"Vivemos tempos cada vez mais difíceis, que desafiam aqueles que lutam para construir um mundo mais justo e fraterno. Conjunturas que desafiam a nossa criatividade pedagógica e política a confirmar e reformar estratégias, estilos e prioridades das lutas populares", escreve Flavio Lazzarin, padre italiano fidei donum que atua na Diocese de Coroatá, no Maranhão, e agente da Comissão Pastoral da Terra (CPT), em artigo publicado por Settimana News, 17-05-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Lula ganhou as eleições, mas a esquerda e principalmente os povos indígenas e as comunidades tradicionais do campo e litorâneas têm sérios motivos de preocupação.
Claro que a mudança de estilo político e o retorno às atitudes humanitárias, após quatro anos infernais, nos deixam aliviados.
Uma primeira ressalva deve ser feita: os primeiros cem dias de Lula, com os quais a mídia brasileira quis lembrar o New Deal de Roosevelt, têm um significado mais simbólico do que efetivo; é um tempo de discursos e gestos significativos, de inversão metodológica na interação com a sociedade, com o Parlamento, com a imprensa.
Obviamente lembramos o aumento do salário mínimo, o aumento de 9% no salário dos servidores públicos federais, a abertura de concursos públicos, a reforma da tabela do imposto de renda, que beneficiam 13,7 milhões de brasileiros, uma queda de 10% no preço do diesel, o programa Mais médicos e o aumento do valor do programa Bolsa Família. Acima de tudo, é importante destacar a sábia gestão da crise golpista de 8 de janeiro e da gravíssima crise humanitária na terra indígena Yanomami.
No dia 28 de abril, Lula declarou que determinará a demarcação de todas as terras indígenas do país até o final de seu atual mandato, em 2026. A promessa foi feita a centenas de representantes de comunidades indígenas durante o ato de encerramento do Acampamento Terra Livre, realizado em Brasília.
Muitas iniciativas. Mas certamente poucos meses não são suficientes para avaliar as escolhas políticas de um governo que acaba de tomar posse. É difícil ir além da avaliação positiva de escolhas simbólicas como aconteceu na cerimônia de posse de Lula e depois com a nomeação de Sônia Guajajara, Margareth Menezes, João Jorge Rodrigues, entre outros.
Igualmente importante é o papel do ministro da Justiça, Flávio Dino, com suas decisões e discursos republicanos claros e fundamentados. O Supremo Tribunal Federal é ator fundamental nessa conjuntura política, mas continuo tendo a impressão de um protagonismo excessivo do judiciário no contexto das relações entre os três poderes. Até a Polícia Federal parece ter se rearrumado e está atuando com uma série de investigações sobre os numerosos crimes de Bolsonaro e companhia.
Obviamente, nessa conjuntura, que continua desfavorável aos que lutam por justiça, a oposição radical ao governo federal não pode ser aceita de forma alguma. Não há dúvida: sou a favor. De fato, embora este governo não tenha - como não teve na gestão anterior - nenhum programa político digno desse nome, objetivamente ainda se apresenta como a única possibilidade de deter ou retardar, no momento, a ascensão do aliança da extrema-direita com as forças armadas e as elites empresariais e rentistas.
Em suma, se a extrema direita não conseguir voltar ao poder eleitoralmente em 2026, sem dúvida poderemos falar em vitória da esquerda, na única batalha crucial. Convenhamos: isso é muito pouco, mas é o que nos resta. Pouco, porque a extrema-direita aqui no Brasil não está derrotada e está passando por um processo de reorganização mais radical e, a seu modo, eficaz; enquanto, na maioria das nações ocidentais, continua a ser vitoriosa e poderosa.
É evidente que a tarefa prioritária deste governo será defensiva, contra as iniciativas bolsonaristas: voltadas a manobras complexas e incertas para convidar a direita eventualmente "democrática" a aliar-se ao lulismo para definir e organizar políticas públicas para o país, na ausência de recursos originados pelo boom da exportação de commodities agrícolas, que favoreceram os governos lulodilmistas anteriores.
Devemos entender que, na atual conjuntura política, só isso é realisticamente possível. No entanto, sabemos da fragilidade e da incerteza dessa estratégia, que também poderia resultar na interrupção do mandato presidencial. E sabemos que os inimigos do Partido dos trabalhadores não são apenas as elites, porque o bolsonarismo é um fenômeno popular, enraizado nas recentes transformações da sociedade brasileira, em que parece que até a própria classe trabalhadora – juntamente com a luta de classes – desapareceu como realidade e como conceito.
A situação atual é ainda mais negativa após quatro anos de governo de direita. É evidente que a lógica das milícias está tomando conta do Brasil, envolvendo os setores da pequena criminalidade urbana e os setores da grande criminalidade, da pilhagem capitalista nos campos e nas cidades. Não existem milícias apenas no Rio de Janeiro, porque a criminalidade miliciana está se espalhando na Amazônia e no Cerrado.
Veja-se o exemplo do estado de Roraima, onde, diante da tragédia do genocídio Yanomami, as iniciativas e as narrativas humanitárias do lulismo parecem ser as vencedoras, mas quem, por enquanto, se cala é a "máfia" que reúne militares, políticos, empresários do agronegócio, grileiros, madeireiros, garimpeiros de ouro e diamantes, companhias de mineração e contrabandistas, que transformaram o estado de Roraima numa zona franca de banditismo e o dominam como um território sem características republicanas.
