02 Março 2023
"Assim como Getúlio Vargas, que governou após anos afastado, o presidente brasileiro tenta diluir a tensão golpista com políticas públicas e uma aura mítica que explica a realidade de forma irracional", escreve Bernardo Gutiérrez, jornalista, escritor e pesquisador, em artigo publicado por Ctxt, 22-02-2023.
No nordeste do Brasil, o rei Sebastião I de Portugal, que desapareceu em 4 de agosto de 1578 em uma batalha, reaparece na forma de um touro. Nas noites de luar, um touro com uma estrela na cabeça ronda as dunas da Ilha dos Lençóis do Maranhão, enquanto as pessoas procuram tesouros na areia. Reza a lenda que Sebastião I mora na duna mais alta, esperando que o encantamento se desfaça para voltar ao trono. O boi de Dom Sebastião, feito de papelão e tecido, faz parte do bumba-meu-boi, uma das mais importantes manifestações folclóricas do Brasil. O rei Sebastião também aparece em forma de espírito, nos terreiros de várias religiões afro-brasileiras. Em Portugal, o sebastianismo ansiou pelo retorno do rei levou à União Ibérica (1580-1640), durante a qual o país foi absorvido pela Espanha. No Brasil, o sebastianismo perdurou por séculos como mito e sentimento que dá sentido ao inexplicável.
No final do século XIX, o profeta Antônio Conselheiro liderou uma insurreição no subúrbio de Canudos (interior da Bahia) contra a recém-criada República, que ele acusava de ser obra do anticristo. O rei Sebastião, proclamava o messias Conselheiro, retomaria seu trono e restauraria o Império do Brasil.
Em 1945, Getúlio Vargas, o autoproclamado pai dos pobres, isolou-se numa fazenda para preparar seu retorno e deixar crescer o querismo, movimento tecido em torno de uma única ideia: “Queremos que Getúlio volte”.
Quando em 17 de abril de 2017, Luiz Inácio Lula da Silva teve que ir para a prisão acusado de corrupção, ele semeou seu discurso de sebastianismo. “Não sou mais um ser humano, sou uma ideia”, disse ele. Com o exílio ao alcance, Lula optou pela prisão. Ele teve uma intuição: se saísse do país, não voltaria a governar. Ele entrou em uma cela para retornar como o tão esperado rei desaparecido.
A mística revolta de Canudos, que inspirou a Guerra do Fim do Mundo, de Mario Vargas Llosa, deu forma a um mecanismo que se repetiria ao longo da história. O vazio que empurrava uma multidão para aquele subúrbio – uma angústia existencial, uma carência material – desencadeava futuros. Possibilitou o retorno sebastianista de líderes carismáticos. Aqueles camponeses sem-terra, escravos recém-libertos e indígenas não confiavam nos valores da nova república ou de uma nova bandeira com a frase ordem e progresso do positivismo francês. Em 1897, o exército chegou para destruir Canudos. Seus 25.000 habitantes, cantando uma trova redentora, estavam confiantes na vitória: “Dom Sebastião já chegou. E trace muito regimento”.
João Ubaldo Ribeiro, em Viva o povo brasileiro, o melhor romance sobre Canudos, retrata a desconfiança no progresso dos seguidores do messias Conselheiro. “Se aquele que condena um homem à fome e à miséria tem um pedaço de papel na mão, isso se torna verdade? Que verdade é essa que nos humilha, nos diminui, nos transforma em nada? Para mim, você é a encarnação da mentira e da morte”, afirma um personagem.
O espelho da guerra do fim do mundo reflete o curto-circuito que quase impediu a volta do Partido dos Trabalhadores (PT) ao poder. Em 2022, Lula tentou ser simultaneamente profeta e força da lei, rei devolvido e “ordem e progresso”. Com tom de sindicalista lutador, Lula defendeu a restauração de uma democracia que já havia sido desafiada pelas multidões que ocuparam as ruas nas revoltas de junho de 2013. Ele não proclamou uma utopia, mas um processo de inclusão social que se revelou insuficiente. A juventude periférica que ocupou os shoppings durante os rolezinhos de 2014 deixou visível que as condições materiais não haviam se equilibrado tanto após doze anos de governos petistas. Em 2022, nem o discurso de Lula foi profético o suficiente nem a ordem a ser restaurada atraente o suficiente. O estado de direito brasileiro, crivado de desigualdade, não era uma realidade empolgante para a qual retornar. Por isso, na última campanha, Jair Messias Bolsonaro, profeta em nome próprio, continuou sendo o enviado divino. Aquele escolhido para restaurar uma paz arcaica anterior à própria democracia.
O espelho da guerra do fim do mundo nos lembra que a política brasileira não se explica racionalmente. Forças proféticas ativam redemoinhos míticos. Um presidente (Francisco Rodrigues Alves, 1918) não toma posse após morrer de gripe espanhola. Um presidente se suicida (Getúlio Vargas, 1954) para concretizar seu plano. Um presidente eleito morre um dia antes de sua posse (Tancredo Neves, 1985). Um candidato morre em um acidente de avião (Eduardo Campos, 2014) e deixa seu número dois (Marina Silva) perto da vitória. Uma tentativa frustrada de assassinato transforma um deputado marginal (Bolsonaro, 2018) em presidente. Uma conservadora (Raquel Lyra, 2022) ganha o governo na esquerdista terra de Lula (Pernambuco) ao ficar viúva na campanha. Um ex-presidente preso injustamente retorna ao governo para restaurar a justiça.
