13 Janeiro 2023
"O tema da escravidão negra não era assunto passível dentro da Companhia de Jesus. É possível constatar inúmeras tensões dentro da própria instituição. A insistência do Padre Manuel da Nóbrega que pedia negros de Guiné para os Colégios da Bahia se contrapõe a visão do Provincial, Padre Luiz da Grã (1523-1609). Os sacerdotes Jesuítas Miguel Garcia4 (1550-1614) e Gonçalo Leite5 (1546-1603), que passaram a criticar a escravidão negra em suas homilias, acabaram silenciados na Bahia (1585). Mesmo assim, nas confissões dos colonos, recusavam-se absolver publicamente pecados de quem possuísse negros escravizados, sendo expulsos do Brasil por esse motivo (1586). Neste mesmo período, o Padre José de Anchieta (1534-1579), sensível à questão negra no Brasil, também escreverá ao Geral da Companhia, Francisco de Borja, perguntando como tratar os escravizados. Sua resposta é emblemática, conforme a boa memória do Padre Geral, que não se colocasse os negros a ferros (ANCHIETA, 1984, p. 292)", escreve Felipe de Assunção Soriano, padre jesuíta, doutorando em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e curador do memorial jesuíta e do Instituto Anchietano de Pesquisa – Unisinos.
A Companhia de Jesus foi uma das ordens religiosas que mais tiveram mão de obra escrava no Brasil. E se sabe, com um pouco mais de exatidão, devido aos inventários de suas fazendas e engenhos por ocasião de sua expulsão do Brasil (1549-1759). O Padre Miguel Garcia (1550-1614) assim escreve ao Geral da Companhia em 26 de janeiro de 1583: “A multidão de escravizados que tem a Companhia nesta Província [Brasil], particularmente neste Colégio [da Bahia], é coisa que de maneira nenhuma posso tragar” (LEITE, 1945, p. 228-229). Serão esses excessos e absurdos que irão demandar ações que possam mitigar tal situação.
A grande mortandade de indígenas devido a epidemias e guerras regionais demandaram um novo tipo de mão de obra para as lavouras de cana-de-açúcar no Brasil. A experiência acumulada com os escravizados negros nas ilhas de Açores e Madeira (1440) servirá de modelo aplicado no Brasil (1560). O Padre Manuel da Nóbrega escreverá ao Padre Miguel Torres (Baía, 8 de maio de 1558) dizendo que o melhor bem que poderia fazer o El-Rei ao Colégio da Baía era enviar duas dúzias de negros de Guiné (LEITE, 1957, p. 455).
As regiões exploradoras na América Espanhola estavam divididas em quatro Vice-reinos: Rio da Prata, Peru, Nova Granada e Nova Espanha. Todo o comércio colonial era gerido pela “Casa de Contratação”, que recolhiam os impostos sob as riquezas produzidas ligando os portos regionais ao porto central de Cádiz (Andaluzia)2. Só em Cartagena (Colômbia), entravam doze ou catorze navios negreiros por ano, transportando de 300 a 400 escravizadas cada (VALTIERRA, 1980, p. 51). Antes de 1549, a maioria dos navios negreiros seguiam a Cartagena (Colômbia) para as minas de ouro em Cibao3.
O tema da escravidão negra não era assunto passível dentro da Companhia de Jesus. É possível constatar inúmeras tensões dentro da própria instituição. A insistência do Padre Manuel da Nóbrega que pedia negros de Guiné para os Colégios da Bahia se contrapõe a visão do Provincial, Padre Luiz da Grã (1523-1609). Os sacerdotes Jesuítas Miguel Garcia4 (1550-1614) e Gonçalo Leite5 (1546-1603), que passaram a criticar a escravidão negra em suas homilias, acabaram silenciados na Bahia (1585). Mesmo assim, nas confissões dos colonos, recusavam-se absolver publicamente pecados de quem possuísse negros escravizados, sendo expulsos do Brasil por esse motivo (1586). Neste mesmo período, o Padre José de Anchieta (1534-1579), sensível à questão negra no Brasil, também escreverá ao Geral da Companhia, Francisco de Borja, perguntando como tratar os escravizados. Sua resposta é emblemática, conforme a boa memória do Padre Geral, que não se colocasse os negros a ferros (ANCHIETA, 1984, p. 292)6.
Outra figura, mesmo sendo bem posterior, o Padre Antônio Vieira (1608-1697), é quem melhor contradita com a mentalidade de sua época, pois, em suas homilias, seu principal mérito consiste em reconhecer o negro como ser humano. Na obra “Cultura e opulência do Brasil”, do Padre André João Antonil (1711), deixa claro que para o escravo são necessários três “P”, a saber, Pau, Pão e Pano (ANTONIL, 2011, p. 108). De fato, Antônio Vieira não conseguiu superar sua época ao reconhecer a escravidão como um mal necessário, pois a igualdade que pretende defender em seus sermões é claramente denunciada em outros. Segundo Vieira, a liberdade é mais propensa aos vícios e a obediência ou sujeição é mais disposta às virtudes (VIEIRA, 1998, p. 138):
Tal profecia que protagoniza a sorte de um e a ruína do outro povo não se aplicou, pois será em Cartagena das índias – maior porto de tráfico do Mar das Antilhas, que nascerá o Apostolado entre os escravizados da Companhia de Jesus. Um expoente no trabalho em favor dos escravizados negros será o mestre do Padre Pedro Claver. Seu tutor, o Padre Afonso Sandoval (1576-1652), é quem o introduz neste serviço pregando contra a chaga da escravidão e atuando nos barracões de Cartagena. Ajudado por africanos intérpretes, Padre Sandoval produziu livros que tratam amplamente da cultura africana, chegando a propor um método de evangelização (PAIVA, 1984, p. 19).
Quando Pedro Claver nasceu (1580-1654) reinava Felipe II (Espanha) sobre mais da metade do mundo conhecido (1580-1640). Antes de entrar no noviciado Jesuíta fez seus estudos em Barcelona (Catalunha), onde encontrará a ordem de Inácio de Loyola decidindo entrar na Companhia de Jesus (1604). Fez em Malorca seus estudos de filosofia e em Barcelona seus estudos de teologia (1608). Em Sevilha, junto a outros missionários, teve seu primeiro contato com a crueza da escravidão enquanto se preparava para a travessia atlântica.
Pedro Claver chegará a Cartagena das Índias (Colômbia) e logo seguirá para cidade de Santa Fé (Bogotá) em junho de 1533 (Escolasticado). Durante um ano, Pedro Claver teve que esperar a vinda de um professor da Europa para retomar seus estudos. Foi ordenado padre na Catedral de Cartagena, em 19 de março de 1616. Ao constatar que o maior número de negros vinha de Angola, decide aprender sua língua e, com a ajuda de intérpretes, atendia os outros grupos linguísticos enquanto enfrentava o medonho ambiente dos barracões. Neste período, o maior obstáculo não era os negros e nem seu falar, mas, sim, queixas constantes ao Bispo e a completa precariedade do atendimento nos barracões (1607). Contemporâneo ao trabalho do Padre Afonso Sandoval na América portuguesa, José de Anchieta inicia um apostolado entre os escravizados do Brasil.
Na Carta escrita pelo Padre José de Anchieta e dirigida ao Geral Padre Cláudio Acquaviva (1582), relata-se a existência de um apóstolo entre os negros de Guiné7. Só na cidade de Salvador, no ano de 1582, chegaram mais de dois mil negros escravizados. Para atender essa demanda, o Padre José de Anchieta escolhe e nomeia um Jesuíta para a evangelização dos negros na Bahia. O Padre Baltasar Fernandes (1537-1628) que, com habilidade e prontidão, acorria às naus atendendo os doentes e catequizando-os em sua língua. No mesmo registro, com aprovação do Bispo Dom Antônio Barreto, funda-se, com estatuto próprio, a primeira “Confraria de Nossa Senhora do Rosário para os Homens Pretos” (ANCHIETA, 1984, p. 314).
As oportunidades para a conversão dos negros no Brasil era algo tão evidente que se chegou a propor que a evangelização de África ficasse a cargo dos Jesuítas do Brasil. De fato, tal intuição não se efetivou, mas, antes, o contrário. Ainda no século XVI, vários Jesuítas passaram de Angola para o Brasil. Até o Bispo de Cabo Verde chegou a pedir uma cópia do Catecismo de Anchieta para os negros de sua diocese (LEITE, 1938, p. 34). A lista dos Jesuítas que vieram da África para o Brasil é grande, empolgados com o testemunho de José de Anchieta e seus métodos catequéticos na língua da terra.
O Brasil foi frequentemente escola para os Reinos de Angola e Congo, devido ao grande contingente de negros escravizados. Muitos Jesuítas portugueses de Angola, hábeis em línguas tribais, vieram para trabalhar entre os negros no Brasil. A importância dada às línguas era algo decisivo, pois não só os que vinham de Angola a sabiam, mas outros Jesuítas no Brasil as aprendiam. Destacam-se o Padre Pero Rodrigues, o segundo biógrafo de José de Anchieta, após ser visitador de Angola, passou a América Portuguesa e foi Provincial do Brasil (1594-1603).
