04 Agosto 2023
"O papa precisa nomear e pagar adequadamente um czar leigo das finanças com autoridade e pessoal suficiente para administrar as finanças do Vaticano. Isso inclui o poder de investigar todos os cargos e pessoas no Vaticano, incluindo a Secretaria de Estado e os cardeais. Quem não cooperar deve ser demitido".
O comentário é do jesuíta estadunidense Thomas J. Reese, ex-editor-chefe da revista America, dos jesuítas dos Estados Unidos, de 1998 a 2005, e autor de “O Vaticano por dentro” (Ed. Edusc, 1998), em artigo publicado por National Catholic Reporter, 03-08-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o artigo.
Para os americanos, entender o julgamento do Vaticano de 10 réus acusados de crimes financeiros é quase impossível.
As acusações são um emaranhado de suposta corrupção e má conduta. No centro do julgamento está um investimento imobiliário de luxo em Londres que perdeu quase US$ 200 milhões para o Vaticano. Depois, há pagamentos a uma mulher que deveria ajudar a libertar algumas freiras dos sequestradores, mas supostamente gastou o dinheiro em bens de luxo, férias e outras extravagâncias.
Finalmente, havia empréstimos e outros pagamentos feitos a uma instituição de caridade administrada pelo irmão de um cardeal. Os investigadores encontraram faturas e recibos falsificados, levantando dúvidas se o dinheiro foi usado para fins de caridade.
Em seguida, há o processo legal que é estranho ao público americano criado para assistir a programas legais de TV com júris, juízes que atuam como árbitros e o direito a um julgamento rápido. O julgamento do Vaticano não tem júri; em vez disso, tem três juízes que podem dirigir perguntas investigativas à acusação e à defesa. Os juízes decidirão sobre a culpa ou inocência do acusado ao final de um processo que já dura dois anos.
Mas em seu cerne estão as complexidades de qualquer julgamento. Quais são os fatos? Como a lei se aplica? E quais números do julgamento são confiáveis?
Uma coisa é clara. Os envolvidos no escândalo eram corruptos, estúpidos ou ambos.
O réu central no julgamento é o cardeal Angelo Becciu, anteriormente sostituto, ou chefe de gabinete, na Secretaria de Estado do Vaticano, tradicionalmente o terceiro cargo mais poderoso da Igreja. Ele estava envolvido no negócio imobiliário de Londres e fez pagamentos para a instituição de caridade de seu irmão e para Cecilia Marogna, uma autodenominada diplomata e consultora de segurança nacional que, dizem, foi contratada por Becciu para salvar as freiras.
Quando o julgamento começou, o Papa Francisco removeu Becciu de seu cargo no Vaticano e do Colégio dos Cardeais.
Outros acusados incluem funcionários do Vaticano, empresários italianos e advogados com quem o Vaticano fez acordos ou pagou comissões. As acusações incluem fraude, lavagem de dinheiro, extorsão, peculato e abuso de poder. Alguns dos forasteiros acusados estão se recusando a comparecer ao julgamento.
Becciu nega qualquer irregularidade, mas nem uma doação de 125.000 euros para a instituição de caridade de seu irmão nem os mais de meio milhão de euros pagos a Marogna passam no teste do cheiro: Há um óbvio conflito de interesses quando um funcionário dá dinheiro a seu irmão. Os promotores dizem que Marogna não tinha qualificações para o trabalho que deveria realizar para Becciu.
O fiasco imobiliário de Londres, com seus múltiplos negócios e contratos de valor duvidoso para o Vaticano, levanta a questão mais pertinente: os empresários de fora do Vaticano se aproveitaram de funcionários tolos e incompetentes, ou os funcionários do Vaticano estavam conspirando com os forasteiros? O escândalo começou com estupidez, mas passou para a criminalidade quando os jogadores tentaram encobrir seus erros?
Por exemplo, quando o Vaticano tentou sair do acordo de Londres, decidiu primeiro comprar a parte de seu parceiro. O contrato que o Vaticano assinou permitiu aos investidores italianos manter o controle sobre o destino da propriedade em Londres. Como resultado, o Vaticano teve que pagar mais dinheiro para finalmente obter o controle do investimento para vendê-lo.
Por que nenhum especialista jurídico detectou o problema antes da assinatura do contrato?
A acusação não tem estado isenta de problemas. Até recentemente, o procurador Alessandro Diddi vinha dizendo que o dinheiro para o negócio imobiliário de Londres vinha exclusivamente do Óbolo de São Pedro, a arrecadação do papa para os pobres. Na semana passada, quando começaram os argumentos finais, o promotor principal finalmente reconheceu que o dinheiro veio de outras fontes do Vaticano.
A promotoria fez algumas escolhas estranhas em suas acusações, particularmente a de René Bruelhart, um advogado suíço com uma reputação estelar, cuja autoridade vigilante se estende apenas ao Banco do Vaticano, não ao investimento em Londres.
Quando a acusação encerrar seu caso e a defesa tiver tido a oportunidade de responder, os juízes terão até dezembro para julgar.
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A sede do Instituto para as Obras de Religião, comumente conhecido como Banco do Vaticano. (Foto: Reprodução | Vatican News)
Há uma fresta de esperança no escândalo. No passado, tudo isso teria sido varrido para debaixo do tapete. O dinheiro teria sido perdido, mas teria sido mantido em sigilo para evitar escândalos. Em 2019, quando o banco do Vaticano recusou um empréstimo de resgate à Secretaria de Estado, o atual acobertamento começou a se desfazer. O banco relatou o problema às autoridades competentes do Vaticano, que iniciaram uma investigação que levou aos processos judiciais.
O Banco do Vaticano, graças às reformas iniciadas pelo Papa Bento XVI, é agora a agência financeira mais respeitável do Vaticano. Há uma lição aqui.
O banco do Vaticano foi saneado ao ser submetido à supervisão externa do Moneyval , o órgão de monitoramento internacional criado pelo Conselho da Europa para reprimir a lavagem de dinheiro e o financiamento do terrorismo. A limpeza do banco envolveu a contratação de auditores externos e especialistas. Como os contadores forenses não são baratos, esse era um processo caro.
Francisco não está disposto a gastar a quantia equivalente de dinheiro para limpar outros aspectos das finanças do Vaticano. Isso é barato e tolo.
O papa precisa nomear e pagar adequadamente um czar leigo das finanças com autoridade e pessoal suficiente para administrar as finanças do Vaticano. Isso inclui o poder de investigar todos os cargos e pessoas no Vaticano, incluindo a Secretaria de Estado e os cardeais. Quem não cooperar deve ser demitido.
Isso não é ciência de foguetes. Governos, bem como corporações com e sem fins lucrativos, vêm fazendo isso há décadas. Mas não será barato se o Vaticano contratar, como deve, especialistas financeiros com salários competitivos. Esta é a única maneira de limpar o Vaticano e restaurar a confiança em sua gestão financeira.
A resposta do Vaticano ao escândalo financeiro não deve ser pontual, lidando com os sintomas. A reforma sistêmica é necessária para que os escândalos não continuem.
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Escândalos financeiros do Vaticano: corrupção, estupidez ou ambos? Artigo de Thomas Reese - Instituto Humanitas Unisinos - IHU