02 Novembro 2023
"O novo ensaio de Giulio Busi, Gesù il re ribelle. Una storia ebraica (Jesus, o rei rebelde. Uma história hebraica, em tradução livre) deve ser recebido com admiração e saudado com extremo entusiasmo. Um dos principais intelectuais italianos e dos mais importantes estudiosos do misticismo judaico, Giulio Busi dirige desde 1999 o Instituto de Judaismo da Freie Universität Berlim. Para o suplemento dominical de Il Sole 24 Ore, ele trata de literatura e história judaica. Depois de ter publicado ensaios fundamentais sobre personagens como Pico della Mirandola, Lourenço de Medici, Cristóvão Colombo e Júlio II, agora se aproxima da imensa figura de Jesus. O título e o subtítulo indicam os três elementos principais do livro: realeza, rebelião, judaísmo", escreve Enzo Bianchi, fundador da Comunidade de Bose, membro da comunidade Casa Madia, em artigo publicado por La Stampa, 06-10-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
"É falso até a estupidez o ver numa ‘fé’ o sinal distintivo do cristão; só a prática cristã, uma vida tal como a viveu aquele que morreu na cruz, é cristã... Nos nossos dias uma vida semelhante é ainda possível e para alguns mesmo necessária: o cristianismo autêntico, o cristianismo primitivo será possível em todas as épocas... Não uma fé, mas uma ação, um não fazer certas coisas e, sobretudo, um modo diferente de ser...". Essas lúcidas palavras de Friedrich Nietzsche em O Anticristo, um pensador certamente não condescendente em relação ao cristianismo, constituirão sempre um bom ponto de partida para se questionar sobre o que é essencial à fé cristã, ou seja, sobre a singularidade do cristianismo. Na verdade, o cristianismo é algo extremamente simples, é essencialmente uma pessoa: Jesus Cristo. De acordo com a fé cristã, quando se quer conhecer a Deus, basta olhar para Jesus, manter o olhar fixo sobre ele, porque Jesus é a última e definitiva história de Deus. Ai de quem faz do cristianismo um “sistema religioso” difícil e reservado a poucos: o cristianismo diz respeito a todos os homens e mulheres, sejam eles crentes ou não crentes, cristãos ou pertencentes a outras religiões. Trancar Jesus no recinto muitas vezes estreito da interpretação confessional e doutrinal cristã da sua figura e da sua história é fazer-lhe a maior injustiça, quase como se a incompreensão e a traição fossem o destino desse homem.
Por isso, o novo ensaio de Giulio Busi, Gesù il re ribelle. Una storia ebraica (Jesus, o rei rebelde. Uma história hebraica, em tradução livre) deve ser recebido com admiração e saudado com extremo entusiasmo. Um dos principais intelectuais italianos e dos mais importantes estudiosos do misticismo judaico, Giulio Busi dirige desde 1999 o Instituto de Judaismo da Freie Universität Berlim. Para o suplemento dominical de Il Sole 24 Ore, ele trata de literatura e história judaica. Depois de ter publicado ensaios fundamentais sobre personagens como Pico della Mirandola, Lourenço de Medici, Cristóvão Colombo e Júlio II, agora se aproxima da imensa figura de Jesus. O título e o subtítulo indicam os três elementos principais do livro: realeza, rebelião, judaísmo.
Gesù il re ribelle. Una storia ebraica (Foto: Divulgação)
A perspectiva do livro é declaradamente judaica. Página após página pode-se sentir que o trabalho é o resultado de quarenta anos de pesquisa no âmbito da língua e cultura judaica.
Busi aplica seu vasto conhecimento da mística judaica a Jesus. E esse é o maior aporte inédito, significativo e original de sua leitura judaicamente mística do Rabi de Nazaré, mas um misticismo que não é cego, pelo contrário, é a mística de um rei rebelde, de um insurgente, de um subversivo. Uma realeza rebelde que dissipa a imagem muitas vezes dócil e domesticada que a tradição cristã repassou de Jesus. Com toda a sua força emerge o Jesus “homem do escândalo”, capaz de encantar multidões e despertar um ódio implacável, que não evita a polêmica, que escolhe a invectiva e que declara abertamente ter vindo não para trazer a paz, mas a espada para separar. Sim, o Jesus rebelde que Busi extrai dos quatro Evangelhos canônicos – aos quais se atém escrupulosamente, mas rejeitando o seu antijudaísmo – é um rebelde que chama os seus seguidores e os seus ouvintes à rebelião contra todas as formas de opressão, riqueza e, acima de tudo, de poder injusto, seja político ou religioso. Mas “é a rebelião de um judeu, orgulhoso de sua pertença." Para ele os judeus nunca são “eles”, mas sempre “nós”.
A realeza vivida e personificada por Jesus e o Reino de Deus que anuncia são a antítese da realeza mundana. Jesus é um viandante que passa de aldeia em aldeia, que muda de lugar de repente e aparentemente sem razão, é um mestre que ensina pessoas sem cultura e é entre essas que ele escolhe os seus discípulos. As pessoas o chamam de Rabi, mas ele não é um Rabi autorizado por títulos de estudo reconhecidos pela elite religiosa. “Sua força não é a erudição. Não é para estudar que ele abandonou a casa, o trabalho, a família. Ele largou tudo e escolheu a vida de mestre itinerante, alguns dizem vagabundo, para responder a um chamado". Se as autoridades religiosas o rejeitaram e o condenaram à morte por seu tipo de rebelião, o cristianismo transformou a sua realeza sem poder em um reino sólido que durou dois milênios graças à aliança com impérios, reinos, estados.
Graças a uma leitura inteligente e nunca previsível das histórias evangélicas, Giulio Busi acompanha a vida do Nazareno através das passagens decisivas, dos momentos mais significativos, das palavras mais intensas e marcantes. Emblemático da interpretação do autor é a justaposição de dois episódios: a imersão no Jordão no início da missão e o encontro com a adúltera. Por que razão Jesus decide receber de João Batista o batismo para o perdão dos pecados? A tradição desse episódio é tão forte que os próprios evangelistas não podem se afastar dela, mas o seu constrangimento fica evidente. Busi observa como no início há a água na qual Jesus se imerge, entra na corrente do rio e deixa seu corpo ser completamente envolvido por ela. Ao sair vê uma pomba leve e dócil descendo sobre ele, mansa mas também enigmática é a forma que o Espírito escolheu para pousar sobre ele até tocá-lo. O céu se abre acima dele como acima do profeta Ezequiel e ouve a voz. “Tu és meu Filho, o amado, em ti ponho meu bem-querer”. O Deus feito homem certamente não precisa de confirmações visíveis e audíveis” e, no entanto – observa Busi – é ali, entre as águas do Jordão e a beira do rio ensolarada, que se realiza uma passagem decisiva.
Na vida de todo místico, e nisto não pensamos que Jesus seja uma exceção, existe uma porta que separa o “antes” e o “depois”. Em suma, existe uma experiência biográfica inicial, que marca a tomada de consciência dos próprios poderes espirituais. Tal mudança pode assumir a forma de uma visão, uma percepção auditiva, um trauma ou uma emoção transbordante.
Se no batismo Jesus se submeteu a um rito de purificação sem ter cometido pecado, da mesma forma quando se depara com uma mulher pega em adultério ele renuncia a julgá-la. Para Giulio Busi existe uma lógica evangélica que liga a imersão no Jordão e o “nem eu te condeno” anunciado à adúltera: “Jesus é o rei que se rebela. Não se submete ao poder. Não se curva diante dos romanos, rejeita os sacerdotes, afasta de si a presunção de quem é culto, mas não pio. Repudia os juízes, mistura tempo sagrado com tempo profano. A primeira rebelião, a mais paradoxal, é realizada contra ele mesmo.” Deixo ao leitor descobrir e desfrutar do que consiste essa rebelião contra si mesmo.
A iluminação de verdadeiro pesquisador que aqui Busi mostra ter, vale a leitura de um livro que não é apenas erudito, mas é um livro de pesquisa, de aventura, eu diria de autêntica paixão pelo místico judeu Jesus. Aqui está a iluminação fecunda: “O projeto de Jesus mede-se pela natureza misteriosa e contraditória do Filho do homem. Ele tem uma realeza nunca vista. E é essa nova concepção do poder que ele impõe, de forma revolucionária, aos seus seguidores, chamando-os a participar de um reino compartilhado”. Jesus foi rei ao contrário, de uma forma nunca tentada antes e nunca verdadeiramente alcançada depois. Por isso vamos dar novamente a palavra a Nietzsche: “No fundo, existiu um único cristão, e este morreu na cruz”.
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Jesus foi um rei místico, rebelde e subversivo que não se curvou aos romanos e a nenhum poder. Artigo de Enzo Bianchi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU