junto com os livros e os relógios" [14]. Hardware cada vez mais portátil e interconexão entre as máquinas (Internet das Coisas) favorecem o desenvolvimento de um software mais invasivo, invisível e autônomo, em setores como agroindústria, finanças, administração pública, transporte e saúde, que requer cada vez menos pessoas e mais sensores.
O processo também gera resistências: o Ministério do Trabalho da província argentina de Córdoba relatou o aumento das denúncias de controle dos trabalhadores pelo uso de câmeras de segurança instaladas nos locais de trabalho em empresas metalúrgicas e autopeças [15]. A maioria dos conflitos refere-se a câmeras colocadas em locais estratégicos das instalações, de onde se controlam os movimentos dos funcionários, como a entrada e saída dos banheiros, ou a permanência nas áreas de alimentação ou descanso. "As empresas não usam as câmeras para segurança, mas como controle do pessoal", reclama Rubén Urbano, secretário-geral em Córdoba da União Obrera Metalúrgica (UOM); "embora a legislação vigente proíba apresentar como prova do eventual mau desempenho de um trabalhador as imagens tiradas por uma câmera, na prática, as empresas as utilizam com esse propósito".
Mas isso é apenas a ponta do iceberg; o problema do controle não se limita às câmeras, envolve também sensores em celulares, tablets, carros, semáforos, fotos, mídias sociais. Dispositivos e aplicativos geram informações sobre onde estamos, o que fazemos, como fazemos, quais são nossas preferências, nossos gostos, as opiniões que os outros têm sobre nós. E somos instados a participar desse controle: basta prestar atenção às vozes dos serviços de atendimento ao cliente, que, ao final da comunicação, nos pedem para avaliá-los de 1 a 5 ou de 1 a 10, sem que ninguém defina se está sendo avaliado o atendimento, o serviço ou a organização. A discussão sobre o desempenho já não é com o chefe ou capataz, é com os dados, que são solicitados aos clientes e fornecidos na maioria dos casos por eles voluntariamente. E essa discussão já está perdida de antemão se o sindicato não tiver participação no design dos programas de controle.
O poder das novas tecnologias de comunicação para integrar e controlar o trabalho, apesar da dispersão laboral e dos processos de descentralização empresarial [16], está a serviço da organização capitalista. A organização sindical, em geral, desconfia dessas mudanças e exige negociações presenciais, uma territorialização da ação coletiva diante da crescente virtualização. E o impacto das tecnologias de controle não se limita ao setor formal; no setor informal, o uso de câmeras para controle introduz novos atores - transeuntes, vizinhos, motoristas - e aprofunda os efeitos sociais desarticuladores das relações sociais e da identidade, como previa De la Garza [17].
Não se trata de automação nem da "fantasia" da fábrica sem trabalhadores (as trabalhadoras foram demitidas primeiro), mas da possibilidade de controlar permanentemente aqueles que trabalham, não importa onde, não importa quando, nem como. Crawford resume isso assim: "As lógicas de eficiência, vigilância e automação convergem hoje para a atual virada em direção às abordagens computacionais para gerenciar o trabalho (...) nos sistemas de inteligência artificial, a experiência do trabalho tem mudado em relação ao aumento da monitorização, avaliação algorítmica e modulação do tempo" [18].
Para entrar na era da inteligência artificial, as novas tecnologias combinam a redução do tamanho e peso dos dispositivos (sem perder capacidade energética, de memória e processamento de dados) com elegância e conforto. Esses equipamentos, como já mencionado, dependem de um recurso natural concentrado na América Latina: o lítio, que permite o design de acumuladores leves, de pequeno tamanho e diversas formas, com alto desempenho e úteis para uso em qualquer lugar.
A portabilidade redefine o espaço de trabalho. A mudança é sutil: deixamos o local fixo e vamos para os espaços de trabalho configurados graças aos meios de produção privados. O laptop, o celular e o relógio inteligente nos acompanham a todo lugar, apagando assim os limites entre público e privado, até mesmo o íntimo. A impressão 3D transforma quem trabalha com essa forma de produção aditiva em produtor e consumidor. A classe trabalhadora parece ser coisa do passado. O trabalho no setor informal, o teletrabalho ou o trabalho em plataformas desafiam as formas tradicionais de representação [19]. Processos de terceirização e uma crescente desterritorialização avançam com o home office ou o trabalho remoto.
No entanto, isso não significa o fim do trabalho; na verdade, estamos trabalhando cada vez mais. Trabalhamos em vários espaços, alguns presenciais e outros virtuais, o que permite combinar em uma única pessoa relações de emprego e de trabalho (formais e informais). Então, a quantos sindicatos teremos que nos filiar? Quando usamos serviços bancários online, nos tornamos trabalhadores bancários? Quando gerenciamos a compra de um ingresso de cinema por meio de uma plataforma, para quem estamos trabalhando e que tipo de trabalho é esse que pagamos para fazer?
"A medição do trabalho constitui uma preocupação central para a gerência (…) A gestão do trabalho implica a compra do tempo das pessoas e, em seguida, sua utilização efetiva (…) [durante a jornada acordada]" [20].
A conectividade modifica a percepção do espaço em termos de público e privado, mas também o tempo de trabalho. São criadas condições para uma experiência de trabalho de novo tipo: ao longo da vida, durante todo o dia e em qualquer lugar. Trata-se de uma nova configuração da jornada de trabalho, da semana de trabalho, dos turnos.
As plataformas de trabalho são uma árvore em uma floresta extensa, a porta de entrada para a máxima desterritorialização e a gestão autônoma do tempo de trabalho. A liberdade na forma de trabalho remoto, auto-organização e gestão por meio de algoritmos. Surge um novo tipo de trabalho, um novo tipo de trabalhador/trabalhadora, uma relação laboral ampliada (clientes, transeuntes, vizinhos ou consumidores podem participar avaliando, denunciando, controlando) e a necessidade, mas ainda não uma demanda, de uma nova forma de representação de interesses. A terceirização e sua consequência, o crescimento do setor de serviços, nos colocam diante de uma sociedade de consumidores que exigem disponibilidade imediata para o atendimento ao cliente (serviços técnicos, de saúde, assistência de emergência, assistência veicular, correios, restaurantes, hotéis). A internet contribui para o trabalho globalizado ao permitir o atendimento de serviços demandados em outros fusos horários. A jornada de trabalho se estendeu para 24/7, ou seja, estar disponível 24 horas por dia, 7 dias por semana. Como esses fenômenos se relacionam com a reivindicação sindical de redução da jornada?
A experiência de trabalho não se desenvolve apenas em um espaço de trabalho comum; baseia-se também em uma dimensão temporal coletiva, como a jornada de oito ou seis horas, o turno. A essa definição heterônoma da jornada e do espaço de trabalho estão associados direitos coletivos: vagas, turnos, distribuição semanal, horas extras, licenças, prêmios. O que acontece quando os direitos estabelecidos para um coletivo se confrontam com interesses individuais, autônomos? O que acontece quando os direitos coletivos são percebidos como privilégios? De acordo com uma pesquisa publicada pela The Economist, a Argentina lidera a lista de países da região onde os trabalhadores preferem o teletrabalho; em seguida, vêm Chile, México e Brasil [21].
Os dados, alguns definem como o novo petróleo do século XXI, ocupam um lugar central na economia. O fluxo de informações gerado diariamente é imensurável. Carros, postes de luz, câmeras de segurança, telefones e geladeiras (basicamente, qualquer dispositivo conectado à rede) produzem um enorme volume de dados. Em 2020, foram criados 64,2 zettabytes de dados, representando um aumento de 314% em relação a 2015. Além disso, espera-se que o volume de dados atinja 175 zettabytes em 2025, multiplicando por 175 a informação gerada em 2010 [22].
As desigualdades digitais estão crescendo em nossas populações, e diante disso, é válido questionar qual é o significado da justiça social no século XXI. "O secretário-geral do Sindicato Argentino de Autores y Autoras, Oscar Tabernise, destacou que seu sindicato participou do dia mundial de apoio à greve dos roteiristas estadunidenses e observou que cerca de 20 países realizaram medidas de apoio (...) A indústria do entretenimento, cinema e televisão acompanha de perto essa luta que, sem dúvida, estabelecerá os padrões de trabalho para o futuro em relação ao uso da inteligência artificial" [23]. A inteligência artificial, que está em toda parte, se alimenta de nós como pilhas humanas de conhecimentos, experiências, vozes, pensamentos, raciocínios e até sentimentos.
As empresas usam os dados dos funcionários para fazer previsões sobre quem tem mais chances de ter sucesso [24]. A classe gerencial utiliza uma ampla gama de tecnologias para monitorar seus trabalhadores, incluindo o rastreamento de seus movimentos com aplicativos, análise de suas redes sociais, comparação de seus padrões de resposta ao escrever e-mails e agendar reuniões, além de inundá-los com sugestões para que trabalhem mais rápido e eficientemente.
Mas vender a força de trabalho, a capacidade psicofísica que continua pertencendo ao trabalhador, é o mesmo que vender dados? A remonetização da força de trabalho impõe requisitos em termos de proteção e direitos de um novo tipo. Não se trata apenas de vendê-los a um preço justo, mas de protegê-los como faria o direito autoral; não se pode fazer qualquer coisa com eles, embora as tecnologias permitam hoje. Será que o direito trabalhista tradicional é suficiente? Os dados deveriam ser patenteados?
A tecnologia que está sendo introduzida é exatamente a necessária para a América Latina? Quais são os interesses e ferramentas mais adequados para um país latino-americano na digitalização? Google, Twitter, Instagram foram projetados para beneficiar os cidadãos latino-americanos? Certamente que não. Os dados da América Latina servem principalmente a outros objetivos, não aos da maioria dos cidadãos da própria região.
Além disso, a falta de infraestrutura de banda larga fixa de alta velocidade, os altos custos de dados e dispositivos, a falta de habilidades digitais e a escassa disponibilidade de conteúdo relevante no idioma local são os problemas subjacentes à baixa adoção das tecnologias. É um problema de design e gestão de políticas sociais, tecnológicas, trabalhistas e educacionais.
À fragilidade das organizações sindicais na região, soma-se o desafio de repensar as formas de representação política e sindical que esses novos tempos, esses novos e antigos trabalhos exigem com urgência. Como regular a digitalização na América Latina? Quais capacidades estatais e sindicais são necessárias para controlar os algoritmos que nos controlam? Como garantir uma gestão transparente e participativa de um mecanismo de controle virtual e abstrato? Como estabelecer procedimentos para a tomada de decisões de um recurso cuja linguagem nos é estranha? Como limitar o acesso dos mecanismos de controle ao privado, ao íntimo, quando nossa vida está em nossos dispositivos? Como nos desconectamos? Trata-se de apropriar-se dessas novas lógicas para identificar interesses, prever comportamentos, influenciar ações, defender direitos.
A nova agenda trabalhista-sindical deve incluir como prioritárias a capacitação ao longo da vida profissional, a proteção dos dados dos trabalhadores e o direito à desconexão digital, e repensar os tempos de trabalho, assim como as vias e requisitos para participar ativamente na construção da tecnologia. A agenda educativa precisa repensar a educação de adultos, uma vez que acompanhar os processos de inovação requer educação ao longo da vida, que ultrapasse os ciclos educativos tradicionais.
O tempo de trabalho será também um campo de disputa no conflito laboral: quem o controla, quem o domina e de que maneira. Começa a surgir a proposta de redução da jornada de trabalho diante dos aumentos de produtividade derivados do uso de novas tecnologias. É necessário analisar como a produtividade do tempo de trabalho é gerada quando surgem modalidades híbridas. Como tornar transparente a expansão, redução, intensificação ou dispersão da jornada de trabalho sem evitar a tensão que existe com o íntimo e a privacidade? Como lidar coletivamente com o sentimento de liberdade individual que nos dá a possibilidade de nos auto-organizarmos com base em nossas necessidades particulares? Como evitar a percepção do coletivo como privilégio ou como limite à liberdade pessoal?
Contar com instituições sindicais que saibam controlar, proteger e analisar os dados que geramos para que as tomadas de decisão não violem os direitos humanos é uma questão estratégica e urgente. É passar de decisões individuais a políticas coletivas. As políticas estatais e sindicais podem convergir na proteção e nas responsabilidades que envolvem o uso e a proteção dos dados como cidadãos e trabalhadores. Uma nova estrutura de representação, transparente, segura, atualizada e confiável, é possível? A discussão sobre big data e machine learning não é alheia ao campo sindical e à necessidade de apropriar-se dessas tecnologias para melhorar a representação de interesses. A estrutura sindical é adequada para isso? Para funcionar democraticamente e de maneira participativa, precisamos de sindicatos inteligentes, abertos ao aprendizado para compreender e intervir diante das mudanças que vivemos e seu impacto na construção de novas subjetividades, identidades e demandas.
Diante desse cenário de transformação de economias de mercado industriais e financeiras para economias digitais, as periferias como América Latina, África ou partes da Ásia enfrentam desafios completamente novos em relação ao futuro do trabalho e do desenvolvimento, ao estímulo de novos caminhos futuros por meio de investimentos maciços em "capital" humano e em instituições, por um lado, e marcos regulatórios, por outro. Sabemos que essas regiões carecem dos recursos financeiros para investimentos em grande escala. Mas em meio a mudanças geopolíticas profundas, à América Latina parece cair do céu um tremendo poder de negociação: a região possui as matérias-primas e as condições climáticas para a transição energética. A União Europeia tem mostrado (especialmente desde o início da guerra da Rússia contra a Ucrânia) um enorme interesse nisso. Ou a América Latina aproveita a situação e vincula suas demandas e necessidades sociolaborais na era digital com suas negociações sobre a exploração de novos recursos, ou se consolida um papel limitado que não beneficia a maioria. Nos países latino-americanos, é a democracia que deve domesticar o capitalismo digital, ou seja, instituições, organizações representativas, sociedade civil, trabalhadores e empreendedores empurrando por novos marcos regulatórios, novas estruturas, novas ideias, novos direitos. E dentro da região são necessárias cooperações governamentais muito concretas para aproveitar as vantagens geológicas do momento.
[1] Kate Crawford: "Atlas of AI: Power, Politics, and the Planetary Costs of Artificial Intelligence," Yale UP, New Haven, 2021, p. 42. [Há uma edição em espanhol: "Atlas de inteligência artificial: Poder, política e custos planetários," FCE, Buenos Aires, 2022].
[2] Valentín Muro: "Atlas de la inteligencia artificial: Kate Crawford y el libro que busca redefinir el alcance de los algoritmos" em La Nación, 20/5/2021.
[3] Ibíd.
[4] Bruno Massare: "América Latina: automatización y dependencia" em Le Monde diplomatique No 287, 5/2023.
[5] WIPO IP Statistics Data Center, disponível no link.
[6] Daniel Gaio: "Brasil, el futuro del trabajo ante el desmantelamiento del Estado" em Nodal, 12/2019.
[7] CTA: "Trabajo presente y futuro: Industria 4.0," 6/9/2019.
[8] V. #Conectadxs. Futuro del trabajo/Digitalización/Sindicatos Nº 7, newsletter de la Fundación Friedrich Ebert (FES), Argentina.
[9] OIT: "Chile: CNC, CUT, Ministerio del Trabajo y OIT entregan lineamientos para la reconversión de las empresas y el trabajo en la era de la digitalización," 22/5/2019.
[10] D. Gaio: ob. cit.
[11] Ibíd.
[12] E. de la Garza Toledo: "Más allá de la fábrica: los desafíos teóricos del trabajo no clásico y la producción inmaterial" em Nueva Sociedad Nº 232, 3-4/2011, disponível no link.
[13] GSM Association: "La economía móvil en América Latina 2021," 2021.
[14] Federico Kukso: "Las batallas por Internet. Una historia de control" em "El atlas de la revolución digital. Del sueño libertario al capitalismo de vigilancia," Capital Intelectual, Buenos Aires, 2020.
[15] Gabriel Esbry: "Crecen las denuncias por el control de empleados con cámaras de seguridad" em La Voz, 19/10/2018.
[16] Donna Haraway: "Manifiesto para cyborgs. Ciencia, tecnología y feminismo socialista a finales del siglo XX," Letra Sudaca, Mar del Plata, 2022.
[17] E. De la Garza Toledo: ob. cit.
[18] K. Crawford: ob. cit.
[19] É importante mencionar alguns esforços dos sindicatos para intervir nesse novo panorama: na Colômbia, a União de Trabalhadores de Plataformas criou um aplicativo, UnidApp, através do qual os trabalhadores podem se sindicalizar, acessar informações, realizar assembleias e receber orientação jurídica e treinamento.
[20] Jamie Woodcock: "The Algorithmic Panopticon at Deliveroo: Measurement, Precarity and the Illusion of Control" em Ephemera vol. 20 N≈ 3, 2020.
[21] "The wfh Showdown" em The Economist, 15-21/7/2023.
[22] David Reinsel, John Gantz y John Rydning: "The Digitization of the World from Edge to Core," IDC, 11/2018. Um zettabyte é uma unidade de armazenamento de informação equivalente a 10^21 bytes.
[23] "Gremios locales del sector se solidarizaron con la huelga de guionistas de Hollywood" em Télam, 15/6/2023.