Também poderíamos dizer coisas terríveis sobre outros territórios, considerados pelo capital como sacrificáveis: "zonas de sacrifício" são, na verdade, também Rondônia, Acre, Pará, Maranhão.
Como o governo irá então lidar com os 50.000 mineiros que se consideram, para todos os efeitos, trabalhadores e que, nas últimas décadas, como todos os garimpeiros e infratores do tráfico de drogas nas favelas, foram descartados e não encontraram outra forma de se inserir no mercado de trabalho? Será que eles vão reencenar a guerra contra as drogas, que continua equivocada e sem resultados nas favelas das metrópoles e cidades brasileiras? Além disso, parece inevitável, falando em garimpeiros e soldados do narcotráfico, relembrar os descartados da conspiração golpista na praça dos Três Poderes: Brasília, 8 de janeiro.
Também no Maranhão estamos vendo um aumento da violência contra os territórios indígenas e camponeses, e é uma violência com características milicianas. Não é simplesmente uma repetição da velha e conhecida forma de jagunços e pistoleiros, porque depois dos anos lulodilmistas de disfarce da violência com o código fiscal das Empresas de Segurança, os empresários da pilhagem capitalista renunciaram à camuflagem aparentemente legal voltando a mostrar o seu poder armado e politicamente articulado com setores do Estado - todos os três poderes - também conquistando novas simpatias junto à opinião pública.
O Estado nem sempre se revela cúmplice do crime organizado, mas constantemente – e hoje podemos dizer: constitutivamente – se mostra impotente como defensor e garantidor dos direitos dos pequenos: indígenas, quilombolas, comunidades tradicionais do campo e da cidade. O estado de direito é proclamado nos discursos, mas o que prevalece, na base, é o estado de exceção.
Minha indiscutível simpatia por narrativas progressistas e humanitárias não pode ser um antídoto suficiente para não desconfiar da capacidade do atual governo federal de oferecer soluções para a demanda por demarcação dos territórios indígenas, quilombolas e tradicionais, regularização fundiária e Reforma agrária.
Não me lembro de respostas políticas decentes e eficazes dos governos lulodilmistas e, atualmente, a situação é muito mais complexa e menos favorável para as políticas fundiárias, agrárias e territoriais. Naquela época, Zé Dirceu e Frei Betto nos repetiam: "Não conquistamos o poder, estamos disputando o governo" e naqueles treze anos a esquerda obedeceu efetivamente à estratégia prioritária de conter e limitar os danos do capitalismo predatório. Essa política de contenção de danos do capitalismo será viável neste momento?
Se os povos indígenas, quilombolas e ribeirinhos, pescadores e agricultores, forem mais uma vez obrigados a enfrentar o Estado, numa estressante e ineficaz repetição de reivindicações e mobilizações, como reagirão aos atrasos - álibi da impotência - e à incoerência das políticas públicas para os territórios? Em suma, como reafirmar politicamente a Esperança e superar essa leitura realista que olha preocupada e temerosa para a conjuntura?
Existem muitos outros desafios políticos de importância planetária, que, presentes nas narrativas simbólicas e nas escolhas ministeriais, estarão, no entanto, estruturalmente fora do alcance deste governo.
Pensemos, entre tantos exemplos possíveis, no bioma Cerrado, no programa MATOPIBA – extinto por decreto, mas funcionando a contento devido aos constantes investimentos -, nos empresários da agroindústria, pecuaristas, companhias de mineração, incluindo a extração de gás e os projetos de fracking, nas empresas que tratam de portos, rodovias, ferrovias, hidrovias, hidrelétricas e linhas de transmissão, produção de energia eólica e solar, agrotóxicos e agroindústria. Quem poderá remodelar o setor prioritário da economia brasileira, setor constitutivamente alternativo às preocupações com o meio ambiente, com a crise climática e a continuidade da Vida no Planeta?
A economia empresarial é majoritariamente de direita e de extrema-direita, tradicionalmente do Sul, formada por descendentes da segunda colonização - italianos e alemães - supremacistas brancos e armados, violentos e preconceituosos, racistas, misóginos, homofóbicos, quase sempre católicos tradicionalistas, com uma representação no parlamento de cerca de trezentos deputados que compõem a bancada do boi, dos ruralistas, geralmente associados ao partido evangélico e ao partido das armas.
É difícil acreditar que, de repente, a “esquerda” se converterá a políticas de defesa do clima e da vida. O passado recente sempre viu os governos de "esquerda" alinhados contra políticas sérias de limitação das agressões à Terra e aos territórios tradicionais: para os esquecidos lembramos o trágico exemplo de Belo Monte, sem esquecer Estreito, Jirau e Santo Antônio e a transposição do Rio São Francisco com toda as violências perpetradas contra os territórios urbanos na época da Copa do Mundo (2014) e das Olimpíadas (2016).
Em suma, vivemos tempos cada vez mais difíceis, que desafiam aqueles que lutam para construir um mundo mais justo e fraterno. Conjunturas que desafiam a nossa criatividade pedagógica e política a confirmar e reformar estratégias, estilos e prioridades das lutas populares.