17 Mai 2023
Para um agnóstico como eu, uma vida significativa deve ser o máximo possível em uma criação inteiramente imanente, histórica e humana, não baseada na fé ou na crença em alguma recompensa transcendente. Eu não quero tomar emprestado livremente, sabendo que poderia ser recompensado por trapacear, mas quero criar meu próprio capital semântico e, no caso, ser recompensado por não trapacear.
A reflexão é do filósofo italiano Luciano Floridi, professor das universidades de Oxford e Bolonha. O artigo foi publicado em seu blog Onlife, 12-05-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Existem algumas parábolas famosas no Novo Testamento nas quais as pessoas viajam, chegam, vão embora ou voltam (por exemplo, Mateus 25,1-13 sobre as dez virgens; Lucas 15,11-32 sobre o filho pródigo). Mas eu tenho em mente uma que me intrigou por muito tempo: Mateus 25,14-15 (sobre os talentos), sobre o homem, provavelmente representando Deus, que estava “partindo para uma viagem” (ἀποδημῶν) e “voltou depois de muito tempo” (πολὺν χρόνον).
A palavra ἀποδημῶν significa “prestes a partir em viagem” e é a mesma palavra usada em outra parábola, quando Deus vai embora novamente (Mateus 21,33-46). Em ambos os casos, ele sai de casa por motivos não informados. Por que ele tem que ir? Ele não pode ficar? Parece que assuntos mais urgentes o chamam em outro lugar. Algo ou alguém é mais importante do que nós, que moramos na casa. Uma emergência? Ou talvez apenas um teste? Talvez ele só queira ver o que os ratos fazem quando o gato sai.
Quaisquer que sejam os motivos, há uma viagem, um tempo antes e depois de sua presença, e em seguida o longo tempo de sua ausência, aquele πολὺν χρόνον. E uma casa deixada para trás.
A ausência de Deus tem consequências, como seria de se esperar. Deus se torna uma lembrança do passado, para aqueles que estavam com ele antes de ele partir, e uma expectativa futura, para aqueles que acreditam que ele voltará. A parábola fala de uma ausência prolongada (πολὺν é muito tempo), mas não permanente. E ela não pode ser tão longa, porque as pessoas que o viram partir são as mesmas que o acolhem de volta.
Mas e se Deus voltasse muito, muito mais tarde? Não dias, semanas, meses ou mesmo anos, mas décadas depois? E se a ausência dele for sine die? O que aconteceria com as pessoas deixadas para trás?
Uma nova geração pode crescer conhecendo apenas os relatos daqueles que o conheceram. Os netos dos empregados, que herdaram a casa, podem ficar em dúvida. Nunca o conheceram, nunca o viram, nunca falaram com ele. E ele foi embora há muito tempo. Talvez nunca tenha existido. Talvez esteja morto. Pessoas duvidosas, agnósticas que vivem nessa casa vazia, não sabem o que pensar. Ouvimos os relatos, as histórias e as narrativas, entendemos a expectativa, a tradição, os costumes e os ritos. Conhecemos muitas famílias que agora afirmam que diferentes Deuses eram os donos da casa.
Mas não temos nenhuma lembrança de nenhum desses proprietários e não encontramos ninguém com essa memória. Não somos testemunhas e não conhecemos nenhuma testemunha. Deus partiu há tanto tempo que duvidamos que ele tenha estado presente na casa, acima de tudo.
Ele pode ser apenas um impostor, ou uma velha história, que as pessoas foram embelezando ao longo dos séculos e depois dos milênios, inventada para se livrar da responsabilidade por suas vidas e pela casa. Pois, se o lugar não é seu, você pode ser perdoado pelos frequentes descuidos, até mesmo pela negligência sistemática. Você pode até pensar que Deus cuidará de seu planeta. Você pode até matar em nome do verdadeiro dono da casa que um dia voltará.
Se sua vida depende de outra pessoa, que pode dar sentido a ela ou destruí-la, isso pode ser bastante reconfortante, especialmente se o fato de morar na casa é difícil e desafiador, incerto demais sem a propriedade e o retorno de Deus, difícil demais de se administrar e se aceitar. Um grande dono que está voltando é a desculpa perfeita para uma vida preguiçosa de adiamentos, atrasos, procrastinações, delegações e desresponsabilizações.
Muitos acreditam que ele não existe. Muitos outros acreditam que eles mereciam ser abandonados. Alguns têm fé em seu retorno. Os mais duvidosos – os agnósticos novamente – podem decidir que o melhor a fazer é viver como se Deus nunca mais voltasse, como se ele fosse apenas uma bela história, mas que nunca existiu, e cuidar da casa e de si mesmos, pois não há mais ninguém que o fará, enquanto ainda esperam contra toda esperança (a beleza de algumas frases) de que possam estar errados.
Eles assumem o pior cenário, sabendo que o melhor – a volta de Deus – se resolverá por conta própria. Se Deus voltar algum dia, ele os encontrará cuidando de sua casa e de seu bem-estar.
Tudo isso pode soar como a aposta de Pascal, mas não é. Pascal quer enganar a Deus. Sua sugestão é assumir seu retorno e tomar emprestado desse retorno qualquer valor agregado disponível, que é o capital semântico que dá sentido à sua vida. Se Deus nunca mais voltar, se ele nunca existiu, esse empréstimo terá sido sem juros, e você não terá que devolver o que nunca foi seu. Mas, se ele voltar, você ainda terá tomado emprestado sem juros, mas, desde que tenha investido com sabedoria, conseguirá reembolsá-lo.
Isso pode ser perspicaz, mas não parece uma boa maneira de tratar o patrão que partiu, assumindo que ele tenha realmente partido. Assumir seu retorno, apostar nele, pegar seu dinheiro, investi-lo bem e estar pronto para devolver o dinheiro, caso ele apareça novamente: não é de se admirar que Pascal tenha pensado que era uma relação “ganha-ganha”.
Mas me parece um pouco desonesto. Usar Deus e seu retorno como um meio, e não como um fim, para ter uma vida significativa agora, cujo significado não é seu, mas meramente emprestado, não criado por meio do trabalho árduo ou do compromisso real, mas graças a um mero cálculo do que seria a estratégia mais conveniente. A fé de Pascal é como tomar emprestado sem nenhum custo, sem nenhuma intenção de devolver, a menos que alguém peça.
Pode funcionar em termos lógicos. As pessoas têm debatido há muito tempo se isso funciona. Mas, moralmente, eu não gosto disso. É muito melhor agir na suposição oposta. Em caso de dúvida, como agnóstico (e racionalmente você deveria estar em dúvida), aja como se Deus nunca fosse voltar e nunca recompensará seus esforços. Aja como se estivesse sozinho. Aja de modo moral, significativo, gratuito. Cuide da casa vazia. Dê sentido à sua vida, não assuma meramente que ela é significativa apenas porque você acha que é mais útil apostar que Deus pode estar voltando.
Se ele partiu para sempre ou se nunca esteve por perto, em primeiro lugar, você será o dono de sua vida e da casa. Há coisas piores na terra. Mas se, contra todas as probabilidades, ele realmente voltar, se a casa realmente for dele – como você duvida fortemente, mas mesmo assim não pode deixar de esperar –, você poderá acolhê-lo como um self-made man, com presentes, com bons investimentos e com seus negócios em dia.
Quão mais louvável é dizer “eu fiz a coisa certa, mesmo achando que você nunca mais voltaria”, do que “eu presumia que você voltaria, por isso fiz a coisa certa”. A lição sobre a ausência de Deus não é que devemos esperar que Deus volte ou que devemos trapacear tomando emprestado um significado divino que não é nosso, mas sim que devemos criar o nosso próprio capital semântico que será agradável em si mesmo e nosso dom, se Deus alguma vez voltar.
Assim, para um agnóstico como eu, uma vida significativa deve ser o máximo possível uma criação inteiramente imanente, histórica e humana, não baseada na fé ou na crença em alguma recompensa transcendente. Eu não quero tomar emprestado livremente, sabendo que poderia ser recompensado por trapacear, mas quero criar meu próprio capital semântico e, no caso, ser recompensado por não trapacear. Não porque eu sei que Deus não vai voltar, pois eu não sei e não posso saber, mas porque desejo ter um presente se ele voltar no fim das contas, mesmo que eu duvide muito disso.
Ao contrário do que sugere Pascal, eu prefiro viver como se Deus não existisse, esperando estar errado.
Um caro amigo me disse uma vez que as pessoas em Nápoles têm um belo ditado: ao visitar alguém, você deve bater na porta com os pés. A explicação: porque suas mãos estão cheias de presentes.
É assim que devemos bater à porta do reino dos céus, com os braços carregando uma vida significativa, como um dom que não roubamos nem tomamos emprestado sub-repticiamente, mas que criamos e acumulamos por conta própria. Duvidando fortemente, mas, mesmo assim, esperando que alguém possa abrir a porta.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
A casa abandonada por um Deus viajante. Artigo de Luciano Floridi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU