03 Fevereiro 2023
No dia 30 de janeiro, foram publicadas na França dois volumosos relatórios sobre os abusos e os desvios sectários de três personalidades católicas muito conhecidas no país e fora dele.
A reportagem é de Lorenzo Prezzi, publicada em Settimana News, 01-02-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O primeiro, de 900 páginas, diz respeito ao fundador da Arca, uma instituição eclesial que apoia centenas de comunidades em todo o mundo em favor das pessoas com deficiências mais graves, Jean Vanier. Uma comissão autônoma, criada pela Arca, entregou seu trabalho.
Outra comissão encomendada pelos dominicanos da França investigou os comportamentos censuráveis de dois irmãos, ambos dominicanos, Thomas e Marie-Dominique Philippe. O primeiro é cofundador com Vanier da Arca; o segundo deu início às diversas famílias religiosas da Comunidade de São João.
Aguarda-se um terceiro relatório, realizado pela Comunidade de São João.
Antes de informar algumas notas resumidas sobre os resultados das investigações, vale a pena enfatizar a coragem das fundações e da ordem para esclarecer plenamente as páginas obscuras de seus fundadores ou confrades.
Em segundo lugar, é bom distinguir aquilo que pode envenenar as fontes originárias dos carismas e aquilo que afeta apenas parcialmente o patrimônio espiritual das famílias religiosas.
É indicativa a conclusão da síntese sobre “Plágio e abuso: investigação sobre Thomas Philippe, Jean Vanier e A Arca”. “Se o nó sectário original formava um microssistema no coração da Arca, à luz dos fatos de abusos considerados pela comissão, parece que ele não se estendeu. O rápido desenvolvimento das comunidades e a entrada de inúmeras pessoas com perfis e motivações diferentes, aos quais se somam outros elementos (como o controle dos poderes públicos, a presença de profissionais externos), explicam a limitada difusão do nó sectário e seu esgotamento dentro da Arca”.
Conclusões semelhantes são previsíveis em relação aos dominicanos: os dois irmãos viviam substancialmente fora das comunidades e longe dos responsáveis internos.
Para a Comunidade de São João, a questão é mais difusa e exige uma energia de purificação interna mais atenta e maior.
As denúncias de abusos em relação a Vanier e aos irmãos Philippe explodiram em meados da década passada, dando início a processos internos de renovação e aos estudos que agora vêm a público. Mas a história é muito mais longa.
Podemos começar a partir de 1938, quando Thomas Philippe afirma ter tido experiências místicas significativas em Roma, chamadas de “a noite de núpcias”. O envolvimento do corpo no gozo extático é narrado como uma conjunção com a Virgem e a manifestação de uma relação mais misteriosa (incestuosa) entre Maria e Jesus. Trata-se de uma tolice desanimadora, que encontra crédito no tio, também ele dominicano, Thomas Dehau, e que Philippe recorda como fundante do seu caminho espiritual.
O próprio Thomas Philippe iniciou uma fundação original em 1945, não muito longe do centro de estudos Saulchoir (Soisy-sur-Seine). Ali se encontram algumas das figuras mais inteligentes e promissoras dos jovens católicos da França. Entre eles, J. Maritain, C. Journet e o próprio Jean Vanier. Um ambiente de grande vivacidade intelectual e sincera pesquisa, que, no entanto, começa a vacilar com as primeiras denúncias, muito discretas, dos comportamentos de Thomas Philippe (enquanto Marie-Dominique permanece mais recluso naquele momento).
Em meados dos anos 1950, o caso chegou a Roma e, em 1956, houve uma severa condenação canônica contra Thomas Philippe, que a depôs do cargo da associação Eau Vive, privando-o da celebração litúrgica e do acompanhamento espiritual. Mas a absoluta discrição da condenação e a obstinada vontade do pequeno grupo original (menos de uma dezena de pessoas), capitaneado por Vanier, permitiram a continuidade das relações e o prosseguimento de práticas “espirituais” que confundem relações sexuais com experiências místicas. Elas são consideradas com razão pelo Santo Ofício (o atual Dicastério para a Doutrina da Fé) como um “falso misticismo”.
Madre Cecília, irmã dos Philippe, também está envolvida nesses desvios indecorosos. Práticas resguardadas por um muro de silêncio (mesmo depois da fundação da Arca em 1964), favorecido pela total autonomia das velhas e novas fundações, pela crescente autoridade dos personagens (que encontram crédito até nas salas de João Paulo II, enquanto João XXIII havia advertido expressamente Vanier para se distanciar dos Philippe) e pelo clima sectário que induzem em torno deles mesmos. Apreciados pela rigorosa defesa das razões da instituição eclesiástica e pelo número de vocações.
Retomo algumas notas da já referida síntese (126 páginas) do relatório que diz respeito a J. Vanier, em que os três personagens são frequentemente evocados juntos. Se as vítimas consideradas são 25 para Vanier e 23 para Thomas Philippe, seu número previsível é muito mais consistente.
O traço comum que as une (e isso também vale para Marie-Dominique Philippe) é uma relação de poder sobre as mulheres em questão, uma situação de dependência por parte delas e a ausência de seu consentimento válido com relação às práticas abusivas de que eram objeto.
Thomas, que tinha a plena confiança de Vanier, desfrutava de um edifício que pode hospedar até 300 pessoas (da Arca e de outras proveniências), no qual reproduzia as práticas já testadas na época do Eau Vive. Uma desorganização notória e a escassez de normas compartilhadas são acompanhadas pelo convite a uma insistente oração de adoração e ao cultivo de numerosas vocações que alimentavam diversos mosteiros.
Os abusos sexuais começaram dentro de uma aventura humana e espiritual de vocação, graças à cumplicidade involuntária de muitos que o convidavam para falar com o Pe. Thomas e à sua crescente fama de sabedoria e de santidade. O diálogo espiritual ocorria sem qualquer elemento de equilíbrio (por exemplo, com uma referência diferente de autoridade), e os abusos ocorriam graças a uma manipulação dos ritos sacramentais, em particular da confissão.
Entre Thomas e Vanier, as abordagens às vítimas são semelhantes. Mas, enquanto para Vanier sempre se tratava de mulheres de mais idade, de boa cultura e de classes sociais privilegiadas, para Thomas tratava-se sobretudo de jovens mulheres em busca de um caminho de vida. Beijos, abraços, aproximações às partes eróticas se sucediam sem necessariamente concluir com a penetração sexual. Não conheciam formas violentas, exceto em casos raros.
As justificativas – e isso diz respeito tanto aos irmãos Philippe quanto a Vanier – eram de caráter místico e teológico na convocação de uma passagem sem solução de continuidade entre o elemento espiritual e o comportamento físico. Até a afirmação paradoxal de Marie-Dominique da superioridade do membro masculino de Jesus em relação a seu coração.
A enganosa relação incestuosa de Jesus com Maria era evocada de várias maneiras. As vítimas de um dos abusadores encontravam a confirmação das relações irregulares por parte dos outros dois. É difícil pensar que haja um consentimento livre e maduro por parte de pessoas encantadas diante do carisma de personagens desse calibre, com medo de desagradá-los e de serem abandonadas. Algumas delas permaneciam convencidas de que haviam tido uma experiência libertadora. Somente algum tempo depois é que percebiam a violência a que haviam sido submetidas.
A consciência e o despertar ocorriam com a percepção de um insuportável sofrimento interior ou quando as vítimas se confrontavam com alguém de fora das instituições e quando, por motivos diversos, explodia um desentendimento com o abusador.
Revelou-se importante o recurso a terapeutas e a adesão a associações de vítimas. As denúncias geralmente eram apresentadas às autoridades eclesiásticas e às referências internas. No caso de Vanier, foram os novos diretores da Arca que o questionaram sobre o assunto, obtendo admissões limitadas. Somente quando as denúncias se tornaram públicas e foram divulgadas pela mídia é que começaram os processos apropriados, tanto internos quanto externos.
É muito delicada a reflexão sobre a comunicação espiritual mais ampla, por meio de livros, entrevistas e vídeos, particularmente extensa no que diz respeito a Vanier.
A insistência no acompanhamento, na aliança e na comunhão tem plena legitimidade na comunicação eclesial. Somente um olhar mais atento percebe a presença de raízes doentes que remontam aos desvios originais. Poder-se-ia falar de dois níveis distintos: “O primeiro se baseia em uma mística íntima, secreta, decorrente do ‘casamento espiritual’ com as deformações já indicadas. O segundo nível revela uma espiritualidade de compromisso com os pobres, reconhecendo-lhes um papel eminente para a conversão e a transformação das relações na sociedade”.
Os estudos se apoiam unanimemente na modalidade e na intencionalidade que guiaram a comissão autônoma de investigação sobre os abusos, liderada por Jean-Marc Sauvé.
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Vanier e os irmãos Philippe: sectarismo e abusos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU