11 Setembro 2009
“A literatura é um campo profícuo para falar de Deus porque tem a liberdade criativa e criadora, não se contentando em traduzir a realidade tal qual ela é dada, mas inventando novas formas de expressá-la e habitá-la. Por isso ela é lugar do sentido”. A opinião é do teólogo jesuíta Geraldo De Mori, na entrevista a seguir, concedida, por e-mail, à IHU On-Line. Analisando a obra Viva o povo brasileiro, escrita por João Ubaldo Ribeiro, ele localiza a formação da brasilidade na narração, apontando o papel “das divindades dos povos oprimidos, especialmente as das populações africanas, tornando ausente ou contranarrando o Deus cristão, associado à elite e à dominação”. Sobre a ausência ou silêncio do Deus cristão nessa narrativa, De Mori diz que ela pode ser compreendida “como uma opção do autor em escutar aqueles cujas vozes sempre foram caladas nos relatos oficiais da história de nosso país e em boa parte de nossa literatura”.
Graduado em Filosofia e Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia - FAJE, Geraldo De Mori é mestre e doutor em Teologia pelo Centre Sèvres, em Paris, França, com a tese Le temps: énigme des hommes, mystère de Dieu. Une poétique eucharistique du temps en contexte brésilien (Paris: Les Editions Du Cerf, ,2006). É um dos autores de Lavadeiras. Mulheres construindo um movimento (Salvador: Centro de Estudos e Ação Social, 1989). Em 16 de setembro ministrará o mini-curso Provocações para se "narrar Deus" a partir de Viva o Povo Brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro, dentro da programação do X Simpósio Internacional IHU: Narrar Deus numa sociedade pós-metafísica. Possibilidades e impossibilidades.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Quais são as principais formas como Deus é narrado em Viva o Povo Brasileiro (VPB), de João Ubaldo Ribeiro?
Geraldo De Mori - Em VPB, os ecos da “passagem” de Deus ou do divino na narração são perceptíveis através dos dois macropersonagens que encarnam o Brasil: os que buscam impor a lógica ocidental aos destinos do país, figurados pelos que encarnam a elite nacional; os que realmente constroem a história do país, pelo aprendizado com a terra, seus habitantes e saberes, protagonizados pelos que historicamente estiveram ausentes nos relatos da história oficial: os negros e seus descendentes, o povo pobre e anônimo.
Mais que teorizado, Deus ou o divino é narrado pela experiência que provoca naqueles que a Ele ou a seus mensageiros prestam culto. No caso da elite, por exemplo, o Deus cristão aparece pela primeira vez na pregação e ação dos jesuítas junto aos povos indígenas. Era um Deus que quebrava o ciclo vital ao qual estavam habituados esses povos, pois realizava prodígios e milagres até então desconhecidos por eles. Além disso, era um Deus de conceitos (doutrina) e normas (moral), ao qual se devia temer, um Deus ao qual estava associada a noção de pecado, até então estrangeira a elas. A essa primeira “aparição” de Deus se acrescentam as das devoções aos santos, própria ao catolicismo popular, feitas de superstições e presentes nos representantes da elite, bem como a associação do Deus pregado pela Igreja oficial com a obra colonial e sua ausência da vida do povo após a proclamação da Independência e o advento da República. Contrapostas a esse Deus intervêm as divindades às quais prestam cultos os escravos e seus descendentes. A elas é associado um poder de salvação e de vida, ausente no Deus no qual crê a elite. Essas divindades se expressam de muitas maneiras no fio da narração, além de darem a seus fieis alegria e coragem de viver e enfrentar os desafios.
Como se pode ver, a narração resgata positivamente, na formação da brasilidade, o papel das divindades dos povos oprimidos, especialmente as das populações africanas, tornando ausente ou contranarrando o Deus cristão, associado à elite e à dominação.
IHU On-Line - Por que razão do lado dos personagens que encarnam a elite européia e cristã Deus é ausente? Como compreender esse silêncio sobre o Deus de Jesus Cristo e que provocações faz à teologia?
Geraldo De Mori - A ausência ou o silêncio do Deus cristão em VPB pode ser vista como uma opção do autor em escutar aqueles cujas vozes sempre foram caladas nos relatos oficiais da história de nosso país e em boa parte de nossa literatura. Se a voz do Deus cristão, através da religião oficial durante o período colonial e imperial, era a única que tinha direito de cidadania, as das demais divindades não podiam se expressar. Não se trata propriamente de uma revanche dos deuses africanos contra o Deus cristão, mas de uma fala e de uma escuta que nos levam a pensar. No fundo, o calar-se do Deus de Jesus Cristo pode ser uma interrogação sobre aquilo que dEle realmente foi anunciado por aqueles que o identificaram com os que encarnaram o poder entre nós. Por sua vez, a escuta dos deuses das culturas oprimidas pode ser fonte de descoberta daquilo que as fizeram capazes de suportar o sofrimento e contribuir na formação de nossa identidade.
Esse silêncio do Deus cristão e essa escuta das divindades dos outros povos que constituíram a brasilidade são provocações para o fazer teológico em nosso país, não porque nos colocam como juízes da evangelização no passado, mas porque nos leva hoje a fazer de novo teologia. E uma teologia que busca descobrir aspectos do Deus anunciado no passado que talvez ainda não foram apreendidos ou experimentados em sua plenitude. Essa descoberta pode ser mais respeitosa das crenças dos que não crêem no Deus cristão e mais significativa para os que têm nEle sua razão de ser, agir e existir.
IHU On-Line - E como se dá a presença dos deuses do panteão africano na trama de João Ubaldo Ribeiro?
Geraldo De Mori - Boa parte da narrativa se dá na Bahia, onde chegou grande parte dos escravos ao Brasil. O primeiro lugar da aparição do imaginário religioso africano tem a ver com a questão da transmissão da memória coletiva. É num transe, experiência forte entre os praticantes das religiões de origem africana, que essa memória é transmitida por Dadinha, descendente daquele que encarna o ancestral do Brasil: Capiroba, mestiço de negro e índio, duas das grandes fontes de nossa formação cultural. Outro lugar forte de presença dessas divindades são os rituais nos quais os negros invocam seus deuses. Em vários momentos esses rituais são evocados, em parte ou em detalhes. Há todo um capítulo (14), no qual são narradas cenas da Guerra do Paraguai, onde são os Orixás que lutam no lugar de seus fiéis e onde suas histórias são também narradas com as deles.
IHU On-Line - Poderia explicar qual é o sentido da “oposição entre o Deus ausente de uma religião presente e os deuses presentes de uma religiosidade condenada à ausência, à resistência e ao escondimento”, ao qual o senhor fará menção em sua conferência?
Geraldo De Mori - Como disse acima, até o advento da República, no final do séc. XIX, a religião oficial do Brasil era o catolicismo. Outras formas de religiosidade não eram admitidas, embora, segundo alguns estudiosos, tenha havido certas brechas que tornaram possíveis amálgamas entre as devoções aos santos, próprias ao catolicismo popular, e a crença nos Orixás. Os santos católicos escondiam devoções de divindades africanas. Nesse sentido, em VPB o Deus cristão está ausente, escondido ou em silêncio, contrariamente aos africanos que, apesar de terem que se esconder para poderem ter direito de presença ou de voz no campo religioso do país, são os que de fato se expressam no fio da narração.
IHU On-Line - Como compreender a antropofagia praticada por Capiroba ao padre que o persegue? De que forma esse ato pode explicar a tentativa de afirmar a religião originária dos indígenas sobre aquela que foi trazida pelos jesuítas?
Geraldo De Mori - João Ubaldo Ribeiro dá forma narrativa à metáfora escolhida por Oswald de Andrade para falar de nossa especificidade cultural. Por isso evoca o ato antropofágico de Capiroba e torna esse personagem o ancestral do verdadeiro povo brasileiro. Não se trata, porém, do ato ritual dos Tupinambás, onde o inimigo mais corajoso e valente era morto e depois devorado, porque os que participavam desse ritual acreditavam estar se apropriando da força e das qualidades do que era canibalizado. O autor de VPB “carnavaliza” a antropofagia ritual, guardando, porém, seu significado e conferindo-lhe novas significações. Nesse sentido, mais que reafirmar a religião e os deuses dos indígenas, o ato de Capiroba, que é caboclo, ou seja, mistura de índio com negro, é um recurso metafórico para dizer que o verdadeiro antropófago, herdeiro dos Tupinambás, não é uma etnia, mas o ancestral mestiço do Brasil. E a antropofagia, no romance, além de extrapolar a questão étnica, também possui aspectos culturais e religiosos.
IHU On-Line - Em que aspectos a literatura é um campo profícuo para se narrar Deus? Quais são os limites e possibilidades para narrar o divino que surgem nesse campo do saber?
Geraldo De Mori - A literatura é um campo profícuo para falar de Deus porque tem a liberdade criativa e criadora, não se contentando em traduzir a realidade tal qual ela é dada, mas inventando novas formas de expressá-la e habitá-la. Por isso ela é lugar do sentido. A Sagrada Escritura, acolhida entre os cristãos como Palavra de Deus, é feita de vários gêneros literários: narrativos, legislativos, proféticos, hínicos, sapienciais, parabólicos, apocalípticos etc. A narração nos situa no tempo: o passado do evento fundador, recordado e celebrado no presente e abrindo significado no futuro; a lei indica como existir e agir nessa temporalidade instaurada pela narração; a profecia abre o presente para as surpresas da história e suas vicissitudes; os salmos conduzem ao louvor e à relação pessoal de confiança com Aquele que é experimentado como o Doador do sentido; os textos sapienciais, indicam que é possível descobrir novas formas de viver a existência em conformidade com a exigência divina; as parábolas propõem, por sua excentricidade e exagero, uma nova maneira de existir no tempo; os apocalipses indicam que é possível esperar contra toda esperança, apesar do mal e da morte.
Como se pode ver, é através de uma biblioteca literária que a teologia cristã busca compreender o que foi revelado sobre Deus em Jesus Cristo. Obras literárias não religiosas, como VPB, propõem um mundo que nos leva a pensar. Questiona o que foi o anúncio e a presença cristã em nosso meio e abre novas perspectivas para o sentido. Enquanto tal, essas obras não são teologia, mas abrem questões pertinentes à mesma. O mesmo se pode dizer de obras literárias religiosas, como os textos sagrados das religiões. Eles exigem interpretação. Nesse ato já entra a razão conceitual, que busca a inteligência do que é dito sob tantos gêneros literários. Só a narração, a profecia, a lei, a poesia, o apocalipse, as parábolas, no caso dos textos judaico-cristãos, não são suficientes para a teologia. Não porque não sejam a fonte e a alma do fazer teológico, como bem o disse a Dei Verbum, no Concílio Vaticano II, mas porque o sentido que trazem exigem de novo sua atualização no presente, tanto da proclamação, da oração e da prática, quanto da inteligência que busca compreender aquilo que crê, ama e espera.
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Literatura: lugar de narrar Deus. "Viva o povo brasileiro" de João Ubaldo Ribeiro.Entrevista especial com Geraldo De Mori - Instituto Humanitas Unisinos - IHU