05 Junho 2023
Em seu livro Si Auschwitz no es nada (Se Auschwitz não é nada), a filósofa italiana Donatella Di Cesare examina as formas pelas quais o negacionismo tentou rejeitar a existência do Holocausto, invertendo a relação entre vítimas e verdugos e produzindo a tese da “conspiração judaica mundial”. Nesta entrevista, a filósofa examina as novas formas de negacionismo, ligadas à emergência ambiental e à crise migratória, e explica como elas se relacionam com as novas teorias da conspiração e a ascensão da extrema direita.
A entrevista é de Mariano Schuster, publicada por Nueva Sociedad, edição digital, maio de 2023. A tradução é do Cepat.
O que é e como opera o negacionismo? Como se relaciona com as teorias da conspiração? Por que, para entender as características dos negacionismos contemporâneo, é preciso repensar os processos de negação da Shoah e dos campos de concentração nazistas? Muitas das respostas a essas perguntas podem ser encontradas em Se Auschwitz não é nada: contra o negacionismo, livro da filósofa italiana Donatella Di Cesare publicado recentemente em espanhol por Katz Editores.
Ensaio crítico e analítico, Se Auschwitz não é nada analisa as raízes profundas do negacionismo através de uma genealogia histórica em que mostra que os primeiros a praticar a negação foram os próprios autores dos crimes cometidos nos campos de concentração. Em seu ensaio, Di Cesare explica as maneiras pelas quais o negacionismo inverte os papéis entre vítimas e verdugos, desenvolve uma história alternativa e instala dúvidas hiperbólicas e improdutivas com vistas a produzir confusões políticas.
A publicação em espanhol do livro de Di Cesare coincide com o surgimento de novos negacionismos (climáticos, pandêmicos, da crise migratória) e com o surgimento, na Itália e em outros países europeus, de extremas direitas que bebem em fontes do passado. Nesse sentido, seu ensaio tem uma profunda atualidade.
Professora de Filosofia na Universidade La Sapienza de Roma e membro do Conselho de Doutorado da mesma Universidade, Di Cesare também tem uma participação relevante e permanente no espaço público e colabora ativamente com publicações como L'Espresso e Il Manifesto. Entre 2016 e 2022 foi membro do Conselho Científico do Centro Italiano de Refugiados e desde 2023 é membro do júri do Tribunal Permanente dos Povos.
Além de Se Auschwitz não é nada, Di Cesare é autora dos livros Heidegger y los judíos (Gedisa, 2017), Tortura (Gedisa, 2018), Estrangeiros residentes. Uma filosofia da migração (Editora Âyiné, 2020), Vírus soberano? (Editora Âyiné, 2020), Marranos. O outro do outro (Editora Âyiné, 2021) e O complô no poder (Editora Âyiné, 2022).
Nesta entrevista, ela analisa os discursos negacionistas centrados na Shoah e também reflete sobre os negacionismos atuais. Da mesma forma, explica as formas como a extrema direita instrumentaliza os discursos de negação e conspiração, ao mesmo tempo em que faz uma forte crítica à perda de rumo da esquerda contemporânea.
Há muitos anos você vem trabalhando, no campo da filosofia, em diversas questões relacionadas à construção de uma esfera pública democrática. Um de seus livros fundamentais, ‘Se Auschwitz não é nada’, dedica-se justamente a analisar um tipo de discurso que corrói essa esfera pública, ameaçando-a de diversas formas. Refiro-me ao negacionismo, e muito particularmente ao negacionismo da Shoah. Por que o negacionismo ainda hoje é um problema e de que forma ele se expressa?
Em primeiro lugar, devemos dizer que as democracias, na forma como as conhecemos hoje, especialmente as europeias, nasceram das cinzas de Auschwitz. Refiro-me, sobretudo, à Itália e à Alemanha, os dois países onde o fascismo e o nacional-socialismo se desenvolveram e sobre os quais recai a responsabilidade principal pelo extermínio da Shoah. Há muitos anos venho abordando a questão do negacionismo e o faço, como você disse, com foco na Shoah, por constituir um acontecimento da maior importância da história.
No meu trabalho pretendo mostrar a forma como os negacionistas e os revisionistas tentam alterar não só a história, mas também a própria memória democrática, bem como os mecanismos sobre os quais assentam as dúvidas que, apresentando-se como buscas de conhecimento, não constituem, rigorosamente falando, outra coisa que intervenções políticas destinadas a desacreditar a própria existência da Shoah. Devemos lembrar, neste sentido, que os primeiros a negar a Shoah foram os próprios nazistas, motivo pelo qual as origens dessa negação encontram-se nos próprios autores do crime.
Meu propósito em Se Auschwitz não é nada foi analisar as diferentes teses negacionistas e a forma como o negacionismo apresentou a Shoah como uma farsa e uma invenção dos judeus, que teriam usado sua própria mentira para criar o Estado de Israel, o que, dessa forma, os negacionistas sempre tentaram deslegitimar.
Claro que a questão do negacionismo ultrapassa a de um caso particular, e isso fica claro com uma série de fenômenos que presenciamos hoje, quando observamos a forma como diferentes atores, principalmente da extrema direita, favorecem novos processos ligados às teses dos negacionistas. Longe de constituir um fenômeno em declínio, o que ficou evidente é que o negacionismo está em plena ascensão. Tanto que se revelaram falsas as hipóteses levantadas há alguns anos, segundo as quais o negacionismo contemporâneo era limitado e reduzido e fazia parte de um processo de “regurgitação do passado”.
Hoje podemos falar muito claramente de uma série de negacionismos, no plural, que abrangem diversas áreas. Não se trata mais apenas do negacionismo da Shoah, que tratei em Se Auschwitz não é nada, mas de novas formas de negacionismo no século XXI, que incluem o negacionismo em relação às mudanças climáticas ou, por exemplo, o negacionismo da pandemia. Essas questões estão claramente ligadas à agenda e à filosofia das novas direitas e, portanto, estão no centro do debate público.
Em ‘Se Auschwitz não é nada’, não apenas se dedica a analisar os fundamentos sobre os quais se baseiam as teses negacionistas da Shoah, mas também traça uma genealogia de quatro momentos desse negacionismo. O primeiro, que ocorre imediatamente após o fim da guerra, consiste em acusar os judeus de falsificar a história. O segundo ocorre durante a Guerra dos Seis Dias, quando os judeus são acusados de terem inventado uma história com um único propósito: o de criar o Estado de Israel. O terceiro é marcado pelo affaire Faurisson e pelo debate em torno do “revisionismo histórico”. O último estaria marcado por um negacionismo que, através de sua divulgação nas redes sociais, começa a colonizar novas esferas do espaço público. Qual é a conexão entre todas essas teses? Partem do mesmo fundamento e são apenas sequências do mesmo argumento ou constituem diferentes formas de negação?
Devo dizer-lhe que gosto quando você introduz a palavra “genealogia” nesta conversa, porque é efetivamente o que pretendo fazer no meu livro: traçar uma genealogia do negacionismo da Shoah, que pode ser conectado a um negacionismo mais amplo que inclui os fenômenos atuais. Hoje, acredito que se deve acrescentar mais um momento a essas quatro fases apresentadas no livro, ligado à forma como a disseminação de teses negacionistas favorece cada vez mais as teorias da conspiração ou do complô.
De fato, o fio condutor do negacionismo – que constitui em si um fenômeno de propaganda política e, nesse sentido, diz respeito ao espaço público – é a rejeição de uma verdade considerada “oficial” e a inversão de papéis entre vítimas e carrascos. Do meu ponto de vista, a primeira fase, que começou a se desenvolver entre 1944 e 1945, é de extrema importância, pois visa diretamente exonerar e inocentar o nacional-socialismo e o fascismo pelos crimes cometidos durante a Shoah.
Esse processo de exoneração se produz afirmando que as câmaras de gás e os crematórios, que constituem a particularidade do processo de industrialização da morte típico do nacional-socialismo, não existiram. E se esses elementos são rejeitados, um primeiro objetivo é alcançado: igualar o totalitarismo nazista ao totalitarismo soviético.
A tese dos “dois totalitarismos” parte do pressuposto de que os campos de concentração são semelhantes aos gulags, e ao fazê-lo, gera uma condição de igualdade que rebaixa a categoria de campos de concentração nos quais o que se produziu foi uma forma particular e um extermínio cruel vinculado a um processo de industrialização da morte.
Não é por acaso que a extrema direita contemporânea se apoia nessa tese dos “dois totalitarismos” para afirmar que na Alemanha houve um “totalitarismo como os outros” e que, portanto, é coisa do passado, que não difere em nada de outros totalitarismos. Para a direita pós-totalitária contemporânea, a tese dos dois totalitarismos cai como uma luva.
Você expressa muito claramente que a origem daquilo que chama de “dúvida hiperbólica do negacionismo” consiste na discussão da cifra, do número de mortes na Shoah. Isto é algo que podemos ver também em outros casos, como o dos desaparecidos na Argentina, onde as teses negacionistas estão centradas no número. Qual é, fundamentalmente, o propósito dos negacionistas quando o assunto é a discussão dos números? Essa discussão expressa uma maneira pela qual o negacionismo se veste com a roupagem do revisionismo histórico?
A questão dos desaparecidos na Argentina não apenas tem muitas semelhanças quanto à posição dos negacionistas quando se trata de discutir os números, mas também é, para mim, uma questão muito próxima, como conheci ao longo dos anos 1970 muitos argentinos e argentinas que vieram para a Europa como exilados. Eram pessoas que prestavam depoimentos, que contavam o horror causado pela ditadura militar e as terríveis situações de tortura a que tantos cidadãos foram submetidos.
A discussão sobre os números é, obviamente, de capital importância e diz respeito a uma operação política muito específica. Vejamos o caso da Shoah. O que os negacionistas fazem? Eles pedem o número concreto, o número preciso das pessoas que foram exterminadas. E perguntam, como se fosse um interrogatório inocente: “São realmente seis milhões?” E respondem: “Se não são, obviamente, você está mentindo”. O mesmo acontece em relação à situação dos desaparecidos na Argentina. Eles podem dizer: “São realmente 30.000? Porque se não forem, você está mentindo”.
O problema é que está muito claro que não podemos saber o número exato, embora isso não mude, evidentemente, a gravidade do crime cometido. O ponto fundamental é que esse tipo de proposição instala uma dúvida, mas não uma dúvida construtiva, mas aquilo que chamo de “dúvida hiperbólica”. Os negacionistas, que operam como “dobermans do pensamento”, não perguntam inocentemente um número, não têm uma dúvida real e uma vocação para conhecer mais e melhor um fenômeno.
O que eles fazem, rigorosamente falando, é instalar uma dúvida que contém em si a afirmação negacionista. É uma dúvida propositalmente levantada para negar ou atenuar os acontecimentos. É uma dúvida, em suma, que se instala para destruir a memória e os aspectos substanciais da comunidade democrática construída, com muito trabalho, após a Shoah ou após a ditadura argentina.
Mas esse tipo de pergunta pelos números exatos não apenas constitui uma forma de negação velada no quadro da dúvida, mas é a pedra sobre a qual se constrói, na sequência, uma história alternativa. E na construção desta história alternativa, são os familiares que sofreram perdas que são responsabilizados por mentir e enganar. Mais uma vez vemos como o negacionismo inverte os papéis e transforma as vítimas em responsáveis por um engano.
Você costuma ser muito contundente ao afirmar que, para discutir com teses negacionistas, é preciso sair da esfera do debate dos especialistas. Segundo sua perspectiva, o fato de os historiadores participarem do debate público contestando as teses negacionistas não só não mudará essas teses, como poderá até contribuir, como afirma em seu livro, para legitimá-las. Por que isso acontece?
De fato, como você aponta, muitos historiadores, e especialmente aqueles que são especialistas na Shoah, tenderam a considerar que, enquanto as posições negacionistas e revisionistas questionavam dados e situações que dizem respeito à história, sua necessidade e obrigação era responder-lhes a partir do conhecimento histórico. Este processo de resposta às teses negacionistas e revisionistas por parte da comunidade historiográfica tem sido bastante visível em países como Itália e França.
No entanto, e apesar da vontade dos próprios historiadores, as suas respostas não serviram para dissipar quaisquer dúvidas. Muito pelo contrário, essas respostas de especialistas produziram uma legitimação das teses revisionistas e negacionistas, porque deram validade a essas dúvidas, considerando que elas se limitavam à esfera da história. O problema é que, antes de responder a uma determinada pergunta, devemos nos perguntar, filosoficamente, sobre seu caráter. E isso é o que os historiadores não fizeram.
O problema é que as dúvidas dos negacionistas e revisionistas não visam conhecer mais um determinado fenômeno, esclarecer incógnitas e questões. Não se trata de pessoas que duvidam para conhecer mais e melhor um determinado processo, mas de pessoas que negam pela dúvida. É uma dúvida que se apresenta como real, mas que não é. As dúvidas dos negacionistas, em última análise, não são dúvidas “produtivas”.
Na verdade, nem sequer são dúvidas: são intervenções políticas cujo objetivo é questionar o próprio fato histórico por meio dessa suposta dúvida. Ao responder-lhes como se suas dúvidas tivessem algum caráter produtivo, os historiadores legitimaram essas teses. Responderam-lhes como se fossem teses inocentes, levantadas por pessoas que querem saber mais sobre o que aconteceu ou por sujeitos que carecem de informações e que, se as tivessem, levariam em consideração a posição dos especialistas.
O problema é que não é assim que acontece. Quem nega não ignora. Quem nega não é ignorante. Quem nega levanta a dúvida com um objetivo político e não com um desejo real de conhecimento. Consequentemente, esta questão, que é política e não meramente histórica, não pode ter apenas a resposta legitimada dos historiadores. Em todo o caso, deve suscitar uma ampla gama de vozes que também colocam em tensão a natureza da dúvida levantada pelos negacionistas e revisionistas.
Em ‘Se Auschwitz não é nada’ você enfatiza o fato de que a argumentação negacionista se baseia em um processo de inversão dos papéis. O negacionista, segundo você, só aceita a vítima transformada em cinzas como prova da existência da Shoah. Você diz explicitamente que “o negacionista pede aos aniquilados que prestem contas de sua própria aniquilação. E diz ao sobrevivente: a aniquilação não aconteceu, do contrário você teria que ter sido aniquilado”. Diante de uma posição desse tipo, com que argumentos a filosofia pode discutir as teses negacionistas, se no próprio ato da negação reivindica-se a aniquilação do outro como prova da verdade?
Permita-me, para lhe responder, fazer um comentário sobre o livro. Meu ensaio é dedicado a Shlomo Venezia, um dos pouquíssimos sobreviventes do Sonderkommando de Auschwitz. É alguém que conheci pessoalmente e que foi muito importante para mim, a ponto de a escrita de Se Auschwitz não é nada ser uma espécie de homenagem a ele. Sua vida e seu testemunho exemplificam muito bem a atitude dos negacionistas, pois sempre o consideraram um farsante.
A razão é que os negacionistas consideram que não podem existir testemunhas e sobreviventes da Shoah. E o argumento usado é exatamente esse que você propôs: “Se você está aqui e diz que sobreviveu a uma situação desse tipo, está mentindo, porque não se pode sobreviver a algo assim. Se os fatos que você narra fossem verdadeiros, você estaria morto”.
Nesse sentido, o negacionismo desacredita a própria existência das testemunhas que, como Lyotard e Agamben analisaram lucidamente, são, rigorosamente falando, sobreviventes. Trata-se de uma operação propagandística muito clara, que se baseia em questionar a testemunha como figura essencial na história e na esfera pública, em virtude de a testemunha não só pertencer ao passado, mas também testemunhar, na esfera democrática, às gerações presentes e futuras.
O caso de Shlomo Venezia é particularmente interessante nesse sentido, pois ele havia sobrevivido ao Sonderkommando de Auschwitz e pôde testemunhar a existência das câmaras de gás. Essa foi a razão pela qual, durante muitos anos, e especialmente nos últimos anos de sua vida, ele esteve na mira dos negacionistas, sendo acusado de ser um “super-falsificador”.
E este é um aspecto fundamental. Só vendo o negacionismo na sua genealogia histórica e desconstruindo as suas principais características é que poderemos responder aos desafios que coloca. E se o fizermos, veremos claramente que a sua intenção é fazer passar as vítimas por farsantes, as testemunhas por mentirosas e os sobreviventes por falsificadores.
Você afirma em seu ensaio que uma das principais campanhas dos negacionistas visa atacar a própria existência do Estado de Israel. É totalmente verdadeiro e comprovável que, historicamente, muitas posições que foram apresentadas como antissionistas tenderam não apenas a conter posições antissemitas, mas a questionar a própria possibilidade da existência de Israel. Hoje, porém, muitas forças políticas que expressam tradições que ontem eram negacionistas, como a Frente Nacional Francesa ou a Alternativa para a Alemanha, são ferrenhas defensoras do Estado de Israel. A situação não para por aí: é o próprio governo israelense, liderado por uma coalizão claramente de direita, que flerta com personagens como Víktor Orbán e Steve Bannon – dois paladinos da frente “anti-Soros”, contra a qual se esgrimem muitos antissemitas. Como explica este fenômeno?
No livro, interessava-me rastrear o processo que se iniciou imediatamente no pós-guerra e se estendeu até a década de 1970, passando pela Guerra dos Seis Dias, através da qual os discursos revisionistas típicos do negacionismo impuseram uma inversão de papéis. Esta inversão consistia em afirmar que a Alemanha tinha sido vítima dos Aliados, que não teriam compreendido o seu papel numa suposta salvação do Ocidente, enquanto os verdadeiros vencedores teriam sido os judeus que, através de um processo de falsificação de um suposto genocídio, teriam conseguido criar seu Estado.
É nesse sentido que o negacionismo sempre apontou contra a existência do Estado de Israel, inserindo a criação desse Estado no mito da “conspiração judaica mundial”. Ora, é totalmente verdade que muitas tendências do judaísmo da diáspora, do judaísmo que poderíamos considerar como de “vanguarda popular”, e do judaísmo filosófico representado por pessoas como Hannah Arendt ou Walter Benjamin, passaram por um processo de regressão. E isso é algo que fica evidente na progressiva perda de influência dos setores mais progressistas dentro do próprio Estado de Israel.
O forte crescimento da direita israelense, que se fez acompanhar de uma série de políticas discriminatórias, serviu de pretexto para que a extrema direita europeia se posicionasse favoravelmente a um Estado ao qual era fortemente crítica. Isso é algo que, como você colocava, fica muito claro no caso de Marine Le Pen e da Frente Nacional (hoje Reagrupamento Nacional) na França, assim como no caso do Alternativa para a Alemanha, mas também envolve partidos como o Vox na Espanha e a própria direita italiana representada por Giorgia Meloni.
Ao manter uma posição de ferrenha defesa de Israel, como se fosse um bloco monolítico – negando a existência de vozes de oposição como as que recentemente saíram para se manifestar em diferentes praças do país em defesa da democracia –, a extrema direita europeia consegue dois objetivos: fortalecer suas próprias posições e se desvencilhar do passado negacionista.
Ao mesmo tempo, e no sentido que você propôs, considero necessário olhar para os fenômenos que ocorrem dentro da própria comunidade judaica nos países europeus. Na Itália, sem ir mais longe, não são poucos os membros da comunidade que apoiaram e deram seu aval ao governo Meloni, que pertence a uma extrema direita pós-fascista. Esse processo de direitização se deve, no entanto, a uma crise geral da esquerda.
No entanto, coloco Israel como parte da Europa, porque filosófica e geopoliticamente essa tem sido historicamente sua localização (sabemos que as localizações políticas superam as geográficas), e considero que a virada para a direita faz parte de um processo geral da crise da esquerda. Essa crise não é apenas política, mas também diz respeito à tradição intelectual sobre a qual repousam as ideias de esquerda.
Nesse sentido, devemos lembrar que boa parte da tradição intelectual da esquerda europeia vem do grande pensamento judaico, que vai de Marx a Trotsky e Benjamin, e de Arendt à Escola de Frankfurt, e que são justamente essas valiosas tradições que hoje vivem uma profunda crise. Em Israel, esse processo se expressa politicamente na hegemonia de uma extrema direita capaz de abraçar posições hiper-reacionárias como as de Steve Bannon ou Viktor Orbán.
Como as declarações negacionistas se conectam às teorias da conspiração? Existe uma ligação clara entre os dois fenômenos?
Sim, há um vínculo claro. De fato, é possível afirmar que o negacionismo é, em si, uma forma de complotismo e de conspiração, na medida em que nunca se limita a apenas negar, mas que introduz o que nega dentro de uma teoria do complô. Nesse esquema de pensamento, as vítimas são transformadas em culpadas e na suposta forma de instrumentalização de forças ocultas.
A ideia da “mentira de Auschwitz”, levantada historicamente pelos negacionistas, é um bom exemplo disso. Nessa forma de argumentação, Auschwitz não seria apenas uma farsa e uma invenção, mas foi idealizado para o lucro de determinados poderes ocultos. A tese da “conspiração judaica mundial” está ligada ao negacionismo e é, nesse sentido, uma demonstração palpável da ligação entre negacionismo e conspiração.
Atualmente, podemos ver claramente essas questões, por exemplo, em relação a questões como as mudanças climáticas. As posições negacionistas rejeitam que estejamos diante de uma situação crítica em termos ambientais. Após a rejeição, segue-se um posicionamento que responsabiliza os ambientalistas e os ecologistas por tentarem impor uma agenda que responda a algum tipo de poder. Não é por acaso que em contextos críticos como os que vivem nossas atuais democracias, personagens como Donald Trump ou Jair Bolsonaro chamem tanta atenção.
São líderes políticos que, dirigindo-se diretamente ao povo, afirmam que este está sendo enganado por poderes ocultos e que eles o defenderão desses poderes. Pensemos no discurso de Trump. Consiste, em termos muito fundamentais, em afirmar o seguinte: “Defenderei a nossa identidade e a nossa pureza, que está sendo atacada por eles. Eles, no caso, são os imigrantes, as feministas e os homossexuais. Eles têm um plano para destruir a América, mas defenderei nossa identidade, nossa pureza, nossa identidade homogênea. Eu sou o salvador dos Estados Unidos, do corpo místico dos Estados Unidos. Eu sou aquele que defende esta nação de seus inimigos”. Este tipo de discurso não está presente apenas no supremacismo estadunidense, mas também nas teorias da “grande substituição” na Europa.
Dito isto, penso ser importante frisar que a conspiração, neste tempo, surge sobretudo diante da impossibilidade dos cidadãos identificarem o poder. Vivemos em uma época em que, quando nos referimos ao poder, não sabemos exatamente ao que estamos nos referindo ou onde está. O poder já não é mais claramente identificável, não tem um nome e um endereço postal.
E isso, evidentemente, favorece o complotismo. “Se os governos mudam, mas as políticas permanecem e não somos mais capazes de distinguir um do outro, deve ser porque esses políticos são agentes da Nova Ordem Mundial que vem de fora”, afirma um adepto da conspiração. Porque a conspiração tem sempre um caráter externo, quem governa o faz “para outro”, há alguém “de fora” que mexe os fios.
O que constitui um problema óbvio de natureza política – o fato de os governos mudarem e tudo continuar igual – transforma-se, nas teorias da conspiração, na demonstração de que existe uma espécie de poder oculto que tudo domina. Esse pensamento parte de uma suspeita legítima, mas se encadeia de uma forma tal que suspende a política e se articula na forma de um complô. A teoria da conspiração preenche um vazio diante de uma situação de impotência.
Sob tal consideração, não se trata mais, como alguns acreditaram, de desmascarar a conspiração como resultado da ignorância ou do pensamento mágico e supersticioso. Esse tipo de condenação moralista é improdutivo e incorreto, porque a questão da conspiração é eminentemente política.
Muitas dessas questões estão diretamente ligadas à agenda da extrema direita. Em seu país, Giorgia Meloni, do partido Fratelli d'Italia, é agora primeira-ministra. Como caracteriza a ascensão de Meloni?
O governo de Giorgia Meloni é, sobretudo, o primeiro governo pós-fascista da Europa. E se passa, justamente, no país que deu origem ao fascismo. Se utilizo, neste caso, a categoria de pós-fascismo, é porque existem claras e nítidas diferenças com o que poderíamos chamar de tradição “neofascista”. Enquanto o neofascismo se reduz hoje a pequenos grupos que reivindicam abertamente o programa de Mussolini e se referem especificamente à experiência do fascismo histórico, o pós-fascismo apresenta algumas características comuns com as teses tradicionais do fascismo, mas se constitui como um fenômeno novo que não expressa diretamente o ideário fascista nem manifesta publicamente uma idolatria mussoliniana. O pós-fascismo se insere, nesse sentido, em uma nova dinâmica da extrema direita.
Uma das características mais marcantes do governo Meloni é a construção de inimigos muito claros, entre os quais se encontram os migrantes, os ambientalistas e os grupos ligados às diversidades, acusados de perverterem a comunidade nacional. Apresentando-se como uma nova líder política e até mesmo como uma mulher popular nascida nas bases do povo italiano, Meloni constrói a autoimagem da líder que vem para combater um “globalismo” que, segundo sua concepção, “destrói a identidade italiana”.
Como em outros casos associados à extrema direita, Meloni apela a uma concepção homogeneizadora da identidade nacional, constituindo-se como aquela que é capaz de salvaguardar esse corpo místico. Seu discurso consiste, em termos muito fundamentais, em afirmar: “Eu sou um de vocês e os dirijo, e como conheço vocês e sei quais são as nossas características como povo, sou a pessoa indicada para proteger a nação italiana daqueles que querem destruí-la”. O discurso de Meloni é um discurso que se insere, em última instância, na tradição da direita identitária neonacionalista, embora se combine com um atlantismo exacerbado na política internacional, que lhe permite suscitar uma certa aceitação estrangeira.
A posição neonacionalista de Meloni pode ser confirmada de forma muito clara em termos da rejeição de migrantes e refugiados, mas também em um uso mais amplo e abrangente da ideia de “estrangeiridade”, que corresponderia também às diversidades sexuais ou às mulheres que integram movimentos feministas. Por que estrangeiridade? Porque essas opções não corresponderiam, nos termos em que esta extrema direita pensa a comunidade nacional, com os valores e a identidade italianos. Claro que são propostas que constituem desafios muito claros à democracia e à cidadania, e nos mostram uma deriva de tipo “orbanista” [referência ao líder húngaro Víktor Orbán] desses espaços políticos.
Isso fica muito claro na criminalização das organizações humanitárias que colaboram e ajudam migrantes e refugiados, às quais se aplica uma espécie de xenofobia de Estado. O que sempre devemos ter em mente e não podemos perder de vista é que na base e fundamento político da extrema direita representada por Meloni está sempre a ideia de uma defesa da nação frente ao que lhe é estranho, frente a uma estrangeiridade, seja propriamente migrante ou de valores que esta direita não considera como parte do “corpo da nação”.
O problema é que, para enfrentar fenômenos como o pós-fascismo e a nova extrema direita, necessita-se de uma esquerda ativa e vigorosa, mas o que encontramos hoje é, ao contrário, uma esquerda em crise. Em um país como a Itália, que teve um Partido Comunista que chegou a ser a segunda força política em 1976, temos agora uma esquerda sem rumo e direção que subestimou o fenômeno político do pós-fascismo.
Nos últimos anos, tornou-se evidente que a esquerda italiana minimizou muitas características dessa nova extrema direita, tendendo a considerá-la um fenômeno de regurgitação do passado. Para ser bem clara: a esquerda acreditou que o apoio a posições xenófobas, homofóbicas e antifeministas da extrema direita era fruto da ignorância. A ideia de que a história, enfim, estaria do lado da esquerda e do progresso contribuiu para esse estrago e essa perspectiva equivocada. Ter considerado todos os fenômenos do negacionismo e do revisionismo como regurgitações do passado e como expressões de ignorância impediu a esquerda de levar a sério a tarefa de analisar o que são essas direitas e o que elas significam.
Você tem criticado muito o Partido Democrático, ao qual se refere como um “partido de centro”. Em um país como a Itália, que, como você mencionava há pouco, tinha o maior Partido Comunista do Ocidente, o que aconteceu com a esquerda?
Na minha opinião, a crise da esquerda italiana nasce, na verdade, nos anos 1970. Nessa década, ocorreu na Itália um grande movimento estudantil e operário que se manifestou nas ruas e nas praças, mas também em jornais e revistas e se tornou o movimento de protesto mais importante no Ocidente durante esse período. Tratava-se, sem dúvida, de um movimento muito diversificado, mas no qual prevaleceu uma ideia fundamental: construir uma esquerda não dogmática e heterodoxa que assumisse as lutas pelos direitos civis e pelos direitos humanos dentro de suas perspectivas políticas.
Desde aqueles anos me sinto parte dessa tendência política, reconhecendo-me numa posição que se situa à esquerda do antigo Partido Comunista Italiano (PCI). Foi nesses anos que, participando desse movimento de protesto e revolta, conheci militantes argentinos e uruguaios que estavam no exílio político e que também participaram das nossas manifestações e das nossas lutas que se espalharam por diversos países da Europa.
Nessa época, e ainda estou falando da década de 1970, ficou muito claro que o Partido Comunista condenava e desacreditava politicamente as manifestações sociais dessa nova esquerda política e cultural. Em última análise, o Partido Comunista considerava que todo o movimento poderia ser reduzido à categoria de “terrorismo”, equiparando os vários protestos às ações das Brigadas Vermelhas. Este processo de descrédito e repressão das tendências mais vivas do movimento operário e estudantil que buscavam uma esquerda renovada não terminou com a queda do Muro de Berlim e o consequente desaparecimento e reconversão do Partido Comunista Italiano.
Mesmo sem o Partido Comunista, os representantes hegemônicos da esquerda, ou seja, do Partido Democrático, tendiam a continuar rejeitando posições ideológicas libertárias e de esquerda, de forma ainda mais vigorosa. A queda do Muro de Berlim e a instalação no mundo todo de uma ideologia capitalista que se apresentava como incontestável reafirmaram essa tendência, em que a lógica da administração substituiu a lógica da política e da ideologia.
