08 Março 2023
No dia 3 de março, o padre jesuíta Hans Zollner, homem de referência do Papa Francisco para a crise dos abusos clericais, foi nomeado consultor do recém-criado escritório da Diocese de Roma dedicado à proteção de menores e pessoas vulneráveis.
A reportagem é de Paulina Guzik, publicada em Our Sunday Visitor News e reproduzida por America, 06-03-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
“Estou comprometido a escutar os sobreviventes e a promover a educação e a formação no campo da salvaguarda, e espero continuar fazendo isso neste novo papel”, disse o Pe. Zollner em uma declaração de 3 de março após o anúncio.
O OSV News conversou com o Pe. Zollner antes do anúncio para perguntar sobre o estado dos abusos na Igreja hoje. O Pe. Zollner disse que, embora o caminho para enfrentar com sucesso a crise dos abusos sexuais clericais globalmente continue longo, ele tem esperança de que já “há alguma melhora”. Mas, acrescentou, “é um processo muito, muito lento, que precisa de informações e de lembretes constantes”.
O diretor do Instituto de Antropologia e de Estudos Interdisciplinares sobre a Dignidade Humana e o Cuidado (IADC) em Roma falou ao OSV News no quarto aniversário da cúpula vaticana sobre proteção aos menores, que terminou em 24 de fevereiro de 2019 e contou com a presença dos presidentes de Conferências Episcopais de todo o mundo.
Dos três pilares da cúpula de fevereiro de 2019 – prestação de contas, responsabilidade e transparência – o terceiro é visivelmente insuficiente em casos que são informados primeiro pela mídia e só depois pela instituição, como o do padre jesuíta Marko Rupnik, que foi noticiado por blogs italianos – Silere non Possum, Left.it e Messa in Latino – em dezembro de 2022.
O Pe. Rupnik, um renomado artista de mosaico e diretor espiritual, foi acusado de abuso espiritual, psicológico e sexual por várias mulheres adultas ao longo de quase 40 anos. Os jesuítas confirmaram em 21 de fevereiro que 14 novas denúncias haviam sido feitas. Uma acusação era de uma ex-freira que seria menor de idade na época em que teria começado o aliciamento para supostos abusos.
Se for confirmado que o Pe. Rupnik abusou de uma menor, “seguindo a lei canônica, eu acho que ele não deveria mais ser padre”, disse o Pe. Zollner.
É possível que, caso fosse demitido do estado clerical, o Pe. Rupnik possa permanecer na Companhia de Jesus, acrescentou o Pe. Zollner, referindo-se a um procedimento que, em suas palavras, “muitos não entendem e não concordam”, mas que deixa o controle da ordem sobre o abusador – um controle muitas vezes inexistente quando o abusador simplesmente se torna parte da sociedade leiga depois de ser destituído.
“Isso não quer dizer que ele precise ser mantido dentro de uma comunidade. Isso precisa ser ponderado com muito cuidado”, disse o Pe. Zollner. “Livrar-se de alguém também pode ser uma saída fácil e pode criar mais ocasiões para mais abusos.”
No entanto, tudo depende se o Pe. Rupnik seguir as restrições impostas a ele pela ordem: “Se ele não seguir as restrições, é um sinal claro de que não pode estar na vida religiosa”, disse o Pe. Zollner.
Apontando para sua própria relação com a ordem religiosa, o Pe. Zollner disse que “não consegue entender” por que não há mais membros da Companhia de Jesus que estão no ministério da justiça social que realmente enfrentem esse tipo de injustiça, ou seja, aquela que diz respeito às vítimas de abuso sexual.
“A Companhia de Jesus é uma realidade heterogênea como toda a Igreja”, disse o Pe. Zollner, quando questionado sobre a falta de transparência no caso do Pe. Rupnik. “Não somos melhores nisso. E isso está provado agora, aos olhos de todos, novamente.”
“Somos todos heterogêneos. Somos todos muito limitados. Todos temos nossos defeitos. E a Companhia de Jesus também tem muitos”, disse ele.
Os jesuítas anunciaram em 21 de fevereiro que iniciarão um procedimento interno que pode incluir mais restrições contra o Pe. Rupnik. O padre já foi impedido de ouvir confissões, oferecer orientação espiritual e ministrar retiros. Ele também é obrigado a pedir a permissão de seu superior antes de exercer qualquer ministério público e está proibido de exercer atividade artística pública.
Questionado sobre o que ele acha que deveria ser feito com a arte do Pe. Rupnik, que decora igrejas e capelas famosas de Washington a Lourdes, na França, e de Cracóvia, na Polônia, ao próprio Vaticano, o Pe. Zollner disse: “Antes de tudo, acho que ele não deveria produzir nenhuma nova arte. Em segundo lugar, eu entendo quando as pessoas dizem: ‘Não consigo mais ver isso’. O perpetrador mora entre nós, as vítimas estão no meio de nós, a discussão sobre os crimes e a forma de reagir ainda está em curso. A questão de como a justiça pode ser feita às vítimas ainda está em aberto. Nesse contexto, dificilmente consigo ver como as obras de Rupnik, que supostamente deveriam levar as pessoas a Deus, podem alcançar esse objetivo”.
Mas, por outro lado, disse o Pe. Zollner, “se você remover as realizações de todas as pessoas que também cometeram crimes ou maltrataram e abusaram de outras pessoas, provavelmente sobraria muito pouco. Se a arte de Rupnik ficar onde está, deve haver uma nota visível para que as pessoas sejam informadas.”
Questionado sobre se o abuso de mulheres adultas é negligenciado na Igreja, o Pe. Zollner reconheceu que “a questão do abuso de poder veio à tona apenas nos últimos quatro ou cinco anos como o principal ingrediente do abuso sexual. Esse não era o nosso entendimento seis anos atrás”.
“Esse tema traz cada vez mais aspectos que, talvez, de alguma forma pressentíamos, mas muito poucas pessoas foram capazes de expressá-los e descrevê-los como agora”, acrescentou. “Portanto, também é uma curva de aprendizagem muito íngreme em relação a quais são os principais elementos de disfuncionalidade, os componentes do abuso e as principais causas dele.”
Em relação àquilo que deu certo nos últimos meses, o Pe. Zollner elogiou a comissão instituída pelos bispos portugueses chamando-a de um “modelo”. A ideia da comissão independente nasceu em maio de 2021, e, em 13 de fevereiro de 2023, o relatório foi tornado público. O Pe. Zollner foi convidado para aconselhar os bispos em Portugal.
“Falamos sobre o que precisa ser feito”, disse ele, elogiando a transparência autoimposta. “Foi uma decisão deles, que eu realmente elogio, porque normalmente ocorre o contrário. Ainda resta saber o que eles farão com o resultado.”
Desde a investigação “Spotlight” do Boston Globe em 2002 até o documentário polonês “Tell no one” em 2018 e a investigação do espanhol El País em 2022, a maioria das Igrejas locais decidiu agir quando reportagens exclusivas foram feitas pela mídia.
“Há um certo ponto de ruptura quando uma enxurrada de notícias sobre isso chega repentinamente, e então os bispos são forçados a fazer algo por questões públicas e às vezes também por questões políticas.”
Segundo o Pe. Zollner, a comissão portuguesa encarnou o profissionalismo e a independência. Ela validou 512 testemunhos de um total de 564 relativos a casos ocorridos entre 1950 e 2022.
Ele disse que o chefe da comissão, Pedro Strecht, “foi muito claro desde o início no sentido de que não aceitaria nenhuma interferência na escolha das pessoas para a comissão, na metodologia e em qualquer tipo de comunicação que quisessem fazer”.
O Pe. Zollner disse que Portugal é “um bom modelo para outros países, pelo menos no sentido de como uma comissão deve funcionar e como se apresenta um relatório”.
O Pe. Zollner disse que há três razões pelas quais ainda não vemos muita transparência na Igreja em relação aos abusos. “Uma delas é que não se quer apontar o dedo para a própria instituição. Quando alguém se apega à imagem e quer preservar uma imagem e uma reputação supostamente atraentes, não quer admitir erros.”
Em segundo lugar, disse ele, a falta de transparência ocorre quando “você comete erros e precisa admitir que cometeu erros, o que não é bom de se admitir”.
“Em terceiro lugar, essa imagem é muito influenciada por uma projeção da própria perfeição. Jesus não nos pede para sermos perfeitos no sentido de sermos sem faltas, quando fala da perfeição que devemos viver. Ele fala sobre a perfeição de Deus, o Pai misericordioso e amoroso”, disse.
“Eu realmente acho que também há uma falta de fé em tudo isso. Uma falta de fé na misericórdia e na justiça de Deus e na possibilidade de me permitir cometer erros. E eu admito isso. Isso também é o que dizemos na confissão, então devo compensar o que fiz de errado.”
O Pe. Hans Zollner iniciou o Centro de Proteção aos Menores na Universidade Gregoriana em 2012, que foi transformado no Instituto de Antropologia em 2021. Nos últimos 11 anos, mais de 7.000 estudantes se formaram nos programas presenciais e on-line de proteção.
“A mera existência de algo assim tem um impacto”, disse o Pe. Zollner.
Agora, como um instituto acadêmico dentro da Universidade Gregoriana, ele também tem mais possibilidades de trabalho, sendo muito maior agora do que o anterior Centro de Proteção aos Menores. “Um centro da nossa categoria e estrutura universitária é basicamente um show solo, porque não tem corpo docente. E, se não estiver ligado a nenhuma outra faculdade, não pode conferir diplomas próprios. Então, com a criação de um instituto, ficou muito mais sustentável, e agora podemos ter o nosso próprio corpo docente.”
O instituto do Pe. Zollner também criou uma rede e um lugar para ir quando a ajuda é necessária, mesmo que não possa oferecer um extenso trabalho de caso. “As pessoas que estão interessadas querem consultar, querem visitar, querem compartilhar, elas nos encontram. Sejam elas vítimas e vítimas secundárias, bispos, conferências episcopais, conselhos, religiosos ou leigos.”
Segundo o Pe. Zollner, o impacto não se limita apenas à Igreja, “porque se trata, é claro, de um problema humano”.
Ressaltando que 20% de todas as meninas do mundo sofrem abuso e assédio sexual antes de completarem 18 anos, o Pe. Zollner perguntou: “Alguém fala sobre isso? Quantos políticos reconhecem isso de verdade? Não vejo isso ocorrendo nem mesmo em países onde existe um debate público há décadas.”
Para o Pe. Zollner, o maior obstáculo para enfrentar a crise dos abusos sexuais clericais é pensar que esse é um problema que está fora da Igreja real.
“Não entendemos que isso faz parte da verdadeira missão da Igreja hoje e do processo de conversão que precisaria ocorrer, não apenas em nível espiritual, mas também estrutural em favor da escuta das vítimas”, disse ele. “Na realidade, levar em consideração a voz de sofrimento das pessoas que sofreram dentro da Igreja, não apenas dos migrantes e dos pobres, mas daqueles que sofreram nas mãos dos próprios ministros da Igreja, esse é o maior obstáculo.”
Esse problema não é apenas dos padres e da hierarquia, disse o Pe. Zollner, mas também muitas vezes “da comunidade paroquial que não permitiu que as vítimas falassem”.
“Você não quer ouvir, porque isso destrói sua fé”, disse ele. “Isso destrói sua imagem da Igreja”.
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Pe. Hans Zollner fala sobre o caso Marko Rupnik, a Companhia de Jesus e a crise dos abusos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU