06 Janeiro 2014
2013 passou nas ruas como "nunca antes na história deste País", quer dizer, desde o "Fora Collor" de 1992. No eixo Rio-São Paulo, nos poderes de Brasília, no asfalto e na terra, no fora do eixo das cidades rebeldes, foram hasteados milhares de cartazes com as mais diversas causas. E se não era só por R$ 0,20, passadas as jornadas de junho, o que restou?
"Os R$ 0,20 foram a faísca. Mas, como vimos, a pólvora estava bem seca, pois as chamas se alastraram rapidamente. O movimento explodiu quando as pessoas deixaram de ficar só no Twitter e Facebook, saíram do sofá e foram para a rua. Eram só R$ 0,20? Sim, mas que simbolizavam algo muito maior: um sentimento de injustiça social, de insatisfação com os rumos administrativos das cidades, de indignação", diz o sociólogo paulistano Michael Löwy, radicado em Paris desde 1969.
A entrevista é de Juliana Sayuri, publicada no jornal O Estado de S. Paulo, 29-12-2013.
Para Löwy, indignação é a melhor palavra para definir o espírito do nosso tempo. Diretor emérito do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS) e organizador de Revoluções (Boitempo, 2009) e O Capitalismo como Religião (Boitempo, 2013), Löwy costura Benjamin, Hessel e Weber, indignados e zapatistas, MPL e MST, para discutir esses tempos fraturados. Marxista insubordinado, como dizem As Utopias de Michael Löwy, o sociólogo concedeu esta entrevista exclusiva ao Aliás durante sua temporada no Brasil
Eis a entrevista.
Prof. Löwy, conversamos pela primeira vez após a ruidosa reintegração de posse da reitoria da USP (O Transbordo do Copo de Cólera, 13/11/2011). Lembro de uma expressão do sr. na época: seria uma ‘faísca’ o clamor dos estudantes contra a presença policial no câmpus. ‘Mas o que se passa é muito maior que isso. Há uma indignação com a ordem das coisas no mundo. Um sentimento de cólera.’ Nos reencontramos agora e pergunto: os R$ 0,20 também foram uma ‘faísca’?
Moro em Paris. Portanto, não acompanhei o princípio das jornadas de junho in loco. Desembarquei no Brasil em outubro - e ainda havia uma agitação no ar, protestos nas periferias de São Paulo e principalmente professores nas ruas do Rio. Eram novos capítulos desse longo junho. Assim, diria o seguinte: sim, os R$ 0,20 foram a faísca. Mas, como vimos, a pólvora estava seca, pois as chamas se alastraram rapidamente. O movimento explodiu quando as pessoas deixaram de ficar só no Twitter e no Facebook, saíram do sofá e foram para a rua, essa coisa antiga. Foi isso que provocou o terremoto. Eram só R$ 0,20? Sim, mas que simbolizavam algo muito maior: um sentimento profundo de injustiça social, de insatisfação com os rumos administrativos das cidades, de indignação com a ordem das coisas no mundo. Ao mesmo tempo, por trás dessa faísca imediata havia uma ideia mediata ainda maior: o próprio passe livre. À primeira vista, o movimento foca questões estruturais: o transporte coletivo deve ser público e gratuito, isto é, não deve ser um negócio. A ideia de gratuidade está na contracorrente da ideologia neoliberal, para a qual tudo é mercadoria. É simplesmente insuportável para a doxa dominante imaginar uma cidade em que os cidadãos não paguem para se deslocar diariamente. Além disso, a ideia de passe livre tem uma dimensão ecológica, pois ao organizar e privilegiar o transporte coletivo, organizar e garantir mais espaço para pedestres e ciclistas, seria possível reduzir progressivamente a frota de automóveis - e o verdadeiro pesadelo para São Paulo é esse excesso de carros, responsável por atravancar o trânsito e poluir o ar. No fundo, a demanda do passe livre, simples à primeira vista, carrega uma proposta complexa: outro mundo, outra realidade possível. Esses estudantes ousaram imaginar outra maneira de viver. Foi muito importante as jornadas de junho terem partido daí. No entanto, após a repressão brutal da polícia, nos governos de São Paulo e Rio, outros setores da sociedade foram às ruas também. Positivo, pois traz uma mensagem: não aceitaremos essa violência da PM nas manifestações pacíficas. Depois vieram black blocs e vândalos, mas isso é outra história. À medida que as manifestações explodiam, as ideias se diluíam. Após os governos recuarem no aumento da tarifa, ficou difícil de responder: quem é o inimigo agora? Começaram a pipocar questões, muitas justas, mas diversas: o dinheiro esbanjado nos estádios da Copa, a precariedade nos campos da saúde e da educação, os políticos corruptos, e assim por diante. Grupos de direita se infiltraram nos protestos, ao lado talvez dos grupos de esquerda. Com quem estavam, afinal? E contra quem? A certo ponto, virou confusão. Depois, a chama arrefeceu. No fim, ficaram duas ideias emancipadoras. Primeiro, a importância do serviço público para a sociedade. Segundo, se quiser seus direitos, o povo precisa ir às ruas.
Fiz essa pergunta ao historiador britânico Perry Anderson, seu amigo (A Rua e o Poder, 3/12/2013): nos últimos tempos, vimos o Occupy Wall Street, os indignados espanhóis e outros movimentos contra o capitalismo. A mensagem é similar: outro mundo é possível. Por que esses movimentos explodem, expõem as contradições do sistema e depois desaparecem? Aliás, desaparecem? Por que não podem ‘mudar o mundo’?
Infelizmente, não há resposta pronta. Mas digamos o seguinte: esses movimentos realmente se tornaram um fenômeno mundial. Passaram por Espanha, Grécia, Portugal, Turquia, Chile, Brasil e os "Occupies" presentes em diversos países. Essa ascensão está relacionada à crise financeira, mas principalmente às injustiças gritantes do neoliberalismo. É formidável assistir a esse sentimento de revolta na sociedade civil, principalmente na juventude, tomar corpo nas ruas. Inexplicável? Não, muito razoável: o mundo está passando por um momento de turbulência. Inexplicável é não haver ainda mais revolta: por que não há mais indignados noutros países? Estamos vivendo a mais dramática crise financeira desde 1929. Essa crise mostra a profunda irracionalidade do sistema: faltam recursos para resolver as questões mais elementares da população, mas há bilhões de euros disponíveis para salvar os bancos. Nesse sistema, os responsáveis econômicos e políticos só agravam a crise, com as políticas de austeridade, numa espiral sem fim, que faz com que economistas como Paul Krugman digam: mas é absurdo, como isso é possível? Bom, essa é a lógica irracional do sistema capitalista. As decisões são tomadas no mercado, no Banco Central Europeu, na Comissão Europeia - e os governos se curvam, obedecendo a essas decisões, nos ministérios e nos Parlamentos, com consequências terríveis para os cidadãos, como o desemprego massivo, na casa dos 60% entre os jovens gregos. Assim, há pouquíssima diferença entre governos de centro-esquerda e centro-direita. Às vezes paira a impressão de que a crise é um pretexto da classe dominante para desmantelar o que sobrou do welfare state, uma das conquistas do movimento operário no pós-guerra. Não sabemos aonde isso levará. Alguns de meus amigos marxistas acreditam que essa é a crise "final" do capitalismo, vítima de suas próprias contradições. Não concordo. Fico com Walter Benjamin, que dizia: o capitalismo nunca morrerá de morte natural. Apesar das crises, o sistema encontra saídas, como encontrou na década de 1930: uns com o fascismo; outros com a 2ª Guerra Mundial.
O último livro organizado pelo sr. reúne ensaios de Walter Benjamin. O que mais nos diria o filósofo alemão?
O Capitalismo como Religião é um fragmento escrito em 1921, com três ou quatro páginas. Foi encontrado na Escola de Frankfurt anos mais tarde. Era, na realidade, um rascunho, destinado a um só leitor: o próprio Benjamin. Apesar de hermético, é um texto incrivelmente instigante e atual. Walter Benjamin parte de Max Weber, que dizia que o capitalismo tem suas origens numa religião, com a ética protestante do trabalho. Mas Benjamin diz que o próprio capitalismo é uma religião, sem dogmas nem teologia, mas com cultos. As práticas capitalistas seriam uma espécie de ritual religioso ininterrupto de adoração ao dinheiro, ao ouro e ao invisível capital nos movimentos especulativos, nos investimentos, nos jogos nas bolsas. É capitalismo total, sem trégua e sem piedade - na expressão francesa sans trêve et sans merci -, impermeável a interferências da ética e valores outros. Não é "maldade", o sistema simplesmente é assim. Há nessa religião capitalista a ideia de schuld, uma palavra alemã que significa ao mesmo tempo "culpa" e "dívida". Essa coincidência é diabólica: somos culpados se estamos endividados. Na Europa, o discurso dominante do Banco Central Europeu e da Comissão Europeia diz que os países endividados são culpados pela crise - uns preguiçosos, esbanjam e não trabalham, isto é, uma culpabilização moralista dos povos. E a mídia designa esses países como pigs - iniciais de Portugal, Itália, Grécia, Espanha, uns porcos. Assim, Benjamin diz, a religião capitalista nos leva à "casa do desespero". Não é isso que vemos agora? Uma onda de suicídios, principalmente na Grécia e na Espanha. Mas o desespero também pode nos levar à raiva. Ou ao que os zapatistas chamavam de "digna raiva", isto é, a indignação. Aí as pessoas vão às ruas para extravasar esse sentimento, manifestar sua indignação. Ainda mais atual se lembrarmos de Stéphane Hessel, escritor e herói da resistência francesa, que já velhinho escreveu Indignai-vos. Esse pequeno livro traduz o zeitgeist, nosso espírito da época. Foi publicado em diversos países, como um chamado aos jovens para se indignar contra a injustiça - daí nossos indignados. Em sua juventude, Hessel foi amigo de Benjamin. Interessante que justamente um amigo do autor tenha dado essa "palavra de ordem" para uma alternativa ao desespero. Isso é extremamente positivo, pois sem indignação não há história. Nenhum movimento revolucionário aconteceu sem esse sentimento. Mas, apesar de ser uma condição necessária para qualquer transformação, a indignação não basta. É preciso passar para outro momento e propor alternativas.
Que alternativas?
Dentro dos movimentos dos indignados já estão surgindo propostas por alternativas. Mas falta encontrar uma expressão política, pois é no campo político que se decidirá aonde vão esses países. Essa é a parte difícil - não por culpa dos indignados, mas porque as forças políticas existentes não estão à altura dos impasses e das expectativas da sociedade. Na Espanha, o partido socialista não difere muito dos conservadores, enquanto a ala radical da Izquierda Unida ainda está muito engessada numa visão tradicional da política. Assim, falta sensibilidade para essa onda de protestos por uma política mais democrática, libertária e participativa. Há um descompasso entre os indignados e as organizações políticas presentes, mesmo as mais à esquerda. Exceto na Grécia, onde os indignados encontraram uma expressão política na chamada Syriza, a coalização de esquerda radical, com linhas do trotskismo e presença dos movimentos sociais. Foram os únicos que se solidarizaram com os protestos. Nas últimas eleições, eles saltaram dos 5% para os 28%.
A ideia de promover mudanças necessariamente passa pelo Estado?
A questão é complicada. Evidentemente uma série de alternativas e transformações sociais são impostas, na prática, pelos movimentos, paralelamente aos Estados. No Brasil, o MST não esperou que viessem as medidas da reforma agrária, mas começou a ocupar e cultivar as terras. É verdade que as iniciativas podem e devem vir da sociedade civil e dos próprios movimentos sociais - como a economia solidária como alternativa para a pobreza e o desemprego. Portanto, não é preciso esperar por tudo. Mas há limites, pois quem predomina é o capital. Em última análise, é preciso haver um enfrentamento antissistêmico que passe pelo campo político, pelas instituições. Obviamente essas instituições precisam ser transformadas. Ainda são totalmente oligárquicas e alheias aos interesses e aspirações da sociedade. O Estado, tal como está, dificilmente pode impulsionar transformações. Assim, a revolução deve ser estar no nosso horizonte histórico, mas isso não nos impede de lutar por reivindicações concretas e imediatas no presente.
As definições de ‘direita’ e ‘esquerda’ ainda valem atualmente?
Sim. É verdade que as diferenças entre centro-esquerda e centro-direita se reduziram muito. Ainda assim, há diferenças. Na França, o governo socialista de François Hollande é quase um "extremo centro". Quem encarna os ideias da esquerda atualmente é a esquerda radical. Na época da Revolução Francesa, a ala direita defendia o direito divino do rei, enquanto a esquerda defendia a soberania popular. Atualmente, a direita defende o direito divino dos banqueiros e da oligarquia financeira, enquanto a esquerda defende a soberania popular e o direito de decidir sobre a economia, a distribuição da renda e do consumo. No fundo, socialismo é isso, a democratização da economia. Logo, os princípios de esquerda e direita continuam valendo. Isso vale para a Europa e para a América Latina também.
Após décadas de neoliberalismo, vimos ‘novos’ governos na América Latina - Chávez na Venezuela, Kirchner na Argentina, Lula no Brasil. Nomes da esquerda também foram eleitos na Bolívia, Equador e Uruguai. Olhando para trás, as expectativas sobre esses governos eram muito altas?
De fato, aconteceu uma virada à esquerda na política latino-americana nos últimos 10, 15 anos, resultante de uma indignação popular com as diretrizes neoliberais que predominaram após as ditaduras. Isso mudou o retrato político da América Latina. Mas eu distinguiria dois tipos entre esses governos. Primeiro, um governo social-liberal, que não rompe com o padrão do neoliberalismo, mas demonstra uma preocupação social traduzida em diversas medidas. É o caso do Brasil, do Chile com Michele Bachelet (que voltou agora) e do Uruguai com Tabaré Vázquez e agora Pepe Mujica. É uma mudança positiva, certamente, mas na fórmula: fazer tudo o que é possível em favor dos pobres, com a condição de não mexer com os interesses dos ricos. Segundo, um governo anti-imperialista. É a Bolívia com Evo Morales, o Equador com Rafael Correa e a Venezuela com Hugo Chávez e agora Nicolás Maduro. Esses governos tentam romper com o modelo neoliberal - e peitaram uma briga dura para isso. Fizeram medidas mais avançadas, como a nacionalização dos recursos naturais e a preservação das culturas indígenas. Esses governos impuseram como seu horizonte histórico o socialismo do século 21. Nenhum deles ainda realizou esse socialismo, mas essas iniciativas mostram que ainda é possível ensaiar alternativas.
O socialismo no século 21 é possível? Também se tornaria uma religião?
O socialismo é uma herança preciosa, de séculos de luta. Ao mesmo tempo, há uma crítica das formas predominantes do socialismo no século 20, desastrosas, que polarizaram a social-democracia de um lado e o comunismo stalinista de outro. É preciso pensar um novo socialismo, democrático, ecológico, libertário, disposto a aprender com os movimentos sociais - e não pensar que as respostas do mundo estão apenas nos escritos de Marx, Lenin, Trotsky. Se o socialismo se tornaria uma religião? Não sei. Mas o socialismo tem uma dimensão de fé secular. Lucien Goldmann, um marxista ateu, se debruçou sobre isso. Dizia: não pode haver socialismo sem uma adesão a valores de justiça. É uma aposta numa possibilidade histórica. Goldmann lembra a aposta de Pascal: não podemos provar a existência de Deus, só podemos apostar. Com o socialismo seria a mesma coisa. Mariategui, um marxista latino-americano, dizia que há uma dimensão religiosa no socialismo, no sentido humanista e não transcendental. Entretanto, o que se deve evitar é a transformação do socialismo em igreja, com poder institucional, perseguição dos hereges, dogmatismo. Isso aconteceu com o stalinismo, o comunismo se tornou igreja inquisitorial.
Como o sr. responde a quem critica o marxismo como o ‘ópio dos intelectuais’?
(Risos). É verdade que certas formas de marxismo acabam se tornando um ópio, uma espécie de compensação imaginária para a realidade. Há formas alienadas de marxismo, sobretudo nas mais dogmáticas, como o stalinismo. Mas não são as únicas formas possíveis. Por exemplo, o que Perry Anderson indica como marxismo ocidental, como Benjamin, Gramsci, Lukács e a Escola de Frankfurt. É o bom marxismo crítico, dialético, subversivo. Não é ópio. É um sinal de alarme, um aviso de incêndio para despertar as pessoas.
Qual é o papel dos intelectuais?
Os intelectuais têm várias responsabilidades. Uma delas é transmitir a herança do pensamento crítico e revolucionário. Valorizar a herança de Marx, Gramsci, Benjamin, autores do século passado, mas extremamente atuais. Não dá para formular novas propostas sem lembrar dessas teorias. Por outro lado, o intelectual não pode se limitar a comentar os textos clássicos. Esses textos nos dão ideias e pistas, mas não respostas. Há situações novas e, para enfrentá-las, é preciso analisar essas questões. Terceiro, é preciso aprender com os movimentos sociais - os estudantis, os feministas, os indígenas, os negros, o MPL. Afinal, intelectual que não aprende não está cumprindo seu papel emancipador.
Que podemos esperar para 2014?
Nós, historiadores e sociólogos, temos muita dificuldade para entender o passado, mais ainda o presente. Agora, prever o futuro... Francamente não acredito. As revoluções sempre acontecem de maneira imprevista, lá onde não se espera. Na Venezuela, ninguém imaginava que o movimento seria iniciativa de militares, de um general Chávez. Ninguém previa a Primavera Árabe, uma fantástica onda de revoltas que derrubou ditaduras enferrujadas e agora enfrenta suas contradições. Ninguém esperava pelas jornadas de junho. O que podemos fazer é esperar e apostar. Vivemos nessa aposta do que esperamos que aconteça. Ainda bem. Se o futuro fosse previsível, o mundo seria muito chato.
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