"Fofoca”, nome que os garimpeiros dão às balsas perfiladas em um rio, significa “dito maldoso, mexerico, disse me disse”. Basta alguém soltar um boato de descoberta de ouro, em algum canto da Amazônia, e dezenas dessas embarcações se aglomeram em um lampejo. Ao longo do rio Madeira, elas estão por toda parte, assim como há décadas compõem um imaginário que poucos se dão conta de estarem diante de uma ilegalidade. Extrair sem autorização o cobiçado minério nos leitos dos rios é contra a lei no Brasil. Comprar esse ouro deveria ser proibido, mas tem-se dado um jeito para que o metal precioso atravesse oceanos para chegar a ricos consumidores da Europa e da América do Norte. E isso está longe de ser uma fofoca.
A reportagem é de Francisco Costa, publicada por Amazônia Real, 02-06-2023.
É domingo em uma “fofoca” do rio Madeira. Dispostas uma do lado da outra, as balsas formam uma alongada plataforma, onde é possível caminhar de ponta a ponta. Estão ancoradas por cabos de aço e cordas resistentes para evitar que a força das águas, a correnteza ou a chuva arrastem tudo para as profundezas. Os garimpeiros aproveitam o dia para fazer pagamentos, contando dinheiro vivo sem cerimônia, saborear um churrasco, tomar cerveja e ouvir música alta. Enquanto a comida não fica pronta, os que estão com o “serviço” atrasado usam o período da manhã para separar algum ouro da lama ou limpar o equipamento para o batente da semana seguinte. No garimpo, as máquinas operam dia e noite, expelindo uma nauseante fumaça de diesel queimado. Mal dá para sentir o cheiro da carne sendo assada.
É pelo sarinho, um objeto em forma de roda com uma manivela grande de madeira, que se controla a mangueira de oito polegadas jogada no fundo do rio Madeira. Dele se suga a água barrenta, os sedimentos e, com sorte, algumas partículas de ouro. Todo esse líquido passa por uma esteira, onde estão carpetes aveludados que fazem a filtragem e possibilitam que pedrinhas de ouro puro sejam retidas. É nessa etapa que os garimpeiros despejam o mercúrio nos tapetes. O metal pesado serve para facilitar a separação dos resíduos e a visualização do dourado do minério precioso. Logo após, essa mesma água contaminada com a substância é devolvida ao rio, porém transformada no altamente tóxico metilmercúrio.
As balsas são autênticas casas-flutuantes, e nelas moram famílias inteiras. A imigrante cearense Maria Selma da Silva, de 56 anos, vive com o marido no seu imóvel feito de madeira, onde no andar de baixo se faz a extração ilegal do ouro e no superior se vive como em qualquer outra casa. A estrutura tem pequenos cômodos, banheiro e paredes sem pintura. Há lugares individuais para dormir, comer e uma cozinha simples. Rústico, mas impecavelmente limpo. Nos dias quentes, o teto de zinco aquece o local como uma fornalha.
Na “fofoca” em que a reportagem da Amazônia Real encontrou a garimpeira, havia outras 26 balsas, com uma média de até cinco pessoas morando em cada uma delas. Maria Selma é uma “mandadora”, que na linguagem do garimpo é quem controla a operação. As mãos dela já perderam a suavidade, ficaram grossas em razão do ofício. Seu rosto ganhou marcas do tempo e do sol, que fustiga na região Norte. Ela cuida desde a extração do ouro até lavagem de roupa, limpeza do lugar, compra de mantimentos, controle financeiro e faz a manutenção do motor quando o companheiro não tem condições. Diferente de outras balsas, ela trabalha apenas com o marido. Prefere não contratar mais pessoas. Assim, evita pagar comissão que oscila entre 20% e 30% do lucro. A garimpeira lamenta não ter iniciado a atividade quando houve a última corrida do ouro, nos anos 1980, época de rápida valorização na compra e venda do minério. Na década seguinte, os depósitos de fácil extração de ouro já davam sinais de declínio.
O casal de garimpeiros precisa trabalhar uma jornada quase ininterrupta, já que eles se revezam ao longo do dia, para poder lucrar cerca de 3 mil reais por semana. É uma fortuna, se comparada com os 1.302 reais que ganha um rondoniense por mês. Maria Selma comenta que esses anos todos de labuta não lhe trouxeram riquezas. “Quando entrei pro garimpo, já estava na fase mais ruim de ouro. Eu só tenho minha balsa e um carrinho. Minha casa, quando eu vim pro garimpo, eu já tinha, né?” A atividade lhe permite ficar de três a seis meses flutuando no rio Madeira, e o restante do tempo na outra casa em terra firme.
Cerca de 26 balsas de garimpo ilegal de ouro em atividade na chamada “fofoca”, no rio Madeira, nas proximidades da capital Porto Velho. (Foto: Bruno Kelly | Amazônia Real)
Lendas povoam o imaginário popular dos garimpeiros com histórias de que muita gente vindo de todos os lugares do mundo fez fortuna extraindo ouro no rio Madeira. Os primeiros vestígios do metal foram encontrados em 1826. Mas a “Serra Pelada” do Madeira, numa alusão ao histórico garimpo no Pará, teria começado só no século 20, com intensificação a partir dos anos 1970. Na década seguinte, segundo relatório da Agência Nacional de Mineração, que substituiu o antigo Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), eram contabilizados mais de 1.200 garimpeiros no leito do rio com uma produção de 817 quilos do metal precioso. Mas quatro décadas atrás era bem mais perigoso procurar ouro no fundo do rio. Os trabalhadores tinham de mergulhar fundo para posicionar os tubos de sucção. Hoje, o processo é bem mais automatizado.
Eider da Silva, de 24 anos, faz um dos trabalhos mais perigosos e rudimentares, que é a manutenção das mangueiras de sucção de água e areia. Elas estão depositadas em profundidades de 20 ou 30 metros no leito, a depender do período de seca ou cheia do rio. Para realizar tal atividade, o jovem precisa mergulhar nas águas escuras e turbulentas, o que pode até lhe custar a vida. Para ele, o esforço compensa. Há quatro meses decidiu arriscar no garimpo do rio Madeira em busca de dinheiro para “fazer concurso, se preparar, terminar o ensino médio e fazer carreira no Exército”. No último mês, começou um financiamento de 280 reais mensais para a compra de um terreno no Amazonas, onde ficou a companheira. É lá que sonha em “construir uma casa simples”.
Nas “fofocas” do rio Madeira, um trabalhador que presta serviços a um mandador pode ganhar de 3 mil a 4 mil reais por mês. Como na maioria das atividades econômicas, sobretudo as predatórias, o dono do negócio é quem lucra mais. Raimundo Alex, de 33 anos, pertence à segunda geração de garimpeiros na família. Foi o pai que o levou aos 13 anos para a beira do rio. Hoje, Alex administra três balsas e tem sete operários. Seu faturamento semanal chega a ser de 40 gramas por semana, o equivalente a 45 mil reais por mês. As despesas para a manter a ilegalidade ativa são altas: 7 mil reais para a manutenção das balsas, compra de mantimentos e o diesel. Um tambor de 200 litros de óleo custa equivale a 4 ou 5 gramas de ouro – no garimpo, as contas são feitas sempre com base no peso do metal precioso. E por semana são consumidos por volta de 15 tambores.
“Garimpeiro é como qualquer outra pessoa na cidade que vai levar o sustento para casa”, afirma Raimundo Alex. “As pessoas que acham que o garimpeiro é bandido é porque ainda não vieram aqui dentro para ver realmente quem é o garimpeiro.” Foi graças à mineração que ele afirma conseguir “manter a família da gente mais bem estruturada”. Como são muitos dependentes da atividade, ainda que ilegal, Alex defende sua legalização para que acabe com o medo da fiscalização.
Dom Phillips, o jornalista britânico morto em 5 de junho de 2022 no Vale do Javari, no Amazonas, conhecia a realidade dos garimpos amazônicos. À mulher, Alessandra Sampaio, comentava que não via os garimpeiros apenas como vilões, mas como “homens desesperados para sustentar uma família”. Porém, em reportagem de 2018, ele escreveu um artigo para o jornal inglês The Guardian alertando sobre os riscos do garimpo ilegal: “Clareiras são cortadas em florestas, lagoas de mineração esculpidas na terra e mercúrio usado na extração é despejado em rios, envenenando estoques de peixes e fontes de água”.
Esta reportagem especial da Amazônia Real é fruto de um esforço de 16 veículos de comunicação, de 10 países, coordenados pela Forbidden Stories, consórcio internacional de jornalistas investigativos que perseguem o trabalho de jornalistas assassinados ou sob ameaça. Dom Phillips morava no Rio de Janeiro, mas fez diversas coberturas jornalísticas na Amazônia. Em suas reportagens, mostrava preocupação com as relações assimétricas entre os diferentes exploradores da floresta amazônica. Um exemplo dessa desproporção se dá entre o garimpo ilegal e a mineração feita por grandes multinacionais. Em março, a agência, acompanhada de uma equipe de jornalistas do Expresso, de Portugal, visitou o rio Madeira para contar essa histórica luta pelo ouro.
Em outubro de 2022, uma operação ambiental da Polícia Federal (PF) com o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) explodiu 121 balsas e dragas de garimpeiros ilegais no rio Madeira, em Rondônia. Foi a última grande operação de fiscalização, ainda no governo de Jair Bolsonaro (PL). A chamada Operação Lex Et Ordo (que significa “lei e ordem”) gerou revolta entre os garimpeiros, que fecharam o acesso à rodovia BR-319, uma das principais vias portuárias de Porto Velho. Na ocasião, Maria Selma da Silva teve uma balsa destruída. Ela estimou um prejuízo de quase 200 mil reais. Foi a primeira vez que ela pensou em parar com a atividade. As dragas, embarcações maiores que fazem a sucção do leito do rio Madeira, chegam a custar 2 milhões de reais, e algumas também foram destruídas.
“Quando vejo falar em polícia, chega a me dar nervoso, parece que mexeu com o meu sistema psicológico”, afirma Maria Selma. Mãe de três filhos de 15, 23 e 35 anos, ela afirma que não quer uma nova geração de garimpeiros na família. “Pretendo sair daqui porque é muito ruim trabalhar perseguido, principalmente para a gente que procura viver honestamente. A gente é caçada, julgada e chamada de bandido, ladrão da União.” Mas, por ora, precisa continuar no garimpo.
Eleitora de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), no ano passado, Maria Selma está ciente do cerco do governo federal ao garimpo ilegal, que em janeiro deste ano deflagrou uma operação para acabar com a extração de ouro da Terra Indígena Yanomami, em Roraima. “Eu queria pedir para ele [Lula] procurar fazer uma análise dos garimpeiros. Convido ele para a gente tomar um café na minha balsa. Muita gente que depende do garimpo é pai de família, entendeu? São pessoas que não tiveram oportunidade de estudar”, diz.
Garimpeiros e mineradores, no Brasil, sabem que podem contar com políticos dispostos a comprar essa briga. Em 29 janeiro de 2021, o governo de Rondônia publicou o Decreto-Lei 25.780, que regulamentava o garimpo nos rios estaduais e revogava outro decreto (5.197/1991), que proibia a extração de minério ou garimpagem da Cachoeira Santo Antônio até a divisa interestadual com Amazonas.
“Famílias sofreram por décadas aguardando. Perdemos milhões e milhões em extração não regularizada”, comemorou o governador Coronel Marcos Rocha (União Brasil). Na visão do governador, aliado de Bolsonaro e reeleito no ano passado, para poder operar as balsas e dragas só precisariam apresentar licença e certidão ambiental emitidos pelo próprio governo estadual e ter cadastro na Capitania dos Portos ou Marinha do Brasil. Esse decreto foi considerado inconstitucional, sete meses depois, pelo Tribunal de Justiça de Rondônia.
O decreto estadual pró-garimpo era tão extravagante, que avançava na legalização do uso do mercúrio. Ao perceber que tal legislação fragilizaria “a proteção de todos os direitos [ambientais e paisagísticos]”, o Ministério Público Estadual pediu à Justiça pela sua inconstitucionalidade, já que essa desejada regulamentação diverge do compromisso internacional do Estado brasileiro de respeitar a Convenção de Minamata, que quer banir o uso do metal pesado no mundo todo. “O Judiciário já confirmou que é proibido, o Estado vai cumprir a proibição”, afirmou à reportagem Marco Antônio Ribeiro de Menezes Lagos, atual secretário do Desenvolvimento Ambiental. É o órgão que dirige que emite as licenças e certidões ambientais.
Agora, o secretário fala que balsas e dragas podem operar com autorização do governo federal no Alto Rio Madeira, que compreende a região acima de Porto Velho até a Bolívia. Ou, mais precisamente, nos 79 quilômetros que vão da Usina Hidrelétrica de Santo Antônio até a foz do rio Jamary; portanto, fora da Área de Proteção Ambiental, segundo o Ibama. Essa extensão corresponde a menos de 6% do total do rio Madeira, e não é a área preferida para o garimpo – na área visitada pela Amazônia Real é proibido. Menezes Lagos assegura que, segundo o governo estadual, o garimpo fluvial é constantemente proibido, assim como a pesca ilegal. “Não permitimos e quando é feito verificação atuamos.” No caso das balsas e dragas apreendidas, se não houver um projeto social que possa ficar com as embarcações, elas são destruídas. “O rio Madeira hoje é uma fonte de transporte do nosso grande bem que é a soja brasileira.”
A garimpeiro Selma guardando o mercúrio extraído do processo do equipamento chamado de Cadinho. (Foto: Bruno Kelly | Amazônia Real)
A atividade de extração do ouro aluvial, aquele encontrado nos rios, é danosa para a natureza. Publicado em maio de 2022, o Índice de Impacto nas Águas da Amazônia (IIAA) mostrou que um quinto das 2.299 microbacias na Amazônia foi impactado pela atividade. No caso das águas turvas e barrentas do Madeira, 421 das 1.274 microbacias (33%) estão significativamente afetadas: 65 têm impacto extremo (5%), 177 muito alto (14%) e 179 (14%) alto. Mas, embora não sirva de consolo, a mineração (506 microbacias ou 40%), é a terceira atividade de pressão, atrás da agropecuária (1.093 microbacias ou 86%) – que despeja toneladas de agrotóxicos e pesticidas no rio – e da degradação florestal (522 ou 41%). O IIAA faz parte do projeto Aquazônia, desenvolvido pela Ambiental Media e pelo Instituto Serapilheira.
Da forma como é hoje praticado, o garimpo no rio Madeira passa por cima do que vê pela frente. Desmatar, assorear o rio, erodir o solo, destruir o habitat de animais da floresta, tudo parece ser permitido para os caçadores de ouro. Por estarem em um rio caudaloso, os garimpeiros parecem acreditar que as águas levarão para bem longe a desgraça que lançam a todo momento, intoxicando peixes e outras espécies aquáticas.
Professor e pesquisador da Universidade Federal de Rondônia (Unir), Wanderley Bastos coordena um grupo de pesquisa biogeoquímica ambiental que analisa o quanto o mercúrio contamina peixes, plantas, água e as populações que habitam comunidades isoladas. O professor explica que o mercúrio metálico usado no garimpo forma uma amálgama (liga metálica) em contato com o ouro, apresentando uma espécie de ímã que separa outros componentes como terra, areia, sedimentos, sujeiras, cascalho e misturas orgânicas.
O líquido prateado contamina a atmosfera quando passa pelo processo de queima no cadinho – um destilador de confecção artesanal em aço inox. O dispositivo não faz a fundição do ouro, mas aglomera em bloco todas as partículas do metal. Após ser submetido às chamas do fogo liberado pelo gás de cozinha, pode ser retirado com a mão assim que esfria. Mas a fumaça expelida pode contaminar a atmosfera. Na separação do ouro, é comum que o amálgama seja queimado sem um controle ambiental. Com o calor, o metal se torna vapor e se alastra pelo ar. O uso do cadinho, segundo os garimpeiros, foi criado para evitar poluição dos rios, mas o biólogo ainda reconhece como perigosa a forma de manipulação e vaporização por meio da fumaça.
“Esse mercúrio que subiu para atmosfera e desceu vai se transformar na sua forma química mais tóxica, que é o metilmercúrio”. Peixes do rio Madeira que estão no topo dessa cadeia alimentar, por se alimentarem de pescados menores, têm concentrações de metilmercúrio muito maiores. A inalação ou ingestão de grandes quantidades de mercúrio resulta em sérias consequências neurológicas. Os sintomas podem incluir tremores, insônia, perda de memória, dores de cabeça, fraqueza muscular e — em casos extremos — morte.
O monitoramento trimestral do grupo de pesquisa de Wanderley Bastos também tem confirmado que a água do rio Madeira está com contaminações por mercúrio bem abaixo do tolerado – de 200 nanogramas por litro. Fica na faixa de 10 nanogramas por litro. Porém, em outros garimpos ilegais da Amazônia, essa situação é inversa. O uso descontrolado do mercúrio nos garimpos têm acabado com a vida no rio Tapajós, nos municípios de Itaituba e Trairão, no Pará. Pesquisas e análises feitas com os Munduruku pela organização não-governamental WWF e a Fiocruz comprovaram que seis de cada dez participantes apresentaram níveis de mercúrio acima de limites seguros. Uma em cada cinco crianças indígenas apresentou problemas de neurodesenvolvimento. O problema está no peixe, principal fonte de proteína do povo Munduruku. A análise revelou que todos os 88 exemplares de peixes, de 18 espécies diferentes, estavam contaminados pelo metal pesado. A contaminação chega a ser de 4 a 18 vezes maior do que os limites seguros preconizados pela Agência de Proteção Ambiental NortebAmericana (EPA).
De acordo com Wanderley Bastos, apesar de existir leis regulando o uso, o mercúrio ainda é negociado no mercado negro. As indústrias de eletroeletrônicos e cloro são os grandes utilizadores do sulfeto de mercúrio, empregado na galvanização de baterias e no tratamento a quente de amálgamas de ouro e prata, além da recuperação desses metais.
Descendo o rio Madeira até perto do rio Amazonas, a comunidade Puruzinho, em Humaitá (AM), no Baixo Madeira, é uma das que mais sofrem sem saber. Relatos do pesquisador da Unir indicam que há mais de 20 anos foram encontradas em amostras de cabelo de moradores níveis elevados da presença de metilmercúrio. “A Organização Mundial de Saúde (OMS) estabelece que seis microgramas por grama ou seis partes por milhão é o valor máximo que a gente deveria encontrar no ser humano. E eu cheguei a encontrar valores até de 160 partes por milhão”, diz o pesquisador.
Já existem pesquisas para buscar alternativas ao mercúrio. Uma das apostas é a árvore denominada de “pau-de-balsa” (Ochroma pyramidale), uma espécie amazônica abundante na natureza que tem se mostrado útil para separar o ouro da lama sem causar danos ambientais. A planta é cultivada no jardim da Unir e os estudos ganharam apoio da Fundação de Desenvolvimento das Ações Científicas e Tecnológicas e à Pesquisa do Estado de Rondônia (Amparo). “Parece um detergente e ela já vem sendo usada por algumas regiões, especialmente na Colômbia em substituição ao mercúrio”, pontua Bastos. O estudo está na fase inicial, mas já conta com apoio até de uma cooperativa de garimpeiros.
O garimpeiro Lenito usando o equipamento conhecido como Cadinho. (Foto: Bruno Kelly | Amazônia Real)
Ao contrário do que dizem os pesquisadores, o vereador Marcelo Reis (PSDB), de Porto Velho, argumenta que o cadinho usado para derreter e limpar o ouro com mercúrio não é poluente. Segundo ele, todo o metal pesado é reaproveitado. “Hoje as dragas e balsas puxam aquele material, ele cai em cima do carpete, o mercúrio que tá lá embaixo, fica no carpete, não passa. O mercúrio não é mais problema para quem trabalha na legalidade. O garimpeiro utiliza o chamado cadinho exigido pelas cooperativas.”
Empresário de garimpo, dos 17 até os 33 anos, Reis já teve balsas no rio Madeira e faz parte de uma rede de apoiadores com mais de 200 garimpeiros conectados pelo aplicativo de mensagens WhatsApp, onde trocam informações, inclusive alertando sobre fiscalizações. Segundo levantamento feito pelo parlamentar, mais de 6 mil trabalhadores diretos e indiretos operam em balsas. O faturamento calculado desse grupo é estimado em cerca de 60 milhões reais por mês em Porto Velho. Parte desses recursos circulam pela rua do ouro, na região central da cidade, onde é possível encontrar diversos estabelecimentos negociando jóias e fazendo a compra e venda de quilos, barras de ouro e produtos fabricados.
É dali que o metal precioso começa sua jornada para outros mercados, inclusive internacionais. Em Rondônia, ocorre o mesmo processo de lavagem de ouro de outros Estados brasileiros. Por meio de atravessadores, os que compram o ouro direto dos garimpeiros, o produto é vendido para uma Distribuidora de Títulos e Valores Mobiliários (DTVM), que preenche uma nota fiscal declarando que o ouro tem procedência legal, isto é, saiu de um garimpo legalizado – as chamadas Permissões de Lavras Garimpeiras, autorizadas pela Agência Nacional de Mineração (ANM). No caso do rio Madeira, basta citar que o minério nobre foi extraído de algum trecho permitido entre os 79 quilômetros autorizados.
Por meio de uma medida provisória, o governo federal mudou as regras para compra, venda e transporte do metal precioso, acabando com a chamada “presunção de boa fé”. No início de abril, o Supremo Tribunal Federal já havia suspendido esse artifício muito utilizado para esquentar o ouro extraído de garimpos ilegais e poder, inclusive, exportá-lo a outros países. Em 2022, esse comércio internacional rendeu 4,9 bilhões de dólares para o Brasil. As exportações de ouro deram um salto de 2,8 bilhões de dólares em 2018 para o recorde de 5,3 bilhões de dólares em 2021. No ano passado, Canadá (1,65 bilhão de dólares), Reino Unido (818 milhões), Índia (802 milhões), Suíça (662 milhões) e Emirados Árabes Unidos (443 milhões) foram os principais compradores do ouro brasileiro.
O vereador Marcelo Reis nega que os operadores do garimpo cometam crime de sonegação fiscal. “Mas por que o garimpo de ouro não gera tributação para o município, Estado e governo federal? A culpa é do garimpeiro? Qual foi a representatividade legal que buscou fazer da legalidade da atividade o controle na saída desse ouro para que ele seja comercializado aqui ou através de nota emitida pelo Estado?”, provoca ele.
Marcelo Reis também é jornalista e comanda o horário nobre na hora do almoço um programa policial de uma afiliada do SBT (TV Allamanda), emissora que ele administra. É um defensor do garimpo, dentro e fora das câmeras. “O que tem que se fazer é legalizar a atividade, fazer a manutenção do emprego dessas pessoas, manter essa estabilidade de renda per capita para a família inteira, evitar o êxodo dessa região do Baixo Madeira para a cidade e o município e o estado terem sua arrecadação tributária”, afirma. Segundo ele, as licenças de operação para as “fofocas” foram suspensas por meio de um decreto estadual em 2015. Com medo da fiscalização, segundo o vereador, garimpeiros têm negociado o ouro no país vizinho, a Bolívia.
Procuradora da República do Ministério Publico Federal, Tatiana de Noronha Versiani. (Foto: Bruno Kelly | Amazônia Real)
Aos olhos do Ministério Público Federal, instituição federal que fiscaliza o patrimônio brasileiro, o maior problema reside no garimpo ilegal que ocorre dentro da área de proteção do rio Madeira. A procuradora da República Tatiana Noronha Versiani lembra que existem lavras reconhecidas, autorizadas e monitoradas pelo Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima e pela Agência Nacional de Mineração. Por ser permitido, esse tipo de mineração providencia até mesmo a reparação ambiental, nos casos em que isso for necessário. Já na extração do ouro feito de forma clandestina nada disso ocorre. Na prática, há uma cadeia de exploração interna, composta de grandes proprietários de balsas, dragas e escavadeiras hidráulicas que se valem da vulnerabilidade econômica de muitos pequenos garimpeiros.
Até o meio do ano passado, o MPF tinha mapeado cerca de 800 balsas no rio Madeira atuando de forma ilegal. Além de fiscalizar a questão de crimes ambientais, o órgão também tenta coibir a cadeia criminosa que envolve a mineração como a comercialização do mercúrio, o uso de pistas de pousos clandestinas para transporte do ouro, a exploração sexual nos garimpos. A procuradora Tatiana Versiani lembra que no campo da ilegalidade “vai haver lavagem (de dinheiro) e isso vai ser reinserido no circuito econômico tentando mascarar a origem ilícita para exportação. É um fenômeno muito complexo e multifacetado”.
O serviço de inteligência da Polícia Federal (PF) em Rondônia recorre ao mapeamento de satélite, a informações cruzadas fornecidas pelas polícias ambientais e Ibama, e a dados disponibilizados pelos escritórios da Federal em outros países antes de ir a campo. Mas as operações de fiscalização são dificultadas no rio Madeira em razão da sua extensão transfronteiriça. Outro empecilho é a baixa infraestrutura com poucos servidores, barcos e helicópteros. Resta à PF concentrar as investigações sobre os grandes aliciadores que comandam o topo da cadeia de exploração ilegal do ouro e que possuem poder financeiro elevado. O que representa mais uma brecha para os pequenos e médios garimpeiros continuarem a formar “fofocas” pelo rio Madeira.
“O objetivo da Polícia Federal é bloquear e levar à Justiça essas organizações criminosas que têm o poder econômico maior e com isso inibir pessoas de entrarem nesse tipo de atividade como um pequeno garimpeiro, porque você corta um elo da comercialização do minério”, explica o delegado da PF Thiago Peixe. Uma das principais investigações é sobre o tráfico do ouro que pode ser “esquentado” no Brasil com a produção de documentos falsificados para legalizar e levar o produto para fora do país. De qualquer forma, o delegado garante que as forças policiais atuam nas duas frentes do garimpo ilegal.
Casal de moradores da comunidade ribeirinha de São Carlos, Leonor Pereira da Silva, conhecida como Noca, e Ariowilson Domingos da Vilva, de 72 anos, em sua casa. ( Foto: Bruno Kelly | Amazônia Real)
O distrito de São Carlos, em Rondônia, parece ter parado no tempo e seus quase 3 mil moradores queixam-se de abandono pelo poder público. A comunidade formada por pescadores não sabe o que fazer com o lixo produzido, boa parte do asfalto das ruas principais está danificado, o sistema de telefonia é ruim, assim como a internet. Não há médico regular no posto de saúde e no caso de uma emergência é preciso improvisar nos barcos uma ambulância para chegar em uma hora até a capital Porto Velho. Os jovens não possuem perspectivas. Com os relatos de que a pesca reduziu nos últimos anos em razão das hidrelétricas construídas no rio Madeira, Santo Antônio e Jirau, a única alternativa de sobrevivência tem sido o garimpo.
O Madeira é um dos maiores rios do Brasil e um dos principais afluentes do rio Amazonas. Possui a quinta maior bacia hidrográfica do planeta com mais 3 mil quilômetros de extensão e 125 milhões de hectares de águas. Os amantes da pesca esportiva apelidaram-no de “rio dos monstros”, sobretudo pelo tamanho dos peixes. Mais de 60% das espécies de animais descritas na bacia Amazônica foram encontradas nele. É um rio que nasce na Bolívia, onde é chamado de Beni, na encosta da Cordilheira dos Andes, atravessa o estado de Rondônia, onde recebe o nome de Madeira, e deságua na parte central do Amazonas, entre os municípios de Autazes e Itacoatiara. Sua hidrovia movimenta 10 milhões de toneladas por ano, e é um dos principais eixos logísticos do norte do País.
No inverno de 2014, toda a comunidade foi inundada pela transbordo do rio Madeira. A cheia foi causada por chuvas torrenciais, agravada pela vazão das hidrelétricas. Casas ficaram flutuando, inundadas ou tiveram destruição parcial. Na esperança de que tudo passaria, algumas famílias ficaram entre 15 e 30 dias ancoradas e boiando em embarcações perto de suas moradias, para evitar saques. Nos postes de energia elétrica e nas paredes ainda estão as marcas de onde o nível das águas chegou. Marcas que não se apagam.
O estudante Ruan Silva, 24 anos, tem recordações desse período. Nascido em São Carlos, foi garimpeiro e hoje trabalha prestando assistência técnica para a única empresa que oferece internet. Ruan simboliza a ambiguidade da população em relação ao garimpo. Em um trabalho escolar, por exemplo, decidiu falar sobre a proteção da natureza e, ao mesmo tempo, defender a mineração. O jovem cita a redução da calha do rio Madeira e a formação de bancos de areia como impactos negativos da atividade. “Se forem muitas balsas nas ‘fofocas’ acabam caindo os barrancos perto de sítios, que danifica a pessoa que tem a plantação de banana”, exemplifica. Por outro lado, explica ele, trata-se do motor da economia local. “É o garimpo que sustenta o mercado, os comércios, bares. Agora depois que acabou o garimpo a vila ficou parada. Não tem aquele movimento que era antes. Ficou meio escasso aqui de dinheiro.”
Educadora há mais de 20 anos, Berenice Simão se mudou para São Carlos há cerca de três anos. Doutora e pesquisadora, ela afirma que o distrito, formado basicamente por pescadores, passou a receber pessoas de outras cidades e Estados em busca do eldorado do rio Madeira, muitos deles vindos do Amazonas. Para ela o garimpo é um grande pesadelo. Ela cita a poluição do rio, a geração de lixo nas dragas e balsas, entre os principais problemas. “Mas o que mais machuca na questão do garimpo é a prostituição, o uso de drogas e a violência”, desabafa.
De acordo com Berenice, os jovens dizem andar armados nas balsas de garimpo como única medida para se protegerem. Certo dia, ouviu de um estudante: “Professora não tem jeito, se eu estou no garimpo, eu tenho que estar armado, senão eu posso não sobreviver”. Aqueles que não encontram oportunidades de trabalho e ensino superior, são recrutados para garimpar. “Há dois anos, alunas deixaram de terminar o ensino médio para serem acompanhantes dos seus maridos, todos jovens também nos garimpos.”
A prostituição é outra questão acobertada. “Um professor sentiu que os alunos estavam com muito sono na aula. Eram já adolescentes chegando na juventude. Ele acompanhou sem muita cerimônia e encontrou esses alunos dentro de um espaço de prostituição. Eram homens e meninos”, lembra. São bares construídos sobre flutuantes (barcos) que transitam pelo rio Madeira e se escondem em algum espaço mais dentro da mata.
Berenice reconstitui os fatos históricos e sociais que turbinaram o garimpo fluvial em anos recentes. Com a construção das hidrelétricas no rio Madeira, criou-se uma expectativa de que as obras poderiam trazer investimentos sociais e ambientais a partir dos milhões de royalties pagos para prefeitura de Porto Velho e governo estadual. Houve uma migração de pessoas do Amazonas que se deslocaram para Rondônia. Mas a prosperidade ficou no papel e o garimpo passou a empregar muitas famílias.
Em maio deste ano, a equipe do Ministério Público de Rondônia encontrou um adolescente de 15 anos que deixou de estudar por estar trabalhando numa draga de garimpo ilegal de ouro. O adolescente reafirmou ao procurador do Trabalho Jaime Fiomaro dos Santos Neto que dividia um quarto com outros adultos na própria draga, em condições insalubres e degradantes, e com indícios de endividamento compulsório para aquisição de itens básicos e alimentação. Trabalhava em jornada extenuante, que se estendia até o período noturno. Após a retirada do adolescente pelo Conselho Tutelar, o jovem foi devolvido aos pais e o proprietário da balsa, cujo nome não foi divulgado pelas autoridades, será responsabilizado por exploração de trabalho infantil análogo à escravidão.
Txai Suruí e Neidinha Suruí (mãe da jovem indígena) na sede da Kanindé, em Porto Velho. (Foto: Bruno Kelly | Amazônia Real)
Há mais de 50 anos, a ativista Neidinha Suruí atua na proteção dos povos tradicionais e originários de Rondônia. O trabalho dela na Associação de Defesa Etnoambiental Kanindé, uma organização não-governamental, é de ser uma frente de resistência contra a expansão do agronegócio nas terras indígenas, em áreas extrativistas e nos quilombos para conter o roubo de madeira, invasão dos territórios dos povos originários e, claro, o garimpo ilegal. Crítica do presidente Lula, que “há mais de 100 dias do novo governo não mudou quase nada”, Neidinha demonstra preocupação com o aumento de tragédias ambientais provocadas pelas mudanças climáticas. “A proteção do ambiente é uma questão de saúde pública e da própria sobrevivência na humanidade. Você não consegue ter vida num planeta, se não conservar o seu meio ambiente. Se você não garante, vamos ter muito em breve uma guerra por água, que já ocorre em alguns lugares. Nós vivemos uma emergência climática.”
No rio Madeira, a água que garante o sustento e a sobrevivência de inúmeros povos sofre as ameaças do garimpo ilegal, do agronegócio e da degradação florestal. “Imagina as pessoas que sobrevivem da pesca que precisa daquele pescado e o pescado vai estar adoecido por mercúrio. Precisa repensar a forma de desenvolver a Amazônia”, afirma Neidinha Suruí, que alerta que Rondônia é o segundo Estado com mais câncer no País “Não pode ser chamado de desenvolvimento econômico o que causa doença, o que adoece as pessoas, o que aumenta o volume de pessoas fazendo tratamento de câncer. E aí tu tem toda uma população adoecida, todo um bioma adoecido.”
Filha de Neidinha, a jovem liderança Txai Suruí herdou o ativismo da mãe e do pai, o cacique Almir Suruí, do povo Paiter Suruí. Ela surpreendeu o mundo ao discursar na abertura da COP26, a Conferência das Partes sobre Mudanças Climáticas da ONU, em Glasgow, na Escócia, em novembro de 2021. Representante da Guardiões da Floresta, uma aliança de comunidades que protege as florestas tropicais ao redor do mundo, Txai foi certeira ao cutucar a plateia de lideranças globais: “Vamos frear as emissões de promessas mentirosas e irresponsáveis; vamos acabar com a poluição das palavras vazias, e vamos lutar por um futuro e um presente habitáveis”.
À Amazônia Real, Txai Suruí lembra que as soluções para a floresta amazônica passa, necessariamente, “pelo olhar ancestral, pelo olhar originário”, porque eles estão aqui há pelo menos 6 mil anos, muito tempo antes de os colonizadores de todas as naturezas chegarem com o propósito de esgotar os recursos naturais. “Mas aí eu fico pensando quando é que o Iara, que é povo branco, vai se ligar? Quando não tiver mais rio, quando matarem todos os rios. O rio é sagrado para a gente porque a água traz vida, água que a gente bebe”, afirma. “A gente não para de destruir! Então eu fico pensando quanto que ela (sociedade) vai perceber quando realmente já não tiver mais volta? E uma coisa, eu sei: a natureza vai continuar aqui.”