04 Abril 2023
"Imaginem americanos, noruegueses, alemães e ingleses (que estão financiando ou se declaram dispostos a financiar as nossas políticas ambientais) cobrando o controle das agressões do agronegócio brasileiro às nossas matas tropicais e o governo brasileiro defendendo as nossas exportações oriundas dos biomas atingidos. De mocinho a bandido o passo é curto neste mundo cruel", escreve Jean Marc von der Weid, ex-presidente da UNE (1969-71) e fundador da organização não governamental Agricultura Familiar e Agroecologia (ASTA).
Esse artigo é a continuação dos textos "Os perigos que ameaçam o governo do presidente Lula", "A Armadilha (2)" e "A Armadilha (3)", "A Armadilha (4), "A Armadilha (5)", "A Armadilha (6)" e "A Armadilha (7), todos da autoria de Jean Marc.
Muitos podem estranhar que o tema das relações exteriores esteja classificado como parte da armadilha que enreda o governo do presidente Lula. Afinal de contas, Lula não nos tirou da marginalidade internacional pela mera posse na presidência? E mais ainda, pelas posições avançadas assumidas em Sharm-el-Sheik, no Egito, antes mesmo da posse? Bolsonaro era de tal forma peçonhento, que os dirigentes políticos de todo o mundo, com a exceção óbvia de meia dúzia de fascistóides da mesma laia, apoiou de imediato o eleito e repudiou a tentativa de golpe. "O Brasil voltou" foi um grito de alívio da diplomacia internacional e da nossa. Então porque este tema está nesta série de artigos?
A questão é mais interna do que externa e se refere ao contencioso sobre democracia e ditadura que tem enorme repercussão na mídia convencional e mais ainda nas redes virtuais. Ao não apoiar uma declaração quase unanime entre os dirigentes dos países da América Latina, condenando o regime de Ortega por violações de direitos humanos e dos princípios que regem as democracias, o governo Lula abriu um flanco desnecessário. Em outras palavras, recusou-se a assinar um libelo contra uma ditadura. Lula já tinha dado mais do que uma escorregada, foi mesmo uma verdadeira sapateada no tomate, ao ser entrevistado por duas jornalistas do El País, ao final de uma viagem triunfante pela Europa. Frente a uma pergunta sobre as eleições na Nicarágua por interlocutoras amplamente simpáticas ao nosso líder, Lula respondeu irritado com outra pergunta: "porque ninguém se espanta com o fato de que Angela Merkel está no poder há mais de 15 anos, mais tempo do que Ortega na Nicarágua?” O espanto das duas foi tal, que elas quase gaguejaram a resposta óbvia: "não pode haver comparação. Angela Merkel foi escolhida primeira-ministra pelo Parlamento alemão depois de várias eleições, onde as coligações que articulou tiveram maioria. Ortega mandou prender sete candidatos que se apresentaram contra ele, além dos processos eleitorais na Nicarágua serem amplamente contestados dentro e fora do país”. Lula mudou de assunto e passou a reclamar do fato de que tinha sido alijado das eleições de 2018 em processos fraudulentos. Este episódio deu pano para mangas aqui no Brasil, e só não foi mais explorado porque a grande mídia não tinha interesse, naquele momento, em enfraquecer o candidato que podia derrotar o energúmeno que se sentava na cadeira de presidente.
A posição do PT sobre as "ditaduras amigas”, Cuba, Venezuela e Nicarágua é contestada internamente no partido, mas prevalece um sólido negacionismo, aliado a uma retórica diversionista que não discute os regimes e sua natureza, democrática ou ditatorial, empenhando-se em mostrar ganhos sociais e apontar para o imperialismo americano para explicar qualquer problema. Implicitamente, é o mesmo que dizer que fazer um governo para o povo (questionável nos casos de Ortega e Maduro) e se opor ao imperialismo justifiquem regimes ditatoriais. Aí o bicho pega e o PT, Lula e seu governo dão margem aos ataques das campanhas da direita, do centro e até de outras forças da esquerda, embora com enfoques diferentes. A direitalha usa esta posição anacrônica para dizer que, no fundo, o PT é um partido comunista e quer transformar o Brasil em Cuba ou Venezuela. Quem não lembra do refrão "vai prá Cuba”, entoado pelos bolsominions para qualquer defensor de Lula ou do PT? Quando se verifica, pela última pesquisa de opinião, que 44% dos entrevistados acreditam que exista uma ameaça comunista real no país, não se pode tratar o tema das !ditaduras amigas” sem o necessário rigor, deixando-o de lado como secundário.
