08 Julho 2023
A carta do Papa Francisco do último 1 de julho dirigida a D. Victor Manuel Fernandez, novo prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé, contém algumas passagens dignas de reflexão. Particularmente relevante à luz da relação Igreja-mundo quase sessenta anos após a promulgação da Gaudium et spes.
O artigo é de Roberto Oliva, presbítero da Diocese de San Marco Scalea, Itália, publicada por Settimana News, 06-07-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
1. A perspectiva da qual parte Francisco é aquela de um empenho sério para guardar a fé católica sem extremismos ou relativismos. No entanto, guardar não significa simplesmente conservar como uma peça de museu, mas sempre dar conta da beleza e do frescor daquilo em que cremos: "É verdade que, na nossa relação com o mundo, somos convidados a dar razão da nossa esperança, mas não como inimigos que apontam o dedo e condenam” (Evangelii gaudium 271). Guardar não significa apenas defender-se dos perigos, mas também tornar "saboroso" o conteúdo da fé cristã. Diante da fluidez do mundo atual, também na expressão da sensibilidade religiosa e cultural, a teologia é chamada a revelar a coerência da mensagem evangélica para os desafios do povo. A esse respeito, a atitude de Francisco parece favorecer uma dimensão pastoral da reflexão teológica em diálogo contínuo com o mundo, no respeito da dignidade humana. Assim se expressa o papa jesuíta na carta em questão: “Precisamos de um modo de pensar que possa apresentar de forma convincente um Deus que ama, que perdoa, que salva, que liberta, que promove as pessoas e as chama ao serviço fraterno”.
2. Ao longo da história, a missão do Dicastério para a Doutrina da Fé nem sempre alcançou esses objetivos: “O Dicastério que presidirá em outros tempos chegou a usar métodos imorais”, esclarece Francisco. Embora sejam diferentes os casos que poderíamos citar como exemplo, destacamos esse sinal de sincera autocrítica que move o próprio papa ao tentar afirmar alguns binômios às vezes traídos: doutrina e humanidade, fé e história, ortodoxia e liberdade, defesa da fé e da dignidade humana. A sadia preocupação com a ortodoxia, de fato, não justifica o uso de métodos antievangélicos (advertências, punições, avisos, torturas físicas e morais), mas deveria favorecer "a compreensão e a transmissão da fé ao serviço da evangelização, a fim de que a sua luz seja critério para compreender o significado da existência, sobretudo diante das interrogações apresentadas pelo progresso das ciências e pelo desenvolvimento da sociedade." (Fidem servare, 2).
3. A quem guarda a fé cristã é exigida uma maturidade relacional que, para os cristãos, precede qualquer atitude jurídica e punitiva. Guardar a ortodoxia significa favorecer a ortopráxis evangélica em vários níveis, reconhecendo que a fé cristã não é uma peça de museu, mas um rio sempre em movimento, capaz de gerar vida e redenção. Mais do que a rígida defesa da ortodoxia, Francisco se preocupa com a urgência de anunciar o Evangelho em uma mudança de época que exige linguagens, estilos e paradigmas teológicos renovados. Guardar a fé significa saber traduzi-la nas categorias culturais de hoje: “Este crescimento harmonioso preservará a doutrina cristã mais eficazmente do que qualquer mecanismo de controle” (Carta do Papa Francisco, 1º de julho de 2023). Se é verdade que "a pesquisa teológica é um instrumento de evangelização e ao mesmo tempo de encarnação do ser eclesial" (J.M. Tillard, Pluralismo teologico e mistero della Chiesa, Concilium1/1984, 139) não se pode deixar de incluir os critérios históricos e antropológicos na avaliação ortodoxa. O desenvolvimento teológico em diálogo com as culturas do tempo e o anúncio do Evangelho requerem a ativação de uma perspectiva hermenêutica e pluralista. Em várias ocasiões, os estudos bíblicos e teológicos em chave interpretativa facilitaram o desenvolvimento de algumas perspectivas que pareciam absolutas, enquanto "a necessidade de ouvir-nos uns aos outros completar-nos na nossa recepção parcial da realidade e do Evangelho" (Evangelii gaudium, nota 44) revelam uma pesquisa teológica em chave plural. A lógica opositiva, consequência de uma doutrina monolítica, precisa ser superada favorecendo o desenvolvimento de "diversas linhas de pensamento filosófico, teológico e pastoral", que contenham a possibilidade de "fazer crescer a Igreja, enquanto ajudam a explicitar melhor o tesouro riquíssimo da Palavra” (Evangelii gaudium 40).
Já na entrevista em voo de retorno da JMJ no Brasil (28 de julho de 2013), o Papa Francisco havia sugerido o desejo de um passo indispensável para o futuro da liberdade teológica e da garantia humana e espiritual do Magistério: do anathema sit ao famoso "quem sou eu para julgar?". O caminho ainda é longo e os pressupostos que o idoso pontífice tenta construir requerem sujeitos eclesiais dotados de uma formação madura e capazes de acolher o desenvolvimento teológico para responder aos desafios de hoje e de amanhã.
"A interpretação crítica da vida eclesial atual, feita por meio do confronto com documentos vindos do passado e pela abertura a situações sempre novas, não pode, portanto, ser concebida como um suceder-se de três etapas sucessivas, mas como a convergência de três dimensões simultâneas de uma realidade cultural complexa. Enquanto lemos o Evangelho, as questões atuais ecoam em nossas mentes e, vice-versa, olhamos para a realidade presente à luz do Evangelho” (Z. Alszeghy-M. Flick, Come si fà la teologia, Paoline, Roma 1974, 60).
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Guardar o desenvolvimento da fé. Artigo de Roberto Oliva - Instituto Humanitas Unisinos - IHU