06 Julho 2023
Celeste Saulo (Buenos Aires, Argentina, 1964) será a primeira mulher a dirigir a Organização Meteorológica Mundial (OMM). Em 1º de junho, foi escolhida como a futura secretária-geral, um cargo que assumirá em 2024.
Essa meteorologista se rebela contra a inação climática, convencida de que o mais caro é “não fazer nada” frente ao aquecimento global. Ficar paralisados “não é uma opção”, insiste incansavelmente para combater os discursos pessimistas que brotam na medida em que a temperatura do planeta aumenta.
São discursos que ela observa relacionados a “mensagens de ódio” reproduzidas contra os cientistas que mostram a realidade da crise climática: menos chuvas, ondas de calor, incêndios gigantescos e tempestades que terminam em inundações. “Matar o mensageiro não solucionará os problemas”, diz em uma conversa com o jornal El Diario.
A entrevista é de Raúl Rejón, publicada por El Diario, 04-07-2023. A tradução é do Cepat.
Você foi escolhida para ser a secretária-geral da Organização Meteorológica Mundial (OMM) e assumirá o cargo a partir de 2024. Para que serve este organismo?
Somos a agência especializada da Organização das Nações Unidas em temas referentes ao tempo, clima e água. Uma das funções fundamentais é coordenar os serviços meteorológicos e hidrológicos entre países. Sem os serviços meteorológicos coordenados, não saberíamos como a temperatura aumenta a cada ano no planeta ou como as chuvas mudam em nível global. Hoje, essa capacidade de coordenação é um capital enorme.
Trata-se de um avanço o fato de a face mais visível da organização não só será uma mulher, mas uma mulher do sul global? Você contribuirá com uma visão diferente?
A OMM sempre esteve sob a direção de homens, por 150 anos. E em sua grande maioria europeus. Só uma vez foi dirigida por um africano. Isso quer dizer que é fundamental a necessidade de aumentar a diversidade, pois o mundo é diverso e não pode ser representado a partir de uma única visão. E essa é uma enorme responsabilidade porque a organização tem um viés marcado pela sua história que a fez perder, às vezes, essa diversidade de olhares e complementaridade de conhecimentos.
A informação meteorológica está sendo muito demandada, tanto por setores econômicos, como a agricultura e o turismo, como para o lazer das pessoas. Está na hora de aproveitar essa atenção para transmitir informações cientificamente comprovadas sobre a mudança climática?
Sim, claro. É preciso aumentar a comunicação. O Painel de Especialistas em Mudanças Climáticas (IPCC) publicou, há pouco, seu sexto relatório em que revisa o estado do clima, os sinais, os impactos e analisa os cenários futuros. É um trabalho muito exaustivo que leva um ciclo de oito a nove anos, então, a OMM tem a responsabilidade de ir mostrando o ritmo anual. Gerar relatórios todos os anos.
Entre um relatório e outro do IPCC, a OMM tem a vantagem de oferecer informação todos os dias. E isso forma um capital para alimentar anualmente as informações, o que pode ajudar os tomadores de decisão e alertar sobre os fenômenos mais preocupantes, como o derretimento das geleiras. A OMM é a encarregada de colocar isso na agenda internacional. Um papel fundamental.
Porque o tempo que temos, todos os dias, já está nos alertando sobre como a mudança climática e suas consequências estão se acelerando.
Sofremos a mudança climática de modo quase diário. Nós, cientistas, temos uma maneira de atribuir cada evento à mudança climática. A chamada atribuição. Nem tudo o que acontece, diariamente, corresponde à mudança climática, é preciso reconhecer, mas para isso existe a ciência que utiliza estratégias, técnicas e ferramentas para dizer: isso que aconteceu aqui, sem o aquecimento global, teria sido 70% menos provável. Esses estudos são muito valiosos, sobretudo para lidar com os danos e perdas causados pela mudança climática. E isso requer dados.
Esse monitoramento contínuo do clima mostra que estamos tendo cada vez mais eventos extremos e que são mais frequentes.
Todos nós sabemos que nos deparamos com eventos mais severos com mais frequência do que nossa própria memória pode conter. É o que vimos na Europa, com as ondas de calor de 2022, e na América Latina, com o maio mais quente da história da Argentina. Sinais mais do que claros de que a mudança climática está nos dando milhares de demonstrações de seus impactos.
Que mensagem nos passa a constatação de que a fumaça dos incêndios no Canadá alcançou a Espanha?
É um bom exemplo do quanto é importante a cooperação internacional. Também sabemos que a circulação global e os ventos predominantes fazem com que as tempestades de poeira da África cheguem ao Caribe e aos Estados Unidos. Por isso, temos que nos coordenarmos não só para monitorar o que ocorre, mas para prognosticar.
Nesse sentido, os alertas precoces sobre eventos climáticos extremos – seja uma intrusão de areia, chuvas torrenciais ou uma onda de calor – são cruciais para atenuar os impactos e danos da mudança climática...
Muito bem ressaltado. E aqui tenho que parabenizar os companheiros da AEMET [Agência Estatal de Meteorologia espanhola], que são muito ativos, por exemplo, nos avisos de tempestades de poeira e areia. Os sistemas de alerta precoce são a chave para a adaptação. E acredito que devemos compreendê-los como algo fundamental para a sobrevivência.
Os países da OMM estabeleceram como prioridade trabalhar para que, em 2027, todo o planeta esteja coberto por esses sistemas de alerta precoce. É um grande desafio, mas é claro que existem países muito vulneráveis, com menos recursos, e devemos trabalhar nessa cooperação para poder alcançar esse objetivo como forma de proteger vidas, bens e meios de subsistência.
Dê-me um exemplo.
Fala-se em alcançar a fome zero nos objetivos de desenvolvimento sustentável. Bem, o alerta precoce tem a ver com isso. Se você é um pescador familiar em uma área vulnerável e ocorre uma tempestade, se não tem acesso a um alerta para poder proteger sua embarcação, não poderá proteger a sua fonte de trabalho e sustento.
Então, não há como garantir a fome zero, caso não se olhe de forma multifatorial. É por isso que os alertas são tão importantes. Não serve apenas para que uma população urbana evite um tormento, mas também para proteger as comunidades que têm modos de vida muito mais vulneráveis e expostos.
Qual sua avaliação acerca da perseguição que os meteorologistas da AEMET vêm sofrendo?
É algo extremamente preocupante. Solidarizo-me com os companheiros da AEMET. E isso está acontecendo em outras partes do mundo. É a típica reação que tem a ver com o discurso de ódio e com uma posição retrógrada que em vez de valorizar a existência de organizações científicas que nos antecipam o que pode acontecer (com suas incertezas), mata o mensageiro.
Fala de uma enorme irresponsabilidade por parte da sociedade, o que para mim é repudiável, porque este mensageiro tem uma responsabilidade. Não está falando sem elementos de juízo. Temos que nos posicionar com muita firmeza contra esses discursos de ódio que só paralisam as sociedades.
É uma onda reacionária?
É uma onda totalmente anticientífica e injusta. Além disso, fala de um problema profundo que temos que resolver como sociedade. Desligando a televisão e não ouvindo as notícias, os problemas não desaparecem, nem se resolvem. Matando o mensageiro, não vamos resolver a mudança climática. Conseguiremos resolver se cada um de nós fizermos o que temos que fazer.
Está detectando um discurso pessimista em relação à possibilidade de impedir o aquecimento global?
É outra expressão da mesma imaturidade. O que você faz quando fica muito assustado com algo? Provavelmente, fique paralisado. E é isso que se deve evitar. A mudança climática é preocupante? Claro. Mas, o que você faz diante de uma preocupação na vida cotidiana? Age como a avestruz e esconde a cabeça debaixo da terra? Não. Age.
Aqui, o fundamental é agir. Não superestimar porque claro que é grave, mas é possível e se deve agir. E buscar mostrar que a pior coisa que se pode fazer é não fazer nada. E o custo de fazer algo é zero: viver e consumir de modo responsável na vida cotidiana tem custo zero e temos que proceder assim, se quisermos um planeta habitável para as gerações futuras.
Você insiste na necessidade de que seja lançada uma mensagem otimista.
A mensagem tem que ser de otimismo, mas com compromisso. As coisas não vão acontecer se olharmos para que está acontecendo como se fosse em uma televisão. A mudança climática não é uma série de streaming, mas uma realidade em que estamos imersos. Somos parte e somos corresponsáveis. Quanto maior o nível de poder, maior a responsabilidade. No entanto, todos nós podemos fazer algo e devemos agir.
Ao ver como os efeitos climáticos vão se acumulando, não sente o desejo de dizer, como cientista, “nós já avisamos”?
É um pouquinho duro. Nós, cientistas, há mais de 50 anos, estamos levantando as mãos. É um pouco duro que como sociedade tenhamos que chegar a isso e, mesmo nessas condições, que o mundo não perceba e reduza as emissões de gases do efeito estufa. Na realidade, aumentou. É uma dor muito grande, mas isso não deve nos fazer cruzar os braços.
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“A mudança climática não é uma série de ‘streaming’”. Entrevista com Celeste Saulo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU