O ofício do historiador. A experiência de John W. O'Malley

John W. O'Malley, em 2011 | Foto: Dermot Roantree/Jesuítas da Irlanda - Flickr

17 Setembro 2022

 

"The Education of a Historian: O'Malley conclui que, quando a missão do historiador é desempenhada com fidelidade e responsabilidade, esse processo leva a 'uma compreensão do passado que nos é sufocante' (p. 176). Não afirma, note-se, que o historiador tenha a última palavra sobre qualquer assunto, nem mesmo sobre um único personagem como Egídio de Viterbo. As reflexões do historiador jesuíta descortinam a possibilidade de um aprendizado contínuo, ou seja, aberto a construir ou corrigir o que já foi realizado, por si mesmo ou por outros", afirma o artigo de Festo Mkenda, jesuíta, Diretor Acadêmico do Arquivo Jesuíta Romano, publicado por Civiltà Cattolica, Caderno 4131-4132, p. 327-336, Ano 2022 Volume III, 01-08-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

Eis o artigo.

 

 

Não podemos perguntar aos personagens históricos por que as perguntas que eles se fizeram foram importantes em seu tempo, e muito menos podemos induzi-los a responder a questionamentos que são significativos hoje em dia. Alguns estudiosos medíocres poderiam aproveitar essa sua ausência para rotular apressadamente o passado como insípido em seu tempo e inútil no nosso. No entanto, em seu livro mais recente, intitulado The Education of a Historian: A Strange and Wonderful Story[1], o jesuíta estadunidense John W. O'Malley explica como a história não nos permite fazer tal afirmação. A perspectiva de um bom historiador nos ajuda a entender por que e como o passado tenha sentido dentro de seus próprios termos.

 

John W. O'Malley, SJ.
“The Education of a Historian:
A Strange and Wonderful Story”.
St. Joseph’s University Press, 176 páginas.

 

Essa lição está sendo proposta agora por um dos mais importantes historiadores do nosso tempo. Para muitos, o seu nome trará à memória sua obra mais popular, The First Jesuits, de 1993 [2], traduzida em 12 línguas, ou a outra de 2008, What Happened at Vatican II [3].

 

John W. O'Malley, SJ.
Os primeiros jesuítas
Unisinos, 2004, 581 pgs.

 

Este último livro, publicado no cinquentenário do anúncio do Concílio Vaticano II por São João XXIII, chamou a atenção do mundo. Do alto do currículo de 12 monografias assinadas por ele, quatro das quais de impacto revolucionário e muitas outras premiadas, O'Malley ocupa um lugar relevante no ranking dos estudiosos. No entanto, ele está pronto em nos lembrar que "os historiadores não são espíritos desencarnados". E talvez tenha sido o temor de ser confundido com um titã de estirpe divina que o inspirou para The Education of a Historian (A educação de um historiador, em tradução livre) como um testamento que ele nos dirige justamente para atestar sua profunda humanidade. O livro conta "a história de como um jovem de origem modesta de uma pequena cidade em Ohio alcançou crédito internacional como historiador da cultura religiosa da Europa moderna" (p. 2).

 

John W. O'Malley, SJ.
What Happened at Vatican II
Harvard University Press, 2008.

 

Ao longo dos anos, a escrita de O'Malley foi guiada por um princípio preciso: se ele realmente tivesse entendido um problema, deveria ser capaz de explicá-lo a uma agitada criança de 10 anos. "Se eu não tivesse condições - escreve -, teria sido um sinal de que eu estava contornando o problema, em vez de acertar o alvo". Ler essa declaração me fez pensar em alguns de seus outros escritos, em particular no Vatican I [4]. O Concílio Vaticano II (1962-65) ofereceu à minha geração de africanos a possibilidade de se tornar católicos sem ter que abrir mão de nossa africanidade.

 

E os termos "pré-Vaticano II" e "Vaticano I" nos soavam desdenhosos, embora não tivéssemos ideia do que era o Vaticano I (1869-70). Ao estudar teologia, havíamos aprendido apenas frases esporádicas e, ocasionalmente, sentenças retiradas de fontes secundárias com o intuito de apresentar uma crítica negativa. Quanto a mim, foi somente depois de ter lido Vatican I de O’Malley que aprendi algo sobre o contexto e os conteúdos daquele Concílio. No seu estilo habitual, simples e acessível, ele humanizou os personagens "pré-Vaticanos" e nos mostrou a seriedade das perguntas que eles se faziam.

 

Em The Education of a Historian O'Malley nos conta como um historiador atinge esse nível de clareza. Escrito para um grande público, o livro é acessível – por enquanto - a qualquer pessoa que saiba ler inglês. Poder-se-ia dizer que se sentirão diretamente interpelados três tipos de leitores: o historiador, o cristão e o jesuíta.

 

 

O ofício de historiador

 

Para O'Malley, a profissão de historiador é essencialmente um ofício. Através da formação, ele adquire as competências básicas para exercê-lo. A prática depois lhe confere experiência e o equipa com novas ferramentas, que ele adicionará uma após a outra à sua caixa de ferramentas. The Education of a Historian nos permite olhar para dentro da caixa de ferramentas de O'Malley's. É difícil imaginar qualquer historiador, professor ou aprendiz pouco interessado em descobrir quais ferramentas esse artesão de sucesso tenha usado ao longo dos anos.

 

Destacarei apenas quatro, que estão longe de serem exaustivas em relação ao que se encontra no livro. A primeira ferramenta, simples, mas indispensável, é ter uma missão clara. O'Malley descreve assim a sua própria: "Ajudar-nos a entender de onde viemos, ajudar-nos a entender como chegamos a ser quem somos, o que somos, onde estamos e, assim, ajudar-nos a enfrentar a realidade em que vivemos" (p. 153). Segundo ele, o historiador, colocando-se ao serviço dessa missão, torna "operante a memória do nosso passado coletivo nas nossas vidas ". Não é uma tarefa fácil, inclusive porque "uma compreensão completa [daquele passado coletivo] é impossível para nós mortais". A maioria dos historiadores concordaria que "mesmo eventos que às vezes são aparentemente simples se revelam, ao serem examinados, muito mais complexos do que pareciam à primeira vista" (pp. 174). Essa franca admissão de finitude exige uma grande humildade por parte do historiador e, obviamente, de todos nós. Em sua obra, O'Malley forneceu aos leitores, com seu estilo acessível, informações sobre questões complexas, evitando fáceis conclusões de eventos como o Vaticano I.

 

Quando for bem compreendida, a missão do historiador infunde poder em quem a pratica, de forma que a segunda ferramenta que proponho é justamente o poder do historiador. Os produtos que ele forja moldam a sociedade, passada e presente. Pessoas que nunca frequentariam os arquivos por conta própria verão o passado do ponto de vista do historiador. E em virtude da visão que auferem disso, também mudará sua compreensão do presente. Estudamos a história porque "o passado diz respeito ao presente e o presente diz respeito ao passado", afirma O'Malley. Além disso, o passado "serve como uma memória coletiva, e a memória é o que constitui a identidade" (p. 2). Nesse sentido, compreender bem o passado não é uma opção que podemos ignorar, muito menos podemos prescindir do ofício do historiador.

 

O'Malley fala do poder "assustador" do conhecimento histórico, que pode destruir "mitos sobre os quais as pessoas construíram suas vidas" (p. 39). Nesse sentido, ele compartilha uma linha de pensamento apoiada por vários estudiosos famosos, que destacam quantas falsidades, às vezes cuidadosamente elaboradas, moldam a existência da sociedade. Em seu livro de 1983 intitulado Imagined Communities [5], por exemplo, o historiador e cientista político britânico Benedict Anderson observa que a "mão de tinta" aplicada sobre tragédias passadas é um procedimento comumente usado na moderna construção das genealogias nacionais. Tais genealogias geram uma espécie de "egoísmo nacional" - tomamos emprestada a brilhante expressão do humanista britânico Sir Victor Gollancz [6] - que, por sua vez, justifica a exclusão e pode levar ao empobrecimento, à guerra e ao genocídio.

 

Quando o historiador expõe o verdadeiro significado do passado, coloca em risco aqueles que gozam de privilégios graças a genealogias distorcidas e liberta aqueles que são mantidos cativos por meio de histórias falsificadas. Em um livro recente, intitulado Reimagining Human Rights [7], o jesuíta estadunidense William R. O'Neill vinculou o sucesso na promoção dos direitos humanos à nossa capacidade de refutar falsas narrativas como aquelas que geraram e sustentaram o apartheid na África do Sul, o genocídio em Ruanda e segregação racial nos Estados Unidos. Seguindo esta linha de pensamento, torna-se óbvio que para melhorar o presente é essencial descrever corretamente o passado.