A posição do PT e do Lula é tão mais anacrônica que eminentes esquerdistas da América latina e de todo o resto do mundo já declararam sua crítica a estes regimes, mesmo ressaltando a ignomínia do cerco econômico dos EUA, ou os ganhos sociais do governo cubano.
Há muito que me intriga este cacoete do PT e mais ainda do Lula, que não tem a mesma raiz mergulhada na lógica que formou uma parte da elite do partido, o estalinismo. O saudosismo dos tempos da União Soviética e do estalinismo dos partidos comunistas, me parece tão mais estranho porque, nos tempos em que estes que hoje defendem com unhas e dentes regimes ditatoriais estavam na militância contra a nossa ditadura e não havia simpatia pelo regime soviético. Sim, havia os que defendiam a ditadura chinesa ou albanesa, mas eram menos expressivos. Naqueles idos de 1968, enquanto estávamos metidos em lutas libertárias, houve um estranho hiato político quando da invasão da Tchecoslováquia pelas tropas do Pacto de Varsóvia, repetindo os eventos da Hungria de 1956. As dissidências do partidão e o próprio partidão (muito diminuído no movimento estudantil) defenderam a invasão ou a criticaram com várias e encabuladas reservas. A Ação Popular e o PCdoB atacaram a invasão, apontando a União Soviética como uma expressão do capitalismo de estado e uma traição ao movimento socialista. Mas dentro da AP havia uma contradição entre os que discutiam uma revolução socialista e democrática e os que tratavam a defesa da democracia como uma tática e a "ditadura do proletariado” como um dogma, a ser aplicado uma vez no poder.
Esta discussão evoluiu muito e foi sendo aprofundada ao longa das nossas vidas de militantes, sendo que a grande maioria passou a ser crítica aos regimes ditatoriais, de direita e de esquerda.
Este debate sobre as ditaduras amigas repercute em outra frente, a da guerra da Ucrânia. Ou a guerra dos Estados Unidos com a Rússia via Ucrânia. Não por acaso, a grande maioria dos que defendem os mencionados regimes, também é defensora de Putin e da invasão. Neste caso, as posições são mais complicadas devido ao apoio de Bolsonaro a Putin. Mas prevalece a visão geopolítica simplificada: !o inimigo do meu inimigo é meu amigo”. Alguns vão mais longe e defendem Putin como um grande estadista. Lula, neste caso, está tentando uma posição centrista, nem lá nem cá, pela paz. Com a pretensão de se colocar como negociador, junto com outros países !não alinhados”. A meu ver, está metendo a mão em cumbuca onde não devia. O imbróglio ucraniano desafia mesmo diplomacias de maior peso. E, sem muita habilidade, adotase uma postura em que, por um lado, o Brasil assina uma resolução das Nações Unidas condenando a invasão pela Rússia, ao mesmo tempo em que reivindica a inclusão nesta declaração de um parágrafo conclamando a paz. Os russos não deixaram de torcer o nariz para este tipo de "neutralidade”, pois o ponto de partida da resolução é a defesa da retirada das tropas invasoras. Por outro lado, o Brasil recusou-se a mandar armas ou munições para a Ucrânia, irritando tanto Zelenski como seu tutor, Biden. Lula arrisca de ficar mal com os dois lados. E, internamente, nas redes virtuais de esquerda, a polêmica segue cada vez mais agressiva.
Para completar esta mui breve avaliação dos nossos riscos diplomáticos, não posso deixar de repetir que o ponto mais favorável a Lula no plano internacional, a posição sobre o desmatamento e a questão climática, pode se voltar contra ele e a nossa diplomacia, se não formos capazes de levar a efeito esta proposta. Imaginem americanos, noruegueses, alemães e ingleses (que estão financiando ou se declaram dispostos a financiar as nossas políticas ambientais) cobrando o controle das agressões do agronegócio brasileiro às nossas matas tropicais e o governo brasileiro defendendo as nossas exportações oriundas dos biomas atingidos. De mocinho a bandido o passo é curto neste mundo cruel.
Não se trata de uma frente política tão ameaçadora como as outras enunciadas até agora, mas seria muito importante uma posição coerente pela democracia, aqui ou em qualquer outro lugar, sob pena de dar margem às acusações de que nem o PT nem Lula são verdadeiros democratas. É claro que os acusadores tem telhado de vidro, quer por suas posturas atuais (bolsominions) quer pelas passadas (mídia convencional), mas uma parte importante da opinião pública não se perfila nestas duas categorias e espera uma posição mais clara, no mínimo alinhada com o inatacável José Mujica.
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A armadilha (8). Artigo de Jean Marc von der Weid - Instituto Humanitas Unisinos - IHU