12 Setembro 2023
O Papa encontra-se com a Anmil, associação que reúne deficientes e trabalhadores deficientes, e volta a falar sobre a necessidade de garantir a segurança, alertando também para o fenómeno do ‘carewashing’. O apelo: “Somos seres humanos e não máquinas”
A reportagem é de Antonella Palermo, publicada por Vatican News, 12-09-2023.
“A segurança no trabalho é como o ar que respiramos: só percebemos a sua importância quando ele desaparece tragicamente e é sempre tarde demais!”
O Papa Francisco já tinha tocado no tema das ‘mortes brancas’, respondendo a uma pergunta de um jornalista a bordo do voo de ida para a Mongólia, poucas horas depois do acidente em Brandizzo, na zona de Turim, onde cinco trabalhadores perderam a vida atingidos. por um trem. Naquela ocasião o Pontífice repetiu que o trabalhador é sagrado e que estas tragédias, calamidades e injustiças acontecem sempre por falta de cuidado. Hoje, na Sala Clementina do Palácio Apostólico, perante cerca de 300 membros da Associação Nacional dos Trabalhadores Mutilados e Inválidos do Trabalho (ANMIL), que comemora octogésimo aniversário da sua fundação, volta ao tema precisamente lembrando, ele diz isso explicitamente de improviso, sobre aqueles trabalhadores "que o trem matou... estavam trabalhando". E com um discurso que investiga as dinâmicas subjacentes às tragédias no local de trabalho, apela ao respeito pelas regras e à consideração da responsabilidade para com os trabalhadores como uma prioridade.
O discurso do Papa Francisco parte da memória da época da Segunda Guerra Mundial - aliás a associação ANMIL nasceu em 1943 - o que o leva imediatamente a atualizar as suas reflexões remontando-as às "consequências dramáticas daquela loucura que é a guerra", consequências que afetam a população civil. “Todo conflito armado traz consigo hordas de pessoas mutiladas, ainda hoje”, afirma o Pontífice.
Terminado o conflito, os escombros permanecem, mesmo nos corpos e nos corações, e a paz deve ser reconstruída dia após dia, ano após ano, através da proteção e promoção da vida e da sua dignidade, começando pelos mais fracos e desfavorecidos.
Depois as palavras do Papa prosseguem com um “obrigado” repetido várias vezes, acompanhado do pedido para que os direitos das pessoas com deficiência, especialmente das mulheres e dos jovens, não sejam esquecidos:
Obrigado, em primeiro lugar, pelo que continuais a fazer pela proteção e representação das vítimas de acidentes de trabalho, das viúvas e dos órfãos dos tombados. Obrigado por manterem um elevado nível de atenção à questão da segurança no local de trabalho, onde ainda ocorrem muitas mortes e acidentes. Obrigado pelas iniciativas que promove para melhorar a legislação civil relativa aos acidentes de trabalho e à reintegração profissional das pessoas que se encontram com deficiência. Com efeito, trata-se não só de garantir os devidos cuidados de bem-estar e de segurança social para aqueles que sofrem de formas de deficiência, mas também de dar novas oportunidades às pessoas que podem ser reintegradas e cuja dignidade exige ser plenamente reconhecida. Finalmente, obrigado!
Queixando-se amargamente de que as tragédias e os dramas no local de trabalho infelizmente não cessam, apesar da tecnologia que temos à nossa disposição para promover lugares e tempos seguros, o Papa Francisco admite: “Às vezes parece que estamos a ouvir um boletim de guerra”.
Isto acontece quando o trabalho se desumaniza e, em vez de ser o instrumento com o qual o ser humano se realiza, colocando-se à disposição da comunidade, torna-se
uma corrida exasperada pelo lucro. As tragédias começam quando o objetivo não é mais o homem, mas a produtividade. E o homem se torna uma máquina de produção.
O Papa põe em causa a formação, área crucial na tentativa de prevenir acidentes de trabalho:
Amigos, as tarefas educativas e formativas que vos esperam continuam a ser fundamentais, tanto no que diz respeito aos trabalhadores, como aos empregadores e no seio da sociedade. A segurança no trabalho é como o ar que respiramos: só percebemos a sua importância quando tragicamente falta e é sempre tarde demais!
Segue-se a citação da parábola do Bom Samaritano e o convite, mais uma vez expresso pelo Papa, a não alimentar a indiferença:
No mundo do trabalho às vezes acontece exatamente assim: continuamos, como se nada tivesse acontecido, entregues à idolatria do mercado. Mas não podemos habituar-nos aos acidentes de trabalho, nem resignar-nos à indiferença perante os acidentes. Não podemos aceitar o desperdício de vidas humanas. As mortes e os feridos constituem um trágico empobrecimento social que afeta todos, não apenas as empresas ou famílias envolvidas. Não devemos cansar-nos de aprender e reaprender a arte de cuidar, em nome da humanidade comum. A segurança, de fato, não é garantida apenas por uma boa legislação, que deve ser aplicada, mas também pela capacidade de viver como irmãos e irmãs no local de trabalho.
O Pontífice continua o seu discurso com uma reflexão mais primorosamente espiritual, citando São Paulo onde o apóstolo fala do corpo como templo do Espírito Santo. Se assim for, significa que, observa o Papa, “cuidando das suas fragilidades, damos louvor a Deus”. A humanidade é um “lugar de culto” e o cuidado é a atitude com a qual colaboramos na própria obra do Criador.
Não se pode, em nome de um maior lucro, pedir muitas horas de trabalho, diminuindo a concentração, ou pensar em contabilizar formulários de seguros ou pedidos de segurança como despesas inúteis e perdas de rendimentos.
Na parte final do discurso do Papa é feita também referência ao que define como o fenômeno da ‘carewashing’ e que considera “feio”. São todos aqueles comportamentos de empresários ou legisladores que, em vez de investirem na segurança, “preferem limpar a consciência com algumas obras de caridade”. Por isso colocam a sua imagem pública acima de tudo, tornando-se benfeitores na cultura ou no desporto, nas boas obras, tornando acessíveis obras de arte ou edifícios de culto, mas não prestando atenção ao facto de que, como ensina um grande pai e doutor da Igreja, “a glória de Deus é o homem vivo” (Santo Irineu de Lyon, Contra as Heresias, IV,20,7). A responsabilidade para com os trabalhadores é uma prioridade: a vida não pode ser vendida por qualquer motivo, especialmente se for pobre, precária e frágil. Somos seres humanos e não máquinas, pessoas únicas e não peças sobressalentes. E muitas vezes alguns operadores são tratados como peças sobressalentes.
Ao confiar os mutilados e deficientes a São José, padroeiro dos trabalhadores, o Papa conclui reiterando que “cada pessoa é um dom para a comunidade e que mutilar ou incapacitar uma só pessoa fere todo o tecido social”.
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Acidentes de trabalho, o Papa: não nos habituemos, a vida não se vende. Alerta para o ‘carewashing’ - Instituto Humanitas Unisinos - IHU