23 Março 2023
"Pensado do ponto de vista meramente eleitoral, este precaríssimo programa Bolsa Família pode até ser um sucesso político para o governo, mas para o povo e o país ele é um desastre. O governo vai estar colaborando para afundar a saúde pública com efeitos para o curto, médio e longo prazo. A meu ver, trata-se de um equívoco gigantesco, só explicável pela dificuldade de enfrentar o problema com soluções reais e não ilusórias. Seria preciso muito mais recursos para criar uma renda mínima que cobrisse o conjunto das necessidades, pelo menos dos miseráveis, financiasse uma alimentação correta e garantisse um programa de educação alimentar intensivo e extensivo", escreve Jean Marc von der Weid, ex-presidente da UNE (1969-71) e fundador da organização não governamental Agricultura Familiar e Agroecologia (ASTA).
Esse artigo é a continuação dos textos "Os perigos que ameaçam o governo do presidente Lula", "A Armadilha (2)" e "A Armadilha (3)", "A Armadilha (5)", também da autoria de Jean Marc.
Não vou repetir os muitos dados e argumentos utilizados nos artigos anteriores que escrevi sobre este tema. O que interessa agora é analisar o que esperar, politicamente, do programa Bolsa Família turbinado, aprovado na PEC dita kamikaze no ano passado e que está sendo moldado pelo governo Lula para deslanchar em abril.
Para começar, é importante destacar que todo programa deste tipo não é, ou não deveria ser, mais do que um paliativo. Um paliativo importantíssimo por se tratar do direito humano à alimentação, mas que não pode ser visto como uma solução permanente para a sociedade. Nos Estados Unidos, entretanto, este tipo de programa, chamado de Food Stamps, existe desde a crise dos anos 30 e, desde então, socorre até 40 milhões de pessoas em estado de pobreza extrema. A opção de manter o programa indefinidamente tem várias causas: a persistente exclusão de uma parte significativa da população do acesso ao consumo básico para sobreviver; o interesse político no voto desta camada; o interesse dos produtores de alimentos em garantir um mercado de compras institucionais. Diferentemente dos nossos programas desde o primeiro governo de Lula, o FS não distribui dinheiro, mas “selos” (stamps) que dão acesso aos mercados de alimentos ou restaurantes autorizados.
A opção por distribuir dinheiro e não cestas alimentares ou vales para compra de alimentos tem sentido do ponto de vista operacional, mas este formato tem seus problemas. O mais importante é que ele não garante que os recursos serão usados para fins alimentares. Não estou aqui entrando no discurso direitista que afirma que os pobres gastam os recursos dos auxílios em bebida e drogas. Este tipo de desvio é, segundo todas as pesquisas, marginal. Mas as pesquisas apontam também para o fato de que, dependendo do momento e do público, os mais pobres gastam uma parte mais ou menos significativa dos recursos em outras necessidades.
Devia ser óbvio para os formuladores desta política. Na verdade ela trata a pobreza como algo que se expressa apenas na falta de recursos para comer e isto está muito longe da verdade. Pobres e miseráveis têm gastos incompressíveis, tal como toda gente em melhor situação. Aluguel, remédios e tratamentos, energia elétrica, água, gás de cozinha, transportes, roupas, artigos de higiene, educação, entre outros, não deixam de existir para este público. Na verdade, o que estamos fazendo é entregar recursos previstos apenas para a alimentação quando a demanda é para uma renda mínima que cubra o conjunto das despesas. O inevitável é que o público busque soluções para o conjunto de suas demandas, usando a ajuda alimentar como único ingresso disponível, nos casos mais extremos. Isto leva a população carente a usar o mínimo possível na alimentação para poder assumir os outros gastos.
Desde logo, o cálculo do volume necessário de recursos para garantir uma alimentação correta não tem qualquer relação com os valores atribuídos no Bolsa Família, como não teve no Auxílio Emergencial durante a pandemia e no Auxílio Brasil do governo do energúmeno. Alguém sabe como foi feito o cálculo dos custos da alimentação para chegar ao valor de 600,00 reais mensais por família? Trabalhando com a hipótese de uma família de tamanho médio de 4 pessoas, dois adultos e duas crianças e tratando estas duas últimas como uma só unidade de consumo adulto, a “bolsa” oferece 20,00 reais/família por dia, ou pouco menos de 7,00 reais por consumidor familiar por dia, se todo o recurso for usado na alimentação. O que pode comprar este recurso, sabendo-se que uma quentinha das mais baratas no Rio de Janeiro custa 15,00 reais? Este valor pode ser muito menor, segundo o tamanho da família, já que as famílias mais pobres tendem a ser mais numerosas. E, como vimos, nem todo este recurso vai para a alimentação.
Argumenta-se que este é um valor complementar à renda dos assistidos, mas mesmo os mais bem aquinhoados entre eles não ganham mais do que meio salário-mínimo por mês. Por outro lado, os valores distribuídos não levam em conta a renda per capita familiar para entregar um complemento. Todas as famílias recebem 600,00 reais por mês, tenham elas meio salário-mínimo de renda per capita ou que não tenham qualquer outra renda. A única diferenciação está no recurso adicional, introduzido pela equipe de transição de Lula, de 150,00 reais por criança com menos de 6 anos. Isto melhora a situação de todas as famílias com crianças, mas, mais uma vez, os mais e os menos pobres recebem o mesmo complemento.
Qual a consequência dos valores insuficientes dos aportes para o pagamento de uma alimentação nutricionalmente necessária, no mínimo o dobro do valor pago na bolsa? Qual a consequência do inevitável uso de parte deste recuso para outros fins? As pesquisas apontam para escolhas dos pobres e dos miseráveis no sentido de consumir os alimentos os mais baratos possíveis, os com menos custos na elaboração, e os mais fáceis de conservar. Caímos em uma dieta extremamente insuficiente, do ponto de vista da ingestão de proteínas, fibras, sais minerais e vitaminas. E extremamente nociva, do ponto de vista do excesso de sal, de açúcar, de produtos químicos e de carboidratos. Em outras palavras, uma dieta baseada em produtos super processados, de baixa qualidade nutricional, mas mais baratos. É a dieta do miojo com salsicha e refrigerante.
Esta dieta pode tirar esta população de pobres e miseráveis do mapa da fome, por oferecer uma ingestão suficiente e até exagerada de calorias. É o programa do “encher barrigas”. Mas não é um programa de segurança alimentar e nutricional e a consequência na saúde pública é brutal, com o aumento exponencial de casos de obesidade, diabetes, doenças cardíacas, câncer e doenças cardiovasculares.
Do ponto de vista político, talvez estes vícios de origem do programa não tenham impactos negativos. Afinal, comer porcarias industrializadas é visto pelos mais pobres como um avanço e não existe uma consciência alimentar e nutricional no Brasil, eu diria que nem na classe A. Os mais ricos se empanturram de BigMacs e milkshakes, pagando 10 vezes mais do que os mais pobres, mas com a mesma má qualidade nutricional ou próxima.
Pensado do ponto de vista meramente eleitoral, este precaríssimo programa Bolsa Família pode até ser um sucesso político para o governo, mas para o povo e o país ele é um desastre. O governo vai estar colaborando para afundar a saúde pública com efeitos para o curto, médio e longo prazo. A meu ver, trata-se de um equívoco gigantesco, só explicável pela dificuldade de enfrentar o problema com soluções reais e não ilusórias. Seria preciso muito mais recursos para criar uma renda mínima que cobrisse o conjunto das necessidades, pelo menos dos miseráveis, financiasse uma alimentação correta e garantisse um programa de educação alimentar intensivo e extensivo.
Como apontei no começo deste artigo, um programa deste tipo tem que ser combinado com soluções mais permanentes do ponto de vista de emprego e nível de renda, de tal forma que ele fosse se tornando marginal, dirigido apenas para situações excepcionais. Mas estas soluções estruturais exigem mudanças radicais no direcionamento do desenvolvimento econômico e na distribuição de renda e isto não está no horizonte deste frágil e assoberbado governo.
A crise alimentar pode ser a teia invisível na armadilha em que se encontra o governo Lula e, como já disse, pode até não parecer um problema. Mas estas amarras são das mais perigosas por terem efeitos permanentes e comprometem o futuro de todos nós.
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A armadilha (6). Artigo de Jean Marc von der Weid - Instituto Humanitas Unisinos - IHU