27 Março 2023
"Não podemos nos limitar a ver, mas somos convidados, sobretudo, a 'sentir' na dimensão emocional e espiritual do encontro, que se traduz em indignação, empatia, compaixão e solidariedade. Assim, o 'sentir' já é um 'julgar' teológico e um consequente 'agir' político, que é imediatamente iluminado pela pessoa, pela Palavra, pelo projeto de Jesus, que nos acompanha no discernimento, no 'julgar'", escreve Flavio Lazzarin, padre italiano fidei donum que atua na Diocese de Coroatá, no Maranhão, e agente da Comissão Pastoral da Terra (CPT), em artigo publicado por Settimana News, 23-03-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
“A leitura do mundo precede a leitura da palavra.” (Paulo Freire)
Quando sou convidado a propor uma análise das conjunturas sociais, políticas, econômicas e eclesiais, utilizo o método tradicional "ver-julgar-agir". Esse método era a característica pastoral da Juventude Operária Católica (JOC) do padre Cardjin e - novidade radical nos processos de evangelização - poderia ter representado uma revolução no estilo da presença cristã na sociedade, quando foi retomada com autoridade pelo Papa João XXIII, na encíclica Mater et magistra (15.05.1961). [1]
Não foi assim, porque os setores católicos tradicionalistas se opuseram a esse método desde o início e, ainda mais recentemente, por ocasião da V Conferência Episcopal Latino-americana e Caribenha, em Aparecida/SP (2007), onde os bispos locais e a Cúria Romana tentaram, mais uma vez, mas sem sucesso, eliminar esse método na redação do documento final da Conferência.
Não se pode ignorar que o método é uma antecipação do espírito de renovação que o Concílio inaugura. Relendo a Gaudium et spes, um dos documentos mais importantes do Concílio Ecumênico Vaticano II, encontramos duas vezes, nos números 4 e 11, a preocupação pelos "sinais dos tempos". O Papa João XXIII é sem dúvida o protagonista da recuperação dessa figura neotestamentária (Mt 16, 1-4) fundamental para iluminar o discernimento e a práxis evangélica ao serviço da vida.
O Papa João já havia recordado a necessidade de discernir os sinais dos tempos em sua alocução de janeiro de 1959: “devemos acolher a recomendação de Jesus para saber distinguir os sinais dos tempos”. Por fim, repete-se na Constituição apostólica que convoca o concílio. É como se o concílio e o Papa João nos convidassem profeticamente a assumir a responsabilidade evangélica de fazer sempre uma análise das conjunturas históricas, para permitir que a Palavra possa se casar com a Vida.
As Igrejas europeias conseguiram valorizar apenas parcialmente a intuição de Cardjin e do Papa João. Como exemplos italianos, recordo a presença desse método no escotismo e na Ação Católica e, na década de 1970, nos documentos da Conferência Episcopal Italiana - CEI sobre a promoção humana. Mas nunca se tornou o método da pastoral paroquial e diocesana, onde continua a ser esquecido e removido. Ao contrário, foi na América Latina, com a II Conferência Episcopal Latino-americana e Caribenha, em Medellín, Colômbia (1968), que o método "ver-julgar-agir" se tornou patrimônio pastoral das Igrejas do Novo Mundo.
A sua importância resulta evidente quando o método não constitui simplesmente a trama da redação de documentos oficiais e programas pastorais, mas quando é a inspiração da prática pastoral concreta dos missionários. Em suma, o texto mais importante a ser lido é a concretude da vida dos pobres.
Nesses anos de acompanhamento pastoral de comunidades camponesas em conflito, às vezes sinto a necessidade de acrescentar alguns corretivos metodológicos ao velho método. Insistir simplesmente na atitude de "ver" pode, de fato, nos colocar na condição de simples e acomodados espectadores da luta, da esperança e do sofrimento dos pobres, reduzindo a complexidade existencial dos pequenos de Jesus a uma dimensão sociológica e política.
Portanto, não podemos nos limitar a ver, mas somos convidados, sobretudo, a “sentir” na dimensão emocional e espiritual do encontro, que se traduz em indignação, empatia, compaixão e solidariedade. Assim, o "sentir" já é um "julgar" teológico e um consequente "agir" político, que é imediatamente iluminado pela pessoa, pela Palavra, pelo projeto de Jesus, que nos acompanha no discernimento, no "julgar".
Outro acréscimo importante é a dimensão do querer “como antecâmara do agir”: o que se quer construir, quais são os objetivos, como as cruzes e as esperanças dos pobres possam sugerir, sem jamais nos substituir à sua iniciativa e ao seu protagonismo, ao discernimento das perspectivas e prioridades da luta e, portanto, às decisões de organização, mobilização e confronto.
Além disso, reconhecer nossos verdadeiros desejos - nossa vontade - nos revela o grau efetivo da nossa radicalidade ou da maneira como nos adaptamos acriticamente aos costumes e às convenções do mundo assim como ele é.
Outro aspecto muitas vezes negligenciado nas análises conjunturais é a atenção ao passado. Concentrar a análise apenas na atualidade significa ignorar a permanência de questões estruturais, não meramente conjunturais. Além disso, a conjuntura sempre traz consigo memórias, porque quem esquece o passado é cego para o presente. E assim estaremos ainda mais atentos ao passado e à ancestralidade, muitas vezes escondida, das comunidades que acompanhamos.
Outro vício que pode transformar a análise em um rito vazio e irrelevante é o que defino como "lista de compras": na Igreja brasileira, há tempo, de fato, ou abandonamos completamente a atenção à realidade ou nos acostumamos a análises em que aparece a apresentação minuciosa das situações econômicas, sociais, eclesiais e políticas, mas a ausência de qualquer tentativa de discernimento dos desafios e das oportunidades de intervenção e transformação.
Temos assim análises de uma incrível neutralidade cínica, reduzidas s informações e por isso incapazes de provocar indignação e compaixão, de mobilizar consciências e iluminar práticas pacíficas de insurreição contra o sistema capitalista e as instituições que se colocam ao seu serviço.
[1] A Mater et magistra resume assim o método: “Para levar a realizações concretas os princípios e as diretrizes sociais, passa-se ordinariamente por três fases: estudo da situação; apreciação da mesma à luz desses princípios e diretrizes; exame e determinação do que se pode e deve fazer para aplicar os princípios e as diretrizes à prática, segundo o modo e no grau que a situação permite ou reclama. São os três momentos que habitualmente se exprimem com as palavras seguintes: 'ver, julgar e agir'” (235).
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Ver, julgar, agir. Artigo de Flavio Lazzarin - Instituto Humanitas Unisinos - IHU