03 Abril 2023
"Quanto maior o poder da agiotagem com pessoa jurídica, mais 'risco sistêmico' o mundo das finanças terá. E quem está financeirizado? Praticamente todas as empresas Transnacionais (TNCs) com relações de poder e privilégio dentro de governos ocidentais", escreve Bruno Lima Rocha, cientista político, jornalista profissional e professor de relações internacionais, em artigo publicado por Estratégia & Análise, 03-04-2023.
Existe um problema de fundo na análise política contemporânea. O século XXI demonstra que o capitalismo gerador de algum grau de Bem Estar precisa necessariamente ser controlado. Não por acaso, as economias líderes da nova integração Eurasiática (China, Rússia e Irã) tem espaços para a iniciativa privada - até de oligopólios em áreas sensíveis -, mas respondem em última instância ao Estado e, em específico, ao Poder Executivo.
Ou seja, no final das contas, qualquer fração de classe dominante estará subalterna às elites dirigentes. E o acesso às carreiras de Estado dão uma transcendência superior ao jogo viciado das portas giratórias do ocidente. Nenhuma destas formas de vida em sociedade é "socialista" e podemos caracterizar o regime e parte do modo de produção do antigo modelo soviético ainda existente na Coreia do Norte e em Cuba. Estamos falando de economias capitalistas sob controle final do Poder Executivo, algo que se verifica, em maior ou menor graus, na China, Rússia e Irã, e em menor grau de desenvolvimento, em outras economias asiáticas. Mesmo “economias de mercado”, como a do Hindustão (Índia), tem severo planejamento de setores estratégicos, como na produção de arroz. Assim, no segundo país mais populoso do mundo, o “agro não chega a ser pop”. Ironias a parte, o conceito é simples: a produção de alimentos é tema de segurança nacional e não necessariamente do saldo da balança de exportações através de uma cadeia de valor subsidiada.
Voltando ao tema da “democracia X autoritarismo”, a classificação de sociedades autoritárias ou com poder de veto e censura é absolutamente correta, sem tergiversar. Mas, o cinismo das democracias sob controle da agiotagem não traz nenhuma virtude superior, muito pelo contrário. É falsa a polêmica que apenas o capitalismo traz a liberdade individual, assim como é absolutamente correta a caracterização que este mesmo capitalismo só é controlado ou pelo Poder do Estado, ou por um nível muito intenso de luta de classes, gerando quase a incapacidade parcial de governo, tal é o caso da França neste momento de imposição de perda de direitos.
Vejamos uma série de reflexões lógicas e evidentes. O custo do giro da dívida pública brasileira é de 6% do PIB. O BNDES no modelo pós Lava Jato empresta 1% do PIB. A meta do governo eleito em outubro de 2022 é dobrar de tamanho o banco de fomento, chegar a 2% do PIB e com isso retomar a política industrial. É isso o que a Faria Lima e os agiotas estrangeiros não querem e forçam seus paus mandados no Copom para ampliar a chantagem contra a economia brasileira.
As portas giratórias são escancaradas – tão explícitas como a analogia de juros e a pornografia feita pelo presidente da FIESP. Uma vez que deixem seus cargos de confiança no Banco Central, a "quarentena" dos conselheiros do COPOM e outros que ocupam funções semelhantes em setores sensíveis da economia é de 180 dias. Após operar por dentro do aparelho de Estado, favorecendo majoritariamente ao grande capital especulativo, ficam 6 meses em casa recebendo o último salário e dando palestrinha "pro bono".
Depois desse período, serão contratados a peso de ouro para as empresas que foram beneficiadas por essas mesmas pessoas, que tomam as principaid decisões que empobrecem a sociedade e beneficiam quem já tem muito. Outra possibilidade é serem recrutados por "clientes externos", como os dealers da dívida pública controlados por capitais transnacionais (na última lista tinha Goldman Sachs, Merril Lynch e BNP Paribas francês) ou vão entrar no Grupo Banco Mundial e defender o imperialismo com mais eficácia do que um porta-aviões.
Convido a quem lê estas tortas linhas a verificar a ficha corrida passada destas instituições financeiras e veja qual o volume de “escândalos” com as quais estão diretamente envolvidas. Não é teoria conspiratória, é fato mesmo.
A quebra do Silicon Valley Bank está diretamente vinculada aos investimentos de risco das gigantes vizinhas de alta tecnologia. Certo? Não. Vejamos. As Big Techs do Vale do "Suplicio" faturaram USD 1 trilhão e meio de dólares en 2022. E ainda assim fogem da tributação, da responsabilidade judicial dos discursos de ódio e de parar de nos espionar. Não seria possível fazer um termo de compromisso nos EUA, como o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), ato do Ministério Público (brasileiro) com força de sentença judicial obrigando essas empresas a segurarem o rombo que as próprias ajudaram a criar?
Outro debate de fundo se faz necessário. Existe “gestão temerária” e “contabilidade criativa” quando na verdade diretores gerentes estão “operando a descoberto” e elevam o risco real o tempo todo? Existe aleatoriedade quando há informação perfeita diante dos tomadores finais de decisão? A “nova quebra” em cadeia provavelmente se dará na França. BNP, Societé Generale, Exane, Natixis e o sempre presente nestes momentos HSBC foram alvos de investigação da Procuradoria Nacional de Finanças (PNF) e o processo avança. As acusações são de fraude e evasão fiscal avançada.
Enquanto isso, o governo de Macron toma medida executiva, determina a “reforma da Previdência” e a ampliação de tempo de contribuição e de serviço. Alega que o “sistema vai quebrar” caso isso não ocorra. Curiosa coincidência. A banca não pode quebrar – grande demais para falir – e o Estado entra como pagador de última instância. Já o direito da maioria trabalhadora, fica sempre em segundo plano. Isso é “democrático”?
Como estas instituições bancárias podem simplesmente "quebrar"? Não podem a não ser que estejam operando muito a "descoberto" e abundante "gestão temerária". Parece repetitivo, mas deu para entender? Ainda não. E porque? Porque são termos auto referenciados do "mercado financeiro", de milhares de profissionais vendendo muitas vezes apenas um instrumento que não passa de uma aposta matematizada com algum lastro (quando têm, ou sistemas colaterais cuja ponta da garantia está oculta).
Em 2008, os derivativos eram negociados em cima de casas que tinham hipotecas vencidas, ou imóveis com mais de cinco hipotecas em cima e cujo comprador não tinha dinheiro, trabalho ou bens para fiar ou garantir o seguro da compra. Esse jogo era chamado de negociar Ativos tóxicos ou Ninjas (No Income, No Jobs, No Assets).
Isso é uma exceção? Não, é a regra. Fazer pirâmide (Esquema Ponzi) para quem não tem renda é a parte mais básica da jogada, mas operar sem garantias é regra sim.
Quanto maior o poder da agiotagem com pessoa jurídica, mais "risco sistêmico" o mundo das finanças terá. E quem está financeirizado? Praticamente todas as empresas Transnacionais (TNCs) com relações de poder e privilégio dentro de governos ocidentais.
E as TNCs não ocidentais ou de países com governos autoritários? Em geral não têm tanta autonomia e mesmo quando cometem crimes, como a quebradeira de Chipre em 2013 (lavanderia de capitais de oligarcas russos) ou a mega construtora chinesa Evergrande, as ameaças reais de punição não compensam mais riscos. É justo o oposto do que ocorre nas economias capitalistas anglossaxãs, europeias ou da Ásia aliada da OTAN, como Coreia do Sul e Japão.
E quem sabe disso? Todo mundo, ou seja, todas e todos que têm poder real de decisão e que em geral estão envolvidos nestas mesmas fraudes. Uma boa parte de quem leciona ciências económicas também sabe. Mas aí a hegemonia do pensamento único neoliberal é contestada dentro dos meios acadêmicos e mais sérios. Na opinião publicada e na pregação de “empreendedorismo” o senso comum da baboseira neoclásica opera como base doutrinária (e fantasia a-histórica) da agiotagem como fração de classe dominante acima de poderes de Estado.
Não há democracia social possível com o poder de decisão sequestrado pelos parasitas financeiros.
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A democracia dos agiotas. Artigo de Bruno Lima Rocha - Instituto Humanitas Unisinos - IHU