A necessidade de estudantes que soubessem as línguas tribais e a fácil comunicação suscitou vocações à Companhia de Jesus em África. Será no Brasil e não na África que a Companhia de Jesus produzirá uma Arte (Gramática) para aqueles que atuam entre os escravizados e um Catecismo. O Padre Pedro Dias, nascido em Portugal, movido pela necessidade espiritual dos negros, compôs a Arte da Língua de Angola (Lisboa, 1697), coadjuvado pelo angolano, Padre Miguel Cardoso, que a revisou e aprovou. Nos séculos XVII e XVIII encontramos vários Jesuítas do Brasil, cuja naturalidade era designada nos Catálogos da Companhia com o qualificativo de “Angola” (africanos).
Segundo o levantamento de Serafim Leite (1940), se destacam o Padre António Cardoso que veio por Luanda, mas nascido em Angola. Foi Reitor do Seminário de Belém da Cachoeira (Bahia) e do Colégio do Rio de Janeiro [1670-1749]. O Padre António de Passos, nascido em Angola, foi extraordinário no ensino dos negros [1633-1684]. O Padre Francisco de Lima, nascido em Luanda, atuou no Recôncavo baiano com o Padre José Bernardino e admitido ao 4° voto [1664-1707]. O Padre Francisco da Vide, nascido em Luanda, consagrou sua vida aos negros do Brasil, atuando no Rio de Janeiro na Fazendo de Santa Cruz. [1667-1732]. O Padre João de Araújo nascido em Angola, foi insigne língua e religioso apostólico entre os negros, atuando na região do Rio de Janeiro [1659 - †].
O Padre João de Cunha nascido em Luanda foi catequista de crianças negras e professor de meninos brancos na Congregação dirigida por ele no Rio de Janeiro. Faz a primeira tradução de parte dos poemas em tupi de José de Anchieta, que estão no Arquivo Romano da Companhia de Jesus - ARSI [1690-1741]. O Padre Luiz de Siqueira, nascido em Luanda, foi professor solene, aprendeu tupi e seguiu cargo de governo em várias casas e aldeias. Foi Reitor do Colégio de Pernambuco e o descobridor de pedras preciosas na Serra das Esmeraldas [1620 - †]. O Padre Manuel de Lima, nascido em Luanda, atuou no Recôncavo Baiano e foi um excelente intérprete dos negros e fez profissão de 4 voto [1667-1718]. E, por fim, o Padre Miguel Cardoso nascido em Luanda, foi Reitor do Colégio do Recife e Reitor do Colégio do Rio de Janeiro. Procurador da provincial em Roma e Provincial dos Jesuítas do Brasil [1659 - †] (LEITE, 1940, p. 254-261).
Já no Século XVII, para que os escravizados tivessem a livre disposição do domingo (Dia do Senhor), os Jesuítas concediam o sábado para que se ocupassem com suas próprias lavouras. Essa medida obrigará a autoridade civil determinar que nos outros engenhos ou fazendas deixem o dia de sábado livres para os escravizados (13 de janeiro de 1701). No Alvará de 21 de agosto de 1755, Pombal concede regalias aos índios que se casassem com brancas e vice-versa, negando qualquer possibilidade aos negros. Manda destituir um índio que se casou com uma negra, em 6 de agosto de 1771, por manchar seu sangue. A Companhia de Jesus, pelo contrário, sempre incentivou o matrimônio e, pouco a pouco, estendeu aos escravizados suas isenções canônicas8.
Essas considerações apenas evidenciam que o tema não era passível dentro da Companhia de Jesus e da sociedade em geral. Contudo, como corpo diverso e universal, a Companhia de Jesus traz as marcas do seu tempo e sua própria experiência. A influência da Universidade de Salamanca, da crítica do Frei Francisco de Vitória sobre o Direito Internacional e sua posterior aplicação na América na obra de Bartolomeu de Las Casas, estão na base de nossa reflexão. Diante de uma sociedade tão complexa e marcada por tantas contradições, só uma espiritualidade contemplativa e militante é capaz de encontrar caminhos.
Longe de querer suprimir as feridas profundas da escravidão na memória e na sociedade. Contudo, não podemos negar que sempre houve homens e mulheres que, movidos por sua fé ou filantropia, se colocaram a servido dos escravizados. Estes fatos aqui levantados apenas mostram à ambígua, o forte aparelhamento e, mormente, a aparente aceitação da sociedade colonial. Onde outros foram parados, alguns conseguiram avançar de alguma forma, pois há sempre um espaço de manobra para quem está na fronteira. Em todos esses exemplos fica estampado o testemunho de São Pedro Claver, aquele que escreveu a punho que se consagrou a Deus para a salvação de seus queridos negros (PAIVA, 1984, p. 43).
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O apostolado da Companhia de Jesus entre os escravizados no final do século XVI ao século XVIII. Artigo de Felipe de Assunção Soriano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU