Intensificado pela seca histórica causada pelo el niño e pelo crime ambiental, fumaça castiga os pulmões dos amazonenses desde agosto
A reportagem é de Karina Pinheiro, publicada por ((o))eco, 06-11-2023.
O período da estiagem ou seca, que ocorre todos os anos na região amazônica, desta vez deixou um estado inteiro em emergência. Até o boletim divulgado no dia 05 de novembro pela Defesa Civil do Estado do Amazonas, 62 municípios entraram em situação de emergência devido à estiagem, afetando 589 mil pessoas.
A seca deste ano atingiu a marca histórica de 12,70 metros, de acordo com o registro realizado no Porto de Manaus em 27 de outubro, o nível mais baixo desde o início da medição, há 121 anos. Segundo o Boletim de Monitoramento de Secas e Impactos no Brasil do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), publicado no dia 16 de setembro, as chuvas dos meses de junho a agosto foram abaixo da média para o esperado no período.
Os especialistas apontam que dois fatores principais inibiram a formação de nuvens e, consequentemente, as chuvas: o fenômeno El Niño, caracterizado pelo aquecimento anormal do Oceano Pacífico, e as mudanças climáticas.
“Existem vários pontos [que causam a seca], um deles, por exemplo, é a questão do El Niño, que é um fenômeno climático que acontece de dois a sete anos, mais ou menos com essa frequência, por conta de uma mudança de ventos no Oceano Pacífico. Os ventos param de circular em uma direção e começam a circular em outra e isso começa a produzir uma mudança na circulação oceânica e também na geração de calor nos oceanos. De forma geral, o fenômeno afeta a precipitação em vários pontos do planeta. Em alguns lugares fica mais seco e em outros fica mais chuvoso. No caso da Amazônia, toda vez que se tem um evento de El Niño, a Amazônia fica mais seca”, explica Hernani Oliveira, pesquisador em Ecologia Molecular, Genética e Conservação e especialista de avaliação dos efeitos de eventos climáticos extremos em redes de interação antagonísticas e mutualísticas na América Central pela Queen Mary University of London.
Os impactos foram sentidos e vistos a olho nu pelos moradores da região amazônica. Altas temperaturas, bancos de areia que se formaram em meio aos rios, isolando municípios e comunidades ribeirinhas.
A equipe de ((o))eco foi a campo no dia 21 de setembro para acompanhar a situação na Comunidade do Tumbira, na Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) do Rio Negro, no Amazonas. Segundo o líder comunitário Roberto Mendonça, a comunidade testemunhou a descida de 60 centímetros do Rio Negro em apenas 24 horas. Ao retornar à região, 16 dias depois, no dia 7 de outubro, as águas que banhavam a comunidade haviam sumido, restando apenas um pequeno canal transitável por meio de canoas pequenas, as chamadas rabetas.
Um trajeto que levaria 5 minutos desde a entrada do braço do Igarapé do Rio Negro até o porto da comunidade levou, desta vez, cerca de 40 minutos. Para prosseguir viagem, a equipe de reportagem de ((o))eco teve que parar em um flutuante na entrada do igarapé e aguardar a chegada da rabeta para então trafegar pelo estreito canal por 30 minutos até o porto.
“A seca do rio esse ano foi muito preocupante porque várias coisas foram afetadas dentro da comunidade, que depende do rio para logística fluvial. A seca deste ano começou numa velocidade tão grande que praticamente o nível do rio, que era para estar no final de outubro, estava no começo, afetando mais ainda o desenvolvimento da comunidade”, disse Roberto.
Uma das áreas mais afetadas foi a econômica, pois 70% da economia da comunidade do Tumbira vem do turismo de base comunitária. As pessoas que dependem dessa atividade pararam de ter essa renda. A área social e educacional também foi afetada. No dia 7 de outubro, a escola da comunidade estava funcionando somente para os alunos que moram na própria comunidade, pois os alunos de outras comunidades próximas não tinham como chegar na escola.
No dia 3 de outubro, a Prefeitura de Manaus decidiu encerrar o ano letivo na rede municipal de ensino de comunidades ribeirinhas localizadas no Rio Negro, após a capital decretar situação de emergência. Segundo a Secretaria Municipal de Educação (Semed), o término das aulas nas escolas ribeirinhas seria no dia 17 de outubro.
Próxima ao Tumbira, a comunidade Santa Helena do Inglês também foi fortemente impactada e ficou totalmente “ilhada” pelo rio seco. A equipe de o ((o))eco esteve na comunidade no dia 22 de setembro, ainda por meio fluvial. Na ocasião, a gerente da Pousada Vista do Rio Negro, Adriana Siqueira, já demonstrava preocupação com a descida veloz do rio Negro.
“Se o rio continuar descendo desse jeito, terei que cancelar as reservas da pousada pelos próximos dois meses (outubro e novembro), porque não vai ter como trazer os turistas para cá”, relatou Adriana.
Cerca de duas semanas depois, quando a reportagem retornou à região, o acesso à comunidade já não era mais possível, pois a água que levava até a entrada da comunidade foi substituída por bancos de areia quilométricos. Para chegar lá seria necessária uma caminhada de 3 a 4 horas.
De acordo com a Fundação Amazônia Sustentável (FAS), a pousada teve que ser fechada pela falta de condições de manter a logística e estrutura para receber novos turistas durante a estiagem.
“A gente teve que desmarcar reservas e devolver dinheiro. Eu nunca tinha visto uma seca tão forte assim”, contou a gestora da pousada.
Mais ao sul, no município de Autazes, a aldeia Murutinga, do povo Mura, também foi fortemente afetada. Em entrevista a ((o))eco, o indígena Tuniel Mura relata que, devido a seca extrema, o rio praticamente desapareceu nas margens da aldeia, prejudicando o fornecimento de água potável, dificultando o deslocamento e causando a morte dos peixes.
“Nosso meio de transporte são canoa e barco. Uma das dificuldades foram para algumas pessoas que moram em casas flutuantes e tiveram que ficar com seus flutuantes encalhados. Temos dois poços artesianos e eles começaram a secar. Com ajuda de algumas pessoas conseguimos reverter a situação que nos deixou bastante preocupados, com a temperatura muito alta da água muitos peixes morreram aqui o rio virou lama.” disse.
Na comunidade indígena vivem 460 famílias e mais de 3 mil pessoas. Sem o apoio do governo, as famílias têm sobrevivido por doações de alimentos e água potável. Entretanto, as doações recebidas até o momento não seriam suficientes para chegar nem mesmo até o fim do mês de outubro, alerta.
Além da seca, a comunidade ainda precisa lidar com a exploração do potássio utilizado para a produção de fertilizantes, que preocupa e ameaça a vida dos indígenas. Segundo Tuniel, a mineradora interessada na exploração estaria induzindo lideranças de algumas aldeias a aprovarem a mineração. Uma das etapas necessárias para aprovação é a realização de uma consulta prévia ao povo Mura, devido a um protocolo que rege todas as normas de direito ao povo e seu território.
“No dia 21 e 22 foi realizada uma assembleia na aldeia indígena Terra Preta da Josefa, onde algumas lideranças, iludidas pela ganância ao dinheiro e falta de entendimento acabaram aceitando o empreendimento. Porém, algumas aldeias não aceitaram, inclusive, a aldeia que eu moro. Não concordamos com a exploração, pois sabemos dos riscos ambientais” apontou.
Além da seca, cidades do Amazonas, especialmente a capital, Manaus, têm que lidar com mais um fenômeno: as fumaças. Desde agosto, a cidade começou a ser tomada por uma densa nuvem de fumaça, que se intensificou com a chegada da seca.
Imagens de satélite dos dias 29 -30 de outubro; 30-31 de outubro e 31 ao dia 01 de novembro. Área vermelha destaca os trechos de fumaça (Fonte: Inpe)
No dia 11 de outubro, índices apontados pelo World Air Quality Index (WAQI), que registra o acúmulo de material particulado e gases poluentes como ozônio e monóxido de carbono na atmosfera, registraram que Manaus estava em segundo lugar no ranking de cidade com pior qualidade do ar do mundo. Por volta das 8h30 da manhã, Manaus chegou a registrar um índice de 459 microgramas por metros cúbicos (up/m³). Os índices oscilam em até 10 vezes mais do que o recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Os números do Índice de Qualidade do Ar é baseado na medição de material particulado, Ozônio, Dióxido de Nitrogênio, dióxido de enxofre e emissões de monóxido de carbono.
Moradores da cidade chegaram a relatar falta de ar, tontura e sensação de queimação nos olhos. As aulas da Universidade Federal do Amazonas (Ufam) e da Universidade do Estado do Amazonas (UEA) chegaram a ser suspensas.
Segundo o Ibama, a fumaça é resultado de queimadas que teriam ocorrido na Região Metropolitana de Manaus.
Segundo a pesquisadora do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), Dra. Karla Longo, “as queimadas que atingem o estado do Amazonas hoje, elas ocorrem principalmente no estado do Pará e na divisa do Pará com o Amazonas”.
Durante uma semana, houve registros de chuvas que amenizaram as fumaças na região, entretanto, desde o dia 29 de outubro a densa fumaça retornou ao cotidiano das cidades amazonenses.
Até o momento, cidades da região metropolitana, incluindo a capital, ainda sofrem com altos índices de fumaça e fuligem que intensificam principalmente pela parte da noite.
Na tarde do último domingo (5), uma tempestade de areia se formou em várias zonas de Manaus. Segundo o Metsul, imagens de satélite registraram um aglomerado de nuvens de grande desenvolvimento vertical que provavelmente está na origem do fenômeno. As rajadas de vento geradas pela tempestade, formada pelo calor e pela umidade, provocaram o levantamento da poeira e da terra mais arenosa devido ao solo mais ressecado.
Além da capital, a fumaça foi percebida nos municípios de Manacapuru, Itacoatiara, Presidente Figueiredo, Careiro da Várzea, Autazes e no Parque Nacional de Anavilhanas.
Lábrea, Apuí e Novo Aripuanã estão entre os 7 municípios que mais queimaram esse ano na Amazônia Legal.
Imagens de satélite dos focos de queimadas no dia 30 de outubro, com destaque a Amazonas e Pará (Fonte: Inpe)
De acordo com Karla Longo, do INPE, durante o processo de queimadas, há a emissão de alguns gases, principalmente monóxido de carbono, precursores de ozônio troposférico. Quando essa emissão bastante grande de gases, em geral, interage com a radiação solar na atmosfera, pode-se produzir o ozônio, considerado um gás extremamente tóxico. Além disso, a fumaça emite uma quantidade de partículas sólidas bastante grandes. Uma explicação que se traduz na densa nuvem de fumaça visível, que penetra nas vias respiratórias e pode causar um grande impacto na saúde humana.
“Nós temos vários estudos no INPE que mostram o impacto tremendo que isso pode causar, principalmente em crianças, idosos, grupos de risco. Então, a recomendação é que em situações como essa a população não deve fazer atividade física ao ar livre”, aponta a pesquisadora.
Um dos motivos da causa do aumento das queimadas está relacionado com o desmatamento, que altera o clima na região, como os fluxos de calor, aumenta a presença de solo descoberto e altera o processo de assimilação de carbono. A densa nuvem de fumaça também inibe o processo de formação de nuvens.
“Esse é um grande problema, em uma região como Manaus, por exemplo, que a gente vê que tem uma certa umidade na atmosfera, que se fosse em uma situação mais limpa poderia formar nuvens e chover. Numa situação com fumaça, ela pode formar, porque essas partículas atuam como núcleo de condensação de nuvens, você forma nuvens, mas como têm muitas partículas, você forma nuvens com gotas muito pequenas e menos propensas a precipitar, reduzindo o padrão de chuva”, explica.
No ranking dos estados com mais queimadas, o Amazonas segue em segundo com mais focos de incêndio no ano, segundo o INPE. De janeiro até ontem (05/11), houve 18.776 focos de calor no estado, perdendo apenas para o vizinho Pará, que teve 33.035 focos no mesmo período.
Entre o período de 5 de outubro a 5 de novembro, Amazonas ocupa o 8º lugar entre os estados com mais focos de calor, ficando atrás do Pará, Mato Grosso, Amapá e Maranhão, Rondônia, Bahia e Ceará.
A prefeitura de Manaus aponta a realização, desde junho, da campanha Manaus Sem Fumaça, que são ações de educação ambiental, blitze ambientais (nas saídas da cidade), além de sensibilização nas escolas (públicas e privadas) e empresas do polo industrial.
A Semmas alega ainda que faz um trabalho diário de rega nos principais canteiros da cidade e nos parques administrados pelo órgão.
Para combater os incêndios na Região Metropolitana, a Semmas, em parceria com a Associação Amazonense de Municípios (AAM), criou o Comitê Permanente de Gestão Ambiental da Região Metropolitana de Manaus, que tem o objetivo de unir esforços e debater estratégias para atuar contra as queimadas.
As altas temperaturas causadas pelas mudanças climáticas e a seca extrema na região amazônica tem afetado não apenas a vida humana como também a vida animal.
((o))eco conversou com o pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA) e membro da Academia Mundial de Ciências, Adalberto Luis Val, a respeito do impacto das mudanças climáticas e da seca no ecossistema aquático.
“A realidade é que os eventos estão cada vez mais intensos e extremos. Junto com isso, a gente tem uma série de modificações ambientais que estão relacionadas a ação do homem, como, por exemplo, a poluição. Isso tudo, em conjunto, na realidade representa um desafio enorme para todos os organismos da biota aquática” explica Adalberto.
O pesquisador afirmou que praticamente todos os organismos estão expostos a esses desafios ambientais intensos. “Dessa vez, além do problema da estiagem, a gente tem um problema extremamente grave que é o aumento da temperatura. Nós tivemos situações em que a temperatura da água chegou a 40º C”.
No dia 11 de setembro, moradores do município de Autazes, no interior do Amazonas, encontraram dezenas de peixes mortos em um lago da região. Vídeos que circularam nas redes sociais mostram vários peixes mortos espalhados pelo lago. A mortalidade dos animais afetou o consumo de água para os moradores, que tiveram que cavar um poço próximo ao rio.
“Temos medido para várias espécies qual é a temperatura crítica máxima que os peixes suportam e não temos observado nada acima de 39º. As espécies que usamos para a alimentação humana, são extremamente sensíveis aos aumentos de temperatura crítica máxima da ordem de 35 graus” aponta Adalberto.
A temperatura crítica significa que, quando os peixes estão expostos a essa temperatura, o metabolismo, as enzimas, as proteínas do músculo, do coração, da respiração, começam a falhar, agonizando até a morte.
No começo do mês de setembro, botos-rosa e tucuxi foram encontrados mortos no lago de Tefé e Coari, no interior do Amazonas.
Órgãos como o Instituto Mamirauá, Instituto Chico Mendes de Biodiversidade (ICMBio), Prefeitura de Tefé e Coari e o Conselho Municipal de Defesa do Meio Ambiente, além do Exército e da Defesa Civil, foram mobilizados para tentar salvar os animais que ainda resistem nesses lugares, bem como orientar a população para evitar banhos e uso recreativo dos lagos.
Essa publicação é resultado da bolsa-reportagem oferecida no âmbito do projeto Intercâmbio de Biomas: trocas de saberes entre jovens comunicadores da Amazônia e da Mata Atlântica, oferecida por ((o))eco em parceria com a USAID e WCS, a Internews e Fundação Amazônia Sustentável, através do projeto Conservando Juntos.
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