A situação atual é a de uma esquerda representada por um partido que não pode mais ser considerado de esquerda. O Partido Democrático é apenas um partido de centro que desempenha um papel muito negativo, pois impossibilita a reconstituição de uma nova e dinâmica esquerda. Frente à direita de Meloni no poder, o Partido Democrático não oferece alternativa e funciona como um freio e como elemento de detenção na possibilidade de desenvolver uma esquerda política que responda aos desafios que um tempo tão crítico como o nosso apresenta.
Em 2020 você escreveu ‘O tempo da revolta’ (Edições 70), um livro no qual reivindicava o fenômeno dos protestos e das lutas sociais frente a um capitalismo que parece ter ocupado todo o espaço do imaginário político. Onde estão as revoltas hoje? Até que ponto essas revoltas expressam algum tipo de imaginação de esquerda?
A questão da revolta é, para mim, em termos políticos, muito importante, pois sempre existiram dois fenômenos em torno dela. Por um lado, tem sido subestimada. Por outro, foi vista apenas como o antecedente de uma possível revolução. Nos últimos anos, porém, assistimos a fenômenos de revolta social em diferentes países – basta olhar para os protestos franceses nesses dias – que representam, sobretudo, processos de desobediência civil, de manifestações críticas de posições do poder político e econômico.
Este tipo de protestos e revoltas, como os que também são gerados por organizações humanitárias que salvam migrantes e refugiados, não tratam simplesmente de dizer “não”, mas se baseiam em uma política afirmativa que tenta responder à crise da democracia atual. O que me interessa, em particular, são essas formas de revoltas que chamo de “anarquistas”, não porque sejam animadas por sujeitos que se reconhecem como anarquistas, mas porque questionam o arché, o modo como se hierarquiza e governa o espaço público.
Felizmente, na Itália e como resultado da guerra, houve um fenômeno de envolvimento e de protesto por parte de cidadãos que se sentem de esquerda e que, longe dos espartilhos do Partido Democrático, saíram para se manifestar contra a guerra desde posições pacifistas.
Você se refere à revolta e à crise da esquerda. Há alguns meses, em um debate na televisão italiana, você reavaliou alguns aspectos da tradição comunista a partir de processos que não estavam ligados ao totalitarismo, mas eram, ao contrário, de natureza claramente libertária. Com base em quais ideias você acha que uma nova esquerda pode ser pensada hoje?
Certamente, como eu disse naquele debate televisivo que você mencionou, a história do comunismo não foi apenas uma história de opressão, mas também de emancipação dos mais fracos, ao mesmo tempo que um projeto de filosofia da história. Pertenço àqueles que acreditam que a tradição comunista não pode ser reduzida ao stalinismo ou ao totalitarismo de tipo soviético.
Sob essa mesma palavra, comunismo, lutaram muitos homens e mulheres que não queriam instaurar nenhum totalitarismo, mas que, pelo contrário, aspiravam a um projeto de libertação do povo. São pessoas que, em vários continentes, tentaram encontrar uma alternativa ao capitalismo e que, certamente, não tiveram nada a ver com nenhum regime de opressão e ditadura.
Como entenderá, acredito que o elemento libertário é fundamental e deve ser sempre levado em consideração, inclusive quando se repensa a tradição comunista, mas também outras tradições de esquerda. Meu interesse e minha intenção é, nesse sentido, o desenvolvimento de uma nova esquerda que possa ser articulada com ideias advindas da cultura anarquista. Uma esquerda, enfim, que seja capaz de discutir o Estado e o poder.
Posso pensar essa questão, claro, em termos propriamente filosóficos, e nesse sentido acredito que a incorporação do pensamento de Walter Benjamin, da Escola de Frankfurt, de Claude Lefort e das posições que surgiram do grupo Socialismo ou Barbárie na França, seria altamente proveitosa.
Mas, ao mesmo tempo em que essas posições são assumidas, é preciso pensar hoje em dar respostas a uma série de fenômenos contemporâneos que exigem ideias claras e reflexões muito concretas. A crise da esquerda se deve à sua confusão conceitual, à sua falta de reflexão sobre uma série de fenômenos que exigem uma atenção muito rigorosa. Espero que isso mude. Em todo caso, é necessário que assim seja.
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O que é e como opera o negacionismo? Entrevista com Donatella Di Cesare - Instituto Humanitas Unisinos - IHU