A reportagem é de Thaís Borges e Sue Branford, publicada por Mongabay Brasil, 11-08-2022.
A Suíça é o segundo maior comprador do ouro brasileiro, atrás apenas do Canadá. Importou do Brasil 24,5 toneladas do metal precioso em 2021. O país europeu também abriga algumas das principais refinarias de ouro do mundo – Metalor, PX Précinox, Argor Heraeus, MKS Pamp e Valcambi.
No final de julho, essas refinarias assinaram uma declaração pública em que condenam o garimpo ilegal e se comprometem a rastrear e identificar a origem do metal precioso para evitar o processamento de ouro extraído ilegalmente de Terras Indígenas da Amazônia brasileira.
Também assina a declaração a Associação Suíça de Fabricantes e Comerciantes de Metais Preciosos (ASFCMP), que responde por 95% dos metais fundidos e refinados na Suíça – 90% dos quais é ouro. De acordo com o Conselho Federal Suíço, o mais alto órgão executivo do país, mais de dois terços do ouro negociado em todo o mundo passa pela nação europeia.
O garimpo na Terra Indígena Munduruku resultou em desmatamento, poluição da água, contaminação por mercúrio e uma onda de violência contra indígenas (Foto: Marcos Amend/Greenpeace)
O documento foi elaborado em parceria com uma delegação amazônica – independente do governo brasileiro – que foi a Berna em maio para se reunir com os representantes das principais refinarias suíças. O grupo, composto de lideranças indígenas e de comunidades tradicionais, advogados e pesquisadores, enfatizou como as refinarias desempenham um papel crucial numa cadeia produtiva que devasta a floresta e as pessoas que dela dependem para sobreviver.
“Esse ouro chega aqui na Suíça cheio de sangue. O Estado brasileiro é culpado pelas mortes que ocorrem em nossos territórios, e vocês que compram também são”, declarou Maria Leusa Munduruku, presidente da Associação de Mulheres Munduruku Wakoborũn, durante o encontro do qual a Mongabay participou.
A ativista sofreu represálias por sua luta contra o garimpo, e teve sua casa e parte de sua aldeia incendiadas por pessoas ligadas aos garimpos em 2021. “Eles tocaram fogo, nos ameaçaram com arma de fogo e atiraram nos pés dos meus filhos”, relatou aos representantes da indústria do ouro.
O território onde vive Maria Leusa, no Alto Tapajós, no Pará, é um dos mais afetados pela extração ilegal de ouro. Segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), a destruição na Terra Indígena Munduruku triplicou entre 2018 e 2020. A saúde dos Munduruku também foi severamente impactada pela poluição dos rios com mercúrio – um subproduto da extração de ouro.
Maria Leusa Kaba Munduruku e a filha Victoria, de cinco anos, protestam contra o garimpo em Berna, na Suíça (Foto: Thaís Borges | Mongabay)
Uma pesquisa realizada pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) identificou níveis de mercúrio acima do limite considerado seguro pela Organização Mundial de Saúde (OMS) em 60% da população de três comunidades Munduruku. Além de causar distúrbios neurológios, doenças cardíacas e até câncer, o mercúrio também pode ultrapassar a barreira placentária e atingir o cérebro do feto, causando danos irreversíveis.
“Em nome do desenvolvimento, não é possível mais matar as nossas crianças, as nossas mulheres e tampouco ignorar os sinais que a natureza tem dado”, disse Luiz Eloy Terena, coordenador jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), que também integrou a delegação. O advogado indígena relatou o caso de uma adolescente de 12 anos que foi sequestrada, estuprada e assassinada por garimpeiros na Terra Indígena Yanomami. Desde 2019, a maior reserva indígena do país, no estado de Roraima, tem sido sistematicamente invadida. Calcula-se que, hoje, haja mais 20 mil garimpeiros ilegais no território onde vivem quase 27 mil indígenas.
Atentos às denúncias feitas inicialmente por Maria Leusa e Luiz Eloy, os representantes das refinarias suíças reconheceram a gravidade dos impactos, mas afirmaram não comprar ouro da Amazônia. Dados oficiais relativos às exportações brasileiras, entretanto, mostram o contrário: pelo menos um quinto do ouro exportado para a Suíça em 2021 saiu de estados amazônicos. “Vimos que, dentro dos últimos dois anos, mais ou menos cinco toneladas do ouro oriundo de Itaituba [no estado do Pará] e Pedra Branca do Amapari [no estado do Amapá] vieram diretamente para a Suíça”, disse Christoph Wiedmer, codiretor da Sociedade para Povos Ameaçados, ONG suíça que articulou o encontro entre os empresários e a delegação amazônica.
Quase todo esse ouro foi ilegalmente extraído, mas a falta de transparência ainda ronda o setor, tanto na Suíça como no Brasil. “As refinarias sempre disseram que não importam ouro sujo. Então agora temos as provas de que o ouro saiu, mas não sabemos para onde foi exatamente”, explicou Wiedmer.
No Brasil, a lavagem do ouro ilegal é relativamente simples, e dá ao comercio um verniz de respeitabilidade. Um levantamento feito pela Universidade Federal de Minas Gerais em parceria com o Ministério Público Federal (MPF) concluiu que, de 30,4 toneladas de ouro produzidas no estado do Pará entre 2019 e 2020, ao menos 17,7 toneladas (58,4%) foram extraídas com falsa indicação de origem.
O estudo, denominado “Legalidade da produção de ouro no Brasil” utilizou dados públicos sobre a produção mineral brasileira – como as informações prestadas pelas empresas no pagamento da Contribuição Financeira por Exploração Mineral (Cfem), os registros de Permissões de Lavras Garimpeiras (PLGs) da Agência Nacional de Mineração (ANM) e as imagens do monitoramento da Floresta Amazônica do Inpe.
O cruzamento desses dados embasou uma ação do MPF contra três Distribuidoras de Títulos e Valores Mobiliários (DTVMs) acusadas de comercializar ouro ilegal: FD’Gold, Carol e OM. Essas instituições financeiras, que mantêm sedes em São Paulo e balcões de atendimento na Amazônia, declararam ter comprado o ouro de áreas onde a extração é permitida, mas imagens de satélite revelaram que nenhuma das localidades tinha qualquer sinal de exploração. Se condenadas, as três DTVMs podem pagar um total de R$ 10,6 bilhões por danos socioambientais.
Garimpo dentro da Terra Indígena Yanomami (Foto: Christian Braga | Greenpeace)
Outro ponto amplamente discutido em Berna foi o Projeto de Lei (PL) 191/2020, uma das prioridades do governo de Jair Bolsonaro no Congresso Nacional. O PL autoriza mineração e aproveitamento de recursos hídricos para produção de energia elétrica em Terras Indígenas.
“Essas atividades, dentro dos nossos territórios, configuram uma flagrante violação do direito dos povos indígenas, tendo em vista que a legislação brasileira outorgou aos povos indígenas o usufruto exclusivo de seus territórios”, protestou Luiz Eloy. “E nós sabemos também que esses grandes empreendimentos trazem outros tipos de violações aos nossos povos”.
Para o pesquisador Brian Garvey, integrante da delegação e professor da Universidade de Strathclyde, na Escócia, se as refinarias concordam que os povos indígenas não devem mais ser mortos e perder os seus meios de vida por causa das atividades de mineração, elas deveriam se opor ao PL 191, em vez de vê-lo como uma oportunidade de negócio.
Embora não tenham condenado o projeto de lei em seu comunicado, as refinarias expressaram “preocupações fundamentais sobre os efeitos negativos do PL 191/2020”, e se comprometeram a “rejeitar qualquer atividade de mineração ligada a áreas protegidas da Amazônia, sem o consentimento livre, prévio, informado e de boa fé das comunidades impactadas.
Os membros da delegação consideram a promessa das refinarias uma vitória para a Floresta Amazônica e seus povos. Com atuação independente do governo brasileiro, líderes de comunidades indígenas e tradicionais negociaram diretamente com as maiores refinarias de ouro do mundo e receberam apoio em sua luta contra a mineração ilegal e as violações de direitos humanos que se multiplicam.
A delegação amazônica e a equipe da Sociedade para Povos Ameaçados em Berna, na Suíça, onde negociaram com sucesso o acordo com as principais refinarias de ouro suíças (Foto: Thaís Borges | Mongabay)
Os assassinatos do indigenista Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Philips, ocorridos em 5 de junho, ainda repercutem em todo o mundo. Pereira estava fortemente comprometido na luta contra o garimpo nas Terras Indígenas. No início da gestão de Jair Bolsonaro, enquanto ocupava o cargo de coordenador-geral de Índios Isolados e de Recente Contato na Fundação Nacional do Índio (Funai), Pereira participou uma operação que resultou na destruição de 60 balsas de garimpo no Vale do Javari. Pouco tempo depois da operação, ele foi exonerado do cargo de chefia.
Bruno Pereira então se licenciou da Funai e foi trabalhar na Univaja (União dos Povos Indígenas do Vale do Javari), para auxiliar no monitoramento da Terra Indígena Vale do Javari e denunciar os crimes ali cometidos. Para além das invasões de pescadores, que saqueavam toneladas de peixes dos rios da TI, o indigenista estava preocupado com o avanço descontrolado do garimpo na região. Poucas semanas antes de ser assassinado, Pereira mapeou 11 pontos do Vale do Javari que haviam sido invadidos por garimpeiros e encaminhou as informações à polícia federal e ao MPF.
Embora pescadores tenham confessado a autoria dos assassinatos de Pereira e Philips, ainda há muito o que descobrir sobre o caso. A investigação continua em meio a uma escalada de violência, não apenas no vale do Rio Javari, mas em toda a Amazônia. Ante a indiferença do governo Bolsonaro em relação aos ataques a povos indígenas, iniciativas independentes como a viagem da delegação amazônica à Suíça fazem parte de um esforço modesto, mas potencialmente significativo, para acabar com o comércio internacional ilegal de ouro.