16 Março 2023
"A obsessão de Lemann por resultados, tão almejado pela "Cultura Garantia" por ele instituída em suas empresas e braços sociais, produziu uma dívida de mais de R$ 875 milhões a micros, pequenas e médias empresas, setores que mais empregam no país de acordo com a Agência Brasil (Tânia Rego/Agência Brasil). Esse episódio também evidencia a falácia da BNCC e do projeto do Novo Ensino Médio que secundarizam o acesso ao conhecimento e transformam os filhos e filhas da classe trabalhadora em subordinados aos interesses do capital", escreve Adriana Medeiros Farias, professora Associada da Universidade Estadual de Londrina (UEL), líder e Pesquisadora do Grupo de Pesquisa em Educação, Estado Ampliado e Hegemonias (GPEH), integrante do Grupo de Trabalho e Orientação (GTO) e integrante do Fórum Paranaense de Educação de Jovens e Adultos, em artigo publicado por Brasil de Fato, 15-03-2023.
O escândalo da fraude contábil que encobriu por um longo período os registros de dívidas de cerca de R$ 43 bilhões aos credores da varejista Americanas S.A. e o suposto beneficiamento de lucro contábil dos bilionários e principais acionistas Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Carlos Alberto Sicupira é fato importante para compreendermos a relação entre a gestão de Resultados ou "Cultura Garantia" e o projeto de empresariamento da educação pública, dirigido pela Fundação Lemann, no Brasil.
O conglomerado de empresas Lemann e sócios reúne um portfólio de holdings do capital financeiro bastante conhecido pelo ideário burguês liberal de administração onde os fins justificam os meios, desde que se cumpram metas e alcancem os Resultados. Assim ficou conhecida a Cultura Garantia, modelo de gestão copiado de um banco estadunidense, por Lemann, no Banco de sua propriedade, o Garantia.
No final dos anos 1990 e início dos anos 2000, miríades de fundações, institutos e organizações sociais - aqui compreendidos pela concepção gramsciana de Estado ampliado como Aparelhos Privados de Hegemonia Empresariais (APHE) - expandiram sua atuação no Brasil. Lemann e seus sócios também iniciaram suas atividades nos chamados braços sociais empresariais. O mais conhecido deles é a Fundação Lemann.
A Fundação Lemann é a principal dirigente das políticas educacionais que aderiram à forma empresarial como referência para o funcionamento da educação pública. Para citar algumas delas, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), o Novo Ensino Médio (NEM), a Base Nacional Curricular (BNC-Formação), além das experiências por eles denominadas de atração e seleção de pessoas (líderes) para atuarem na gestão pública.
Vamos nos deter primeiro ao conglomerado de empresas para então discorrer sobre o projeto privatista em curso no país, disseminado e dirigido pelo Conglomerado de APHEs Lemann e sócios.
Em primeiro lugar, é preciso explicar que estamos diante de um conglomerado de Holdings dos capitalistas Jorge Paulo Lemann e seus sócios, Marcel Telles e Beto Sicupira. Dentre as propriedades de Lemann - o homem mais rico do Brasil, com uma fortuna em torno de 15,8 bilhões de dólares, de acordo com dados da Forbes de 2023 - não está apenas as Lojas Americanas. Ele é proprietário de muitas empresas em diversos ramos da economia (cerveja, varejo, alimentos e educação), com capital aberto no mercado de ações.
Todas as suas empresas são conhecidas, principalmente, pela superexploração imposta aos trabalhadores e trabalhadoras, por meio de jornadas de trabalho extenuantes, em que o mais importante é o cumprimento de metas e resultados, onde os fins justificam os meios.
A superexploração é incorporada à subjetividade dos trabalhadores e trabalhadoras por meio de um processo de convencimento ou, como diria o intelectual orgânico marxista Antonio Gramsci, pelo exercício da hegemonia burguesa que, em linhas bem gerais, corresponde ao processo de generalização de ideias e valores particulares de uma classe dominante sobre a outra.
Nesse processo, o indivíduo deve se tornar o tipo de trabalhador desejado por Lemann, sintetizado na expressão "poor, smart, deep desire to get rich" (PSD), "pobre, esperto e com grande desejo de enriquecer", registrado no livro biográfico publicado por Cristiane Correia (2013, p.54), com o título "Sonho Grande: como Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Beto Sicupira revolucionaram o capitalismo brasileiro e conquistaram o mundo".
No livro e também nos relatórios das organizações sociais, encontramos as regras para alcançar o sucesso ou, como se prevê na Cultura Garantia, tornar-se, ao final, sócio/parceiro da empresa (partnership). É preciso ter "Cabeça de Dono", juntamente com, segundo o manual da meritocracia Lemann, esforço próprio e mérito individual.
As condições de trabalho, salariais, plano de cargos e carreira não importam, afinal, Lemann, o homem mais rico do país, figura no meio empresarial e educacional como exemplo de empresário bem sucedido, simples, defensor das causas da educação de qualidade. Ele diz que sonha com um Brasil mais desenvolvido e menos desigual; ao mesmo tempo, é responsável pela reprodução do modelo de gestão do Banco Goldman Sachs nas empresas brasileiras da "Cultura Garantia", ou "Cultura de Resultados", isto é, custo zero, demissão em massa e alta competitividade entre os empregados. Nas suas organizações sociais, a Gestão de Resultados é assim definida: "Cultura de resultados e eficiência, com sólidos princípios éticos, nas respectivas áreas de atuação" (Fundação Estudar, 2003, p.05).
Jorge Paulo Lemann tem residência na Suíça, é fundador e ex-proprietário da Corretora Garantia e do Banco de Investimentos Garantia. Também foi fundador e acionista da GP Investimentos; do Fundo Privaty Equitay 3G Capital Patners, que controla no ramo de bebidas a Anheuser-Busch InBev NV (ABInbev) e suas subsidiárias (Anheuser-Busch, Interbrew, AMBEV, Grupo Modelo, SABMiller); no ramo de alimentos, Kraft-Heinz (Kraft Foods, Quero, H. J.Heinz Company), Restaurante Brands International (Burguer King, Tim Hortons e Popeyes). No setor de varejo e comércio, a Americanas S.A, que tem o controle acionário da B2W digital, (Lojas Americanas, Americanas.com; Submarino, Shoptime, Sou Barato, entre outras); do Innova Capital (startups) e da Gera Venture Capital. Esta última, criada em 2010, com sede no Rio de Janeiro, é controladora da holding de escolas como Eleva Educação (Eleva Global, PENSI, ELITE, Colegium, Alfa, Anglo, Colégio Pitágoras, Maxi, Neo-DNA, entre outras redes, além das plataformas de ensino).
Neste segmento de fundos de investimento privado, cujo maior acionista é Jorge Paulo Lemann, a educação é o principal produto. O grupo Eleva cresceu e hoje divide o controle do mercado educacional ao lado do Cogna; juntos, esses Grupos foram responsáveis pela maior fusão de escolas da educação básica da história do país. Nos últimos anos, cresceu no Brasil a participação do capital internacional no setor da educação; o Conglomerado inglês Inspired Education comprou, em 2022, as escolas por eles denominadas de excelência: Eleva, Batutinhas, Gurilândia, Land School e Centro Educacional Leonardo da Vinci. Outras escolas estão sob o controle acionário de empresas estrangeiras.
Os sócios de Lemann também estão entre os homens mais ricos do Brasil e do mundo. Carlos Alberto da Veiga Sicupira está na lista da Forbes, com um patrimônio de 8,6 bilhões de dólares. Ele é graduado em Administração pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); foi sócio do Banco Garantia; foi Diretor Executivo das Lojas Americanas, sócio controlador da ABInbev e membro do seu Conselho de Administração. Foi co-fundador e é sócio da GP investimentos, bem como do Conselho de Administração do Fundo de Privaty Equitay 3G Capital Patners. Outro sócio do Lemann, Marcel Herrmann Telles, tem uma fortuna de 10,6 bilhões de dólares. Ele foi sócio do Banco Garantia; foi co-fundador e é sócio da GP investimentos e do Fundo de Privaty Equitay 3G Capital Patners; foi ex-presidente da Brahma e da American Beverage Company (AMBEV). Telles é economista formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e atualmente é membro do Conselho da ABInbev.
A estrutura ideológica empresarial (gestão gerencialista, gestão de resultados, cumprimento de metas, formação para o trabalho simples), denominada por Jorge Paulo Lemann e seus sócios de "Cultura Garantia", é disseminada junto aos "braços sociais das empresas". Ao lado do Conglomerado empresarial estão os Conglomerados de Aparelhos Privados de Hegemonia Empresariais, miríades de fundações, institutos e organizações sociais, dos "empresários da educação".
Eles afirmam que o investimento social privado é capaz de substituir o Estado no atendimento às demandas sociais. Defendem o Estado capitalista neoliberal subordinando o país às orientações internacionais do BID, do BM e da OCDE. Fazem referência à gestão privatista do Chile como experiência a ser reproduzida no Brasil, sobretudo pela defesa da privatização dos serviços essenciais. Nele o Estado deve ser cada vez mais 'mínimo' para as classes subalternas e 'máximo' para o "Mercado", a privatização dos serviços essenciais como educação e saúde.
Nas orientações aos acionistas do capital financeiro do Gera Ventura, encontramos nos documentos denominados Cartas a defesa de que a Educação (assim como outras demandas sociais) é um produto altamente lucrativo, principalmente, se o poder público for o principal cliente - alguns exemplos são os governos estaduais do Paraná, do Rio Grande do Sul, do Mato Grosso, de São Paulo e de Pernambuco, e dos governos municipais de Londrina (PR), São Paulo (SP), Rio de Janeiro (RJ), Santos (SP), São José do Rio Preto (SP), Manaus (AM) e Sobral (CE), só para citar alguns dos governos aliados e clientes mais fiéis - e se os seus produtos estiverem vinculados às contrarreformas (BNCC, Ensino Médio, BNC-Formação, Ensino Híbrido). Isto se coloca porque só as redes públicas de ensino, pela sua extensão, são capazes de experimentar seus produtos, colocá-los em escala e torná-los reproduzíveis e, portanto, lucrativos, do mesmo modo como ocorre a venda no varejo das Lojas Americanas.
Essa disseminação de produtos e serviços nas redes públicas brasileiras é feita por meio da atuação do Conglomerado de APHEs Lemann e sócios (FARIAS, 2021). O Conglomerado é composto pela Fundação Estudar (1991), Instituto Social para Motivar, Apoiar e Reconhecer Talentos (ISMART) (1999), Lemann Foundation (2001) e Instituto Lemann, criado no Brasil em 2011. Sob o manto da aparente benevolência capitalista de Lemann, Telles e Sicupira, estruturara-se uma rede (orgânica e capilarizada) de financiadores, parceiros técnicos, apoiadores e executores de programas, projetos e ações voltados às diversas áreas educacionais, dentre elas, gestão pública, currículo e formação continuada, além da oferta de uma infinidade de plataformas, produtos e serviços educacionais.
Fazem parte do Conglomerado diversas fundações empresariais e organizações sociais; destas podemos citar o Instituto Itaú, Itaú Educação e Trabalho, Boticário, Natura, Vetor Brasil, Humanize, República.org., Endeavor, Rede de Ação Política pela Sustentabilidade (RAPS), Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais (CEIPE/FGV), Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (CENPEC), Centro de Inovação para a Educação Brasileira (CIEB), Centro de Liderança Pública (CLP), Instituto Reúna, Conviva Educação, Instituto Península, dentre outros. Muitos deles estão reunidos no partido (no sentido gramsciano) empresarial da educação, o Movimento Todos pela Educação, e no Grupo de Institutos Fundações e Empresas (GIFE).
É neste ponto que encontramos o ponto de confluência entre o Conglomerado empresarial e os APHEs. Todos os programas e projetos dirigidos pela Fundação Lemann (principal dirigente do projeto empresarial burguês para a educação) espelham a organização empresarial baseada na "Cultura Garantia", exigindo certo tipo ideal de trabalhador que atenda às necessidades do capital em sua organização atual. Todos devem estar a serviço da conformação da sociabilidade capitalista do século XXI.
Repetidas vezes professores, gestores e estudantes ouvem e leem que a educação de qualidade - presente em todas as páginas virtuais das fundações e organizações financiadas pela Lemann, bem como nos documentos regulatórios da educação - deve se assemelhar ao "case de sucesso" Sobral (CE); ao Common Core estadunidense de Currículo e sua versão barata no Brasil que resultou na BNCC; ao projeto simplificado de desescolarização para a juventude, na versão do Novo Ensino Médio, e também no projeto tecnicista da BNC-Formação do Instituto Península; à gestão gerencialista e meritocrática disseminada pelo Vetor Brasil; e ao empreendedorismo de alto padrão da Endeavor Brasil e ou organizações menores.
A Cultura Garantia, o Sonho Grande dos capitalistas e as políticas educacionais dirigidas pela Fundação Lemann exigem uma análise aprofundada do que a aparência de um projeto inofensivo para a educação é o seu pior pesadelo.
Nas Lojas Americanas, a rotina segue sob o silêncio dos CEOs, como se nada tivesse acontecido. Nem mesmo se comenta que a transação contábil deve ter rendido ótimos resultados, mas somente para Lemann e sócios. Na educação, a fraude do "Sonho Grande Lemann" ainda está por ser desvelada e desmontada, porque os seus representantes empresariais permanecem nos postos intra-Estado restrito, nos aparelhos do Estado, no governo, no Conselho Nacional de Educação, no MEC, na Secretaria da Educação Básica e nos governos estaduais e municipais.
15 de Março - Dia de Luta pela Revogação do Novo Ensino Médio é também o dia para reafirmar que escola não é uma empresa, que o "Sonho Grande" de Jorge Paulo Lemann é o pesadelo dos trabalhadores das Lojas Americanas e dos trabalhadores e trabalhadoras da educação. A experiência contábil (digo, rombo na contabilidade da empresa de 21 bilhões) dos acionistas das Lojas Americanas, certamente, não irá para o livro "Grandes Empresas e Grandes Negócios", tampouco para o portfólio de "Boas Práticas".
Além disso, a obsessão de Lemann por resultados, tão almejado pela "Cultura Garantia" por ele instituída em suas empresas e braços sociais, produziu uma dívida de mais de R$ 875 milhões a micros, pequenas e médias empresas, setores que mais empregam no país de acordo com a Agência Brasil (Tânia Rego/Agência Brasil). Esse episódio também evidencia a falácia da BNCC e do projeto do Novo Ensino Médio que secundarizam o acesso ao conhecimento e transformam os filhos e filhas da classe trabalhadora em subordinados aos interesses do capital.
Podemos afirmar, com evidências, que o case de sucesso Sobral (CE) não é um produto desejável para a educação pública brasileira porque, entre outras razões, não é a materialização da concepção de educação com perspectivas emancipatórias. Trata-se de um modelo que nem de longe representa uma expressão da luta história em defesa da educação pública, gratuita, laica, de qualidade, com gestão pública, inclusiva e, de fato, para todas as pessoas.
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Da fraude contábil nas Lojas Americanas à fraude educacional de Lemann e sócios - Instituto Humanitas Unisinos - IHU