28 Janeiro 2023
"Tive de passar de comportamentos orientados por princípios para uma práxis inspirada pelas relações humanas: é o outro que molda o meu interior e a minha resposta, a partir do seu modo de ser, com as suas características e carismas únicos, sem contudo descurar as antipatias, os limites, os erros e as escolhas existenciais e políticas do outro que considero inaceitáveis", escreve Flávio Lazzarin, padre italiano fidei donum que atua na Diocese de Coroatá, no Maranhão, e agente da Comissão Pastoral da Terra (CPT), em artigo publicado por Settimana News, 25-01-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Diante do que parece errado - até cruel nas situações interpessoais e sociais - muitos de nós no Brasil aceitamos trilhar caminhos de conversão para enfrentar os poderes egocêntricos e políticos que ameaçam e violentam a Vida.
Essa atitude nasce de vários e diversos contextos culturais e biográficos: a ética do "bem viver" e da "terra sem males" dos vários povos indígenas; a presença dos "orixás" que conduzem ao bem na espiritualidade dos afrodescendentes; a participação amistosa dos “encantados e encantadas” e o culto aos ancestrais no mundo camponês; são caracteres ancestrais que inspiram a vida e a luta das comunidades originárias e tradicionais.
Não podemos esquecer o aparecimento generalizado entre os mais jovens de novas atitudes éticas para traduzir em práticas alternativas a consciência da inegável crise ecológica do planeta Terra, das relações interpessoais, sociais e políticas. Uma ética em processo de definição que caracteriza minorias importantes em todo o mundo, mas que tem como inimigo implacável a convicção, temperada com toda hipocrisia dos poderes políticos e econômicos, da impossibilidade de parar, com os discursos, a máquina capitalista.
Na minha experiência e na de muitos outros, a percepção do que é correto e bom é uma herança familiar: internalizamos os ensinamentos maternos e paternos que nos recomendam desde a infância que não podemos matar, roubar e mentir. E que havia anjos para nos proteger e demônios para nos ameaçar. E, por último, mas não menos importante, um deus que nos observava e controlava, pronto para nos castigar ou recompensar.
Esse foi o ponto de partida de uma perspectiva ética, fundada em princípios e normas divinamente estabelecidos, que deveriam ter norteado nosso comportamento. Mais tarde, descobriria também que, no âmbito católico, é posta como verdadeira a existência de uma lei natural que, prescindindo de Jesus de Nazaré, orientaria todos os homens, de todas as culturas, a obedecer ao que é bom e a recusar o que é mau.
Tenho a impressão de que, apesar de algumas luzes que permanecem – a partir do Holocausto, dos Gulag e uma modernidade enlouquecida – o ethos católico tradicional, fruto dos regimes de cristandade, juntamente com a herança protestante e ortodoxa, foi varrido e que, em seu lugar, prevalece a ausência de uma dimensão ética: portanto, em muitas circunstâncias, falar de ética é falar quase de nada. Essa impressão não nasce da leitura de livros, mas do cotidiano, em que encontro pessoas, jovens e adultos, em que prevalecem atitudes aparentemente anômicas.
Pode ser – e realmente desejo – que eu esteja errado, mas mudanças radicais também ocorreram no mundo camponês tradicional. Lembro-me de quando desembarquei no Brasil há trinta e cinco anos e, ao me deparar com um mundo completamente diferente daquele em que vivia, fui obrigado a me fazer muitas perguntas difíceis.
Uma pergunta era sobre a ética dos agricultores do Maranhão, que não se pareciam nem um pouco com meus avós e tios camponeses do norte da Itália. Fundada no binômio honra-vergonha, a ética do camponês tradicional assentava-se em um único tripé: bom trabalhador, honesto administrador do dinheiro, defensor da honra feminina e familiar (bom trabalhador, bom pagador, respeitador).
A ética feminina reduzia as mulheres à condição de donas de casas submissas, prudentes e silenciosas, (do lar, recatada, obediente) confinadas à cozinha, a os fundos da casa, porque a sala de estar e a rua eram espaços exclusivamente masculinos: grande desvantagem feminina, que sublinhava os princípios patriarcais e machistas dominantes; inferioridade em parte superada, porém, pela prática do protagonismo matrifocal das mulheres camponesas, também pela ausência estatisticamente significativa das figuras maritais e paternas.
Parece-me que, já há tempo, essa ética não signifique absolutamente nada para as novas gerações brasileiras, no contexto urbano, mas também no mundo rural.
Mas o que existe em seu lugar? Com exceção das insurgências indígenas, quilombolas e camponesas, todas apoiadas por fortes e explícitas espiritualidades e alternativas juvenis, talvez apenas seja hegemônica a "lei de Gerson”, que, desde a década de 1980, acompanha como risco e tentação as morais tradicionais: obter vantagem, a todo custo, em todas as circunstâncias, sem se preocupar com a ética e a moralidade, atitude que subjuga as relações humanas, interpessoais e políticas, ao domínio de uma reciprocidade interessada e a todo o tipo de oportunismos. Como exemplo, poderíamos citar as escolhas políticas em 2022 de metade do eleitorado brasileiro, completamente equivocado quanto ao Bem e à Verdade.
E eu, como sobrevivi eticamente ao naufrágio da ética católica? Era um ethos que, no máximo, poderia fazer dos católicos pessoas de hábitos bons e saudáveis, pessoas educadas e civilizadas, mas sem o radicalismo e o entusiasmo do Evangelho.
Tive de passar de comportamentos orientados por princípios para uma práxis inspirada pelas relações humanas: é o outro que molda o meu interior e a minha resposta, a partir do seu modo de ser, com as suas características e carismas únicos, sem contudo descurar as antipatias, os limites, os erros e as escolhas existenciais e políticas do outro que considero inaceitáveis. É um confronto que frequentemente reverbera em meu ser, evidenciando influências inconscientes, limitações, incapacidades, egoísmos e presunções a serem combatidas e corrigidas.
Essa ética se baseia na companhia da Palavra do Evangelho que se torna sangue e carne do nosso cotidiano, inspirando fraternidade e sororidade. O mesmo ethos é vivível a partir dos apelos dramáticos de todos os seres vivos, nossos irmãos e irmãs, e do planeta terra, nossa casa comum. Uma ética macroecumênica de escuta, de resposta, de responsabilidade, de compromisso político e de esperança.
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Brasil: uma ética para o país. Artigo de Flávio Lazzarin - Instituto Humanitas Unisinos - IHU