Aos 68 anos, Getúlio Vargas irrompeu na campanha eleitoral de 1950 com o slogan “ele vai voltar!”. A galera querista cantou um jingle cativante : “Bota o retrato do velho otra vez, bota no mismo lugar, o sorriso do velhinho faz a gente trabalhar”. Getúlio, saudoso rei desaparecido, voltou à presidência em 1951, pela primeira vez por meio de eleições diretas.
Aos 77 anos, Lula da Silva encharcou de admiração sua campanha de retorno. "Deu saudade do tempo de Lula, que la vida era boa, eu comia, eu bebia", dizia um de seus jingles. Lula, sem grandes propostas, venceu sua terceira eleição, mitificando seus dois mandatos presidenciais.
Como o passado inacabado, a sombra de Getúlio paira sobre Lula com um pano de fundo de verdade: os dois líderes são os únicos que se afastaram do poder e voltaram a ser presidentes. Apesar de suas diferenças, esquerda e direita comparam insistentemente as duas figuras. A esquerda lulista luta para refletir Lula em Getúlio, arquiteto dos direitos trabalhistas e fundador da gigante estatal Petrobras. A extrema direita distorce a história, chamando Getúlio e Lula de "fascistas de esquerda" no documentário do canal Bolsonaro Brasil Paralelo.
Getúlio Vargas, “o cacique mais querido da nação”, segundo a canção Dr. Ação Integralista Brasileira, AIB) e o comunismo (Aliança Nacional Libertadora, ANL). Paradoxalmente, seu segundo governo (1951-41), o único plenamente democrático, foi caótico. Inflação, greves, crises políticas, manifestos golpistas. As elites abandonaram Getúlio. Não o perdoaram por dobrar o salário mínimo nem pela campanha O Petróleo é nosso. A oposição da União Democrática Nacional (UDN) foi brutal. A constante campanha de difamação da mídia. O assassinato de um chefe militar foi o começo do fim. As suspeitas recaíram sobre a Guarda Negra, criada pelo próprio Getúlio em 1938, após um ataque fascista ao palácio presidencial. Em agosto de 1954, o presidente trancou-se no palácio do Catete, no Rio de Janeiro. Ele se recusou a desistir. “Eles não me acusam, eles me insultam; Eles não brigam comigo, eles me caluniam”, escreveu Getúlio na carta que deixou após se suicidar.
No thriller fictício O homem que matou Getúlio, do popular e recém-falecido apresentador de televisão Jô Soares, o assassino de aluguel Dimitri Borja Korozec encontra Getúlio empunhando uma pistola.
- O que faz aqui? pergunta Vargas.
"Você só morrerá se permanecer vivo."
Dimitri quer impedir seu suicídio. Mate-o com sua renúncia. com seu fracasso. "A melhor maneira de extinguir o mito é forçá-lo a viver", qualifica o pistoleiro. Na verdade, Getúlio cometeu suicídio em 24 de agosto de 1954. Sua frase “Saio da vida para entrar na história” ativou seu plano secreto. Choque nacional. Idolatria em massa. Seus inimigos, escondidos. Seu candidato para continuar o nacionalismo econômico (Juscelino Kubitschek) venceu as eleições em 1955.
Os inimigos de Lula querem que 2023 seja 1951. Que reine o caos semelhante ao que engolfou Getúlio. O Brasil devastado por Bolsonaro reúne as condições: inflação alta, juros altos, déficit fiscal vertiginoso, Congresso hostil, pobreza crescente, desmatamento na Amazônia, fake news em escala industrial. E uma tensão golpista que levou à depredação da sede dos três poderes em Brasília e a um novo formato de golpe híbrido. Algumas das primeiras medidas de Lula – deter a privatização de empresas públicas como a Petrobras ou aprovar ajuda aos mais pobres – tinham um certo sabor getulista. Ao contrário de Vargas, Lula conta com uma trégua temporária. Paradoxos Brasileiros: O establishment que apoiou a demissão ilegal de Dilma Rousseff e levou a extrema-direita ao poder, após quatro anos de ataques à democracia de Bolsonaro, agora está dando uma terceira chance ao sindicalista que já foi presidente. A tentativa de golpe de 8 de janeiro fortaleceu Lula e restaurou sua figura.
Lula 3, como a mídia já define o presidente, não precisará se suicidar para ativar seu plano. A arqueologia mítica dos afetos dá pistas. “Quase fui enterrado vivo. Eles pensaram que tinham me matado”, disse Lula poucas horas depois de vencer as eleições. O rei não havia desaparecido em batalha. Ele havia falecido. Lula foi, morreu, voltou. Ele atravessou o espelho para voltar do outro lado da morte com a sabedoria de um rei ressuscitado. Ele volta, mais vivo do que nunca, apaixonado por uma mulher vinte anos mais nova, Janja da Silva. Caminhando sobre os escombros dos três poderes, Lula emana a inquestionável aura do herói que todos julgavam morto e reaparece em casa de surpresa, cheio de uma nova sabedoria. A crescente popularidadedas primeiras pesquisas abre os caminhos do novo governo brasileiro. Em Washington, Lula obteve a bênção do presidente Joe Biden: um acordo estratégico para salvar a democracia e seu apoio ao Fundo Amazônia, que aspira deter o desmatamento da Amazônia e liderar a luta global contra as mudanças climáticas. Depois de passar pela Casa Branca, a ressurreição de Lula – crença, mecanismo, narrativa – acaba de se consumar.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
A ressurreição de Lula. Artigo de Bernardo Gutiérrez - Instituto Humanitas Unisinos - IHU