05 Abril 2023
"A única solução para Lula e para o PT é se manterem mais puros que o cordeiro de Deus, no meio dos suspeitos do baixíssimo clero com quem eles vão ter que lidar no governo. E, repetindo a performance de Lula depois das acusações do mensalão, fazer um governo superbem avaliado que permita esquecer as más companhias. A armadilha é exatamente o fato de que fazer uma super administração vai ser extremamente difícil dado o conjunto de teias que enredam o governo", escreve Jean Marc von der Weid, ex-presidente da UNE (1969-71) e fundador da organização não governamental Agricultura Familiar e Agroecologia (ASTA).
Esse artigo é a continuação dos textos "Os perigos que ameaçam o governo do presidente Lula", "A Armadilha (2)" e "A Armadilha (3)", "A Armadilha (5)", "A Armadilha (6)", "A Armadilha (7)", e "A Armadilha (8)" também da autoria de Jean Marc.
Não é segredo para ninguém o peso deste tema nos processos políticos desde a redemocratização. No tempo da ditadura, a corrupção comia solta, mas o controle dos espaços de manifestação política permitiu que os militares saíssem do poder sem que isto ficasse claro para a opinião pública. No governo Sarney, o recém criado PT fez campanha acirrada pela ética na política e esta postura ganhou uma dimensão maior com os escândalos do governo Collor e que levaram à sua cassação. Com o protagonismo assumido pelos procuradores públicos, empoderados pela Constituição de 1988 e a contínua ação do PT, o governo FHC foi desgastado continuamente, sobretudo pela operação de compra de votos no congresso pela aprovação da PEC da reeleição. Não resta dúvida que esta identidade ética do PT favoreceu Lula na campanha que o levou à presidência da República em 2002.
Mas a eleição de Lula para a presidência se deu com uma eleição concomitante de um congresso com maioria de direita. Isto me recorda uma discussão que tive com meu velho amigo e companheiro de exílio no Chile e na França, Marco Aurélio Garcia, quando ele coordenava, em 1998, a comissão de construção do programa do candidato Lula à presidência e eu representava o PSB na subcomissão de política agrícola e agrária. Eu e Plinio Sampaio, representando o PT, escrevemos a proposta que a subcomissão (que incluía ainda o PDT, o PCdoB e o PCB) aprovou. Marco Aurélio achou as propostas muito radicais. “Com essas posições nunca chegaremos a ganhar as eleições”, ponderou o meu amigo. “Sem essas posições não vale a pena ganhar as eleições”, respondi. O PT (e as várias frentes que apoiaram o Lula desde 1989) foi amaciando as suas posições programáticas para ampliar a sua margem de votos. Deu certo para chegar à presidência, mas o efeito nas eleições proporcionais foi não obter uma maioria estável no congresso.
Como governar estando sem maioria parlamentar, com um congresso mais empoderado pela constituinte? Falou-se em presidencialismo de coalisão, mas o fato é que Lula precisou, tanto quanto os seus antecessores, de aliciar deputados e senadores. Ocorre que o sistema partidário brasileiro não favorece a formação de organismos políticos de caráter ideológico e programático. PT e, no começo de sua existência, o PSDB, eram as raras exceções. O resto era (e é) um aglomerado de interesses localizados ou temáticos, sem consistência em termos de projeto para o país. Criou-se a designação “baixo clero” para definir um número crescente de parlamentares cujo único interesse era manter o seu lugar na Câmara e no Senado.
Por muito tempo, o modo de ganhar os votos destes personagens foi a liberação de verbas para projetos individuais dos parlamentares. Já o lado mais orgânicos dos partidos era atraído por cargos na Esplanada ou em empresas públicas e repartições espalhadas pelo país. Controlar ministérios, sobretudo os dotados com orçamentos vultuosos, permitia fazer política, orientando os investimentos públicos para os redutos eleitorais do partido. Por outro lado, a manipulação de concorrências e o pagamento de propinas por parte de empresas contratadas pelos governos foi uma forma quase que permanente quer para financiar os partidos, quer para encher os bolsos dos políticos. Foi o reino da chamada “caixa dois”, recursos doados para partidos e políticos que não eram oficializados na justiça eleitoral.
Estes mecanismos que têm que ser chamados pelo seu nome, corrupção, levam a uma distorção da capacidade dos diferentes partidos concorrerem nas eleições, já que uns acabam muito mais bem aquinhoados do que os outros. O PT e outros partidos de esquerda sofreram por muitos anos essa concorrência desleal e a denunciaram sem descanso. Mas uma vez no poder, o PT e Lula tiveram uma difícil opção: ou bem jogavam o jogo como os partidos que o antecederam no poder o fizeram ou ficavam reféns de um congresso hostil.
Na filosofia política da esquerda estalinista “os fins justificam os meios”, mas esta consigna não é exclusiva desta esquerda. Praticamente todo político, de qualquer ideologia, que passou pelo poder, teve que decidir, em algum momento, manter os princípios morais e éticos ou esquecê-los em nome de objetivos maiores. Para dar um exemplo histórico, o impoluto presidente Lincoln só conseguiu a maioria no congresso americano para declarar o fim da escravidão através da compra de votos, chantagens e pressões. Isto não legitima nem a corrupção nem o abandono da ética em função de objetivos nobres. Mas explica muita coisa.
Lula confessou em uma entrevista em plena fervura das denúncias do “mensalão”, que o PT fez o que sempre foi feito no Brasil, ou seja, usou recursos do caixa dois. Um crime menor, diferente da apropriação privada de dinheiro público ou de propina empresarial. Apesar do caixa dois ter, obrigatoriamente, uma contrapartida de vantagens irregulares para os doadores dos recursos, este pecadilho era tão comum que podia ser admitido de público sem consequências maiores do que um desgaste político.
Lula deu a volta no desgaste e se reelegeu com folga no segundo turno em 2006, saindo do governo em 2010 com 80% de aprovação. Isto pode significar que os fins justificaram os meios, aos olhos do eleitorado.
No governo de Dilma Rousseff, que criou a expressão “malfeitos” como alcunha para casos de corrupção, a compra do apoio no congresso foi no atacado, via distribuição de cargos em ministérios e empresas públicas para aliados do centro e da direita. Ela teve como adversário um personagem sinistro que angariou um forte apoio do baixo clero, distribuindo benesses aos deputados, Eduardo Cunha. Este presidente da Câmara não teve qualquer vacilação em chantagear a presidente da República e o seu partido, sempre com a ameaça de colocar em votação o pedido de impeachment. E acabou fazendo isso, no dia em que o PT se recusou a votar por Cunha na comissão de ética da Câmara.
A escala da compra e venda de votos no governo Dilma foi maior e nem por isso ela conseguiu apoio estável. Com a perda de apoio popular no seu segundo governo, não houve caixa dois que desse conta de barrar o movimento pelo golpe. Ao mesmo tempo, a ação dos juízes e procuradores da operação Lava-Jato provocou, com o apoio militante da grande mídia, um enorme desgaste no governo. Os personagens presos e confessos eram todos dos partidos aliados, embora houvessem petistas acusados nas delações, inclusive o próprio Lula. Todos sabemos que estes processos foram amplamente manipulados com fins políticos e acabaram anulados e extintos por decurso de prazo. Mas só os muito ingênuos aceitam a narrativa de que foi tudo uma invenção de Moro e Dalagnol, da grande mídia e da CIA, segundo alguns, visando não só derrubar o governo do PT, mas acabar com a Petrobras, entregar o pré-sal, destruir
as empreiteiras nacionais, entre outros objetivos. Houve muita invenção criminosa, sem dúvida, mas os fatos básicos eram bem reais, tanto que bilhões foram devolvidos por corruptos e outros tantos pagos como multas por corruptores.
A marca deixada pela operação e pela intensa exploração midiática da mesma ficou enraizada na consciência dos eleitores e mais ainda pela decepção dos que haviam apoiado o PT e Lula pelo discurso da ética na política.
Bolsonaro, um corrupto do baixo clero, com uma família seguindo e aprimorando os procedimentos de enriquecimento ilegal do patriarca, tornou ridículos os montantes de dinheiro circulado na operação Lava-jato. O curioso é que, nem por isso, os bolsominions que urravam contra a corrupção dos governos petistas deixaram de idolatrar o “mito”. O que é mais grave é o fato de que Bolsonaro entregou as chaves dos cofres públicos para personagens como Artur Lira, o Eduardo Cunha da vez. Parcelas cada vez maiores do orçamento passaram para o controle de emendas individuais ou coletivas na Câmara e no Senado. Algumas são impositivas e cada parlamentar é dono de um quinhão polpudo para aplicar em seus redutos eleitorais. É um absurdo total do ponto de vista da lógica orçamentária de um governo de todo o país e não do somatório de municípios onde os parlamentares tem votos. É também um absurdo do ponto de vista da equidade nas campanhas eleitorais, já que os eleitos passam a ter uma vantagem enorme em relação aos outros candidatos, como aliás se verificou nestas últimas eleições.
Eliminadas pelo STF, as emendas do relator foram substituídas pelas emendas de comissão e o poder de manipulação de Lira ficou intocado. O governo Lula está tendo que conviver com um superpoder congressual, concentrado nas mãos sequiosas do presidente da Câmara. O jogo agora não é mais o caixa dois, embora ele possa reaparecer a qualquer momento. A compra de votos está oficializada e legalizada, só que ela tem um operador superpoderoso.
Lula foi eleito por uma coalisão formal de partidos de esquerda e centro esquerda, apoiado por uma ampla coalisão informal constituída pela grande mídia, organizações da sociedade civil, políticos de todas as ideologias, desde o presidente do Partido Novo, até os velhos próceres do PSDB, como José Serra e Fernando Henrique Cardoso, importantes empresários, juristas, intelectuais e artistas, padres, bispos e pastores, pais de santo, influenciadores digitais, outros. Não teria ganho sem estes apoios, inclusive e de enorme importância relativa, o de Simone Tebet. Para governar, Lula sabe que tem que ceder espaços no governo para partidos da direita e centro e está fazendo isso. O problema é que a pulverização dos partidos não garante que o apoio da direção do MDB ou do União Brasil se reflita em votos seguros no congresso. A compra hoje em dia é no varejo. E haja orçamento, secreto ou não, para satisfazer este cada vez mais amplo baixo clero.
Como já escrevi em outro artigo, chamar os fisiológicos para o governo é inevitável, mas tem um custo. Qualquer denúncia de corrupção, e elas já estão pipocando, vai contaminar o governo como um todo. Se Lula afasta um ministro suspeito de “malfeitos”, ele leva uma chave de galão do partido deste ministro, com ameaças de oposição no Congresso. Já aconteceu nestes menos de 100 dias e não deixará de acontecer mais vezes, pois é da natureza destes aliados.
Não há o que fazer, nestas circunstâncias, assim como não há o que fazer em relação às acusações levantadas na operação Lava-jato. A narrativa negacionista do PT e do Lula não é crível, mas a alternativa de fazer um mea culpa ou autocrítica pública teria sido um suicídio político e judicial. Paradoxalmente, os mesmos abusos de poder que permitiram acusar e condenar tantos políticos e empresários também derrubaram os processos e abriram caminho para a volta de Lula. A única solução para Lula e para o PT é se manterem mais puros que o cordeiro de Deus, no meio dos suspeitos do baixíssimo clero com quem eles vão ter que lidar no governo. E, repetindo a performance de Lula depois das acusações do mensalão, fazer um governo superbem avaliado que permita esquecer as más companhias.
A armadilha é exatamente o fato de que fazer uma super administração vai ser extremamente difícil dado o conjunto de teias que enredam o governo.
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A armadilha (9). Artigo de Jean Marc von der Weid - Instituto Humanitas Unisinos - IHU