 

Aprendemos também com O'Malley que o poder exige a responsabilidade, requisito que é proposto como uma terceira ferramenta. O poder de que o historiador dispõe obriga-o a prestar atenção ao produto que apresenta ao público. Seu fardo de responsabilidade não afeta apenas nós no presente, mas também aqueles que viveram no passado. Como um bom historiador não se divertiria em desacreditar os mitos alheios, tampouco manipularia o passado para dele extrair uma narrativa adequada às considerações partidárias do presente. O'Malley defende que as "apologias" sectárias não têm nada a ver com a boa história. O passado, desta, faz sentido na forma como aconteceu. Trata-se de uma lição metodológica que o historiador jesuíta aprendeu no início de sua carreira.

 

Ele a descreve como uma virada que ocorreu em um momento preciso de sua formação, enquanto trabalhava em sua tese de doutorado sobre Egídio de Viterbo (1472-1532), frade agostiniano, cardeal, humanista e teólogo renascentista. Ele escreve: "Eu estava tentando induzir Egídio da Viterbo, um pensador do século XVI, a responder minhas perguntas do século XX". E acrescenta que quanto mais se esforçava para utilizar tal método, mais obtinha fracassos. "Precisava fazer uma mudança radical: era necessário que eu entrasse em sua mente e captasse quais eram suas perguntas" (p. 73). Feita essa mudança metodológica, Egídio tornou-se compreensível para O'Malley nos termos do próprio Egídio. Por sua vez, O'Malley, permanecendo fiel ao contexto e ao conteúdo dos escritos do cardeal, tornou-se responsável a seu respeito.

 

Parte da responsabilidade do historiador para com o passado, insiste O'Malley, "é a necessidade de temperar a suspeita com a compaixão quando se trata de interpretar as motivações dos personagens históricos". Se, de fato, é impossível adquirir um conhecimento completo de tudo, e além disso os personagens do passado hoje não podem se defender, também é verdade que o presente nos expôs a fatos completamente desconhecidos para aqueles que viveram sobre esta Terra antes de nós. O'Malley aconselha o bom historiador a se ater a "um equilíbrio judicioso entre uma hermenêutica da suspeita e uma hermenêutica da compaixão" (pp. 50; 132).

 

Seríamos talvez levados a acreditar que a missão, o poder e a responsabilidade que um historiador deve assumir poderiam transformar sua profissão em um fardo preocupante. Ainda assim, The Education of a Historian apresenta-nos um homem que a considerou agradável e satisfatória. O'Malley conclui que, quando a missão do historiador é desempenhada com fidelidade e responsabilidade, esse processo leva a "uma compreensão do passado que nos é sufocante" (p. 176). Não afirma, note-se, que o historiador tenha a última palavra sobre qualquer assunto, nem mesmo sobre um único personagem como Egídio de Viterbo. As reflexões do historiador jesuíta descortinam a possibilidade de um aprendizado contínuo, ou seja, aberto a construir ou corrigir o que já foi realizado, por si mesmo ou por outros.

 

O livro está repleto de exemplos que ilustram como a carreira de O'Malley se beneficiou da pesquisa e da experiência alheia. Também mostra como se desenvolveu sua habilidade de artesão, cada vez mais refinada, à medida que adquiria novas capacidades e examinava novos materiais. Uma "série contínua de insights" forneceu-lhe "uma compreensão cada vez mais profunda do ofício do historiador" (p. 1). Ele pode se permitir uma brincadeira sobre isso: "É fácil escrever um livro quando você está plagiando a si mesmo"; mas depois se esforça para explicar que seus livros anteriores lhe deram uma ideia clara do propósito que queria alcançar em cada capítulo de cada novo ensaio que escrevia. Para ele, "não há nada que faça um autor proceder mais rapidamente" (p. 168).

 

Poderíamos, portanto, assumir como quarto instrumento uma observação que O'Malley faz ao final do livro: "A profissão histórica se autocorrige". Esta é uma proposta reconfortante, uma ferramenta essencial na caixa de ferramentas do historiador, útil para dissipar qualquer sentimento de timidez ou competição. "Os historiadores revisam e reavaliam o trabalho dos outros, e isso faz com que as lacunas sejam preenchidas e os erros sejam corrigidos", diz O'Malley. A tarefa de encontrar um significado no passado é, nesse sentido, compartilhada por todos os bons historiadores. E mesmo que a "compreensão do passado que emerge do processo possa não abarcar [ainda] toda a extensão do que aconteceu [...], ainda assim o distingue o suficiente para nos fazer entender onde estamos e como chegamos lá" (pág. 176).

 

O'Malley em 2015, quando esteve na Unisinos, participando do Colóquio 50 anos do Concílio Vaticano II, promovido pelo IHU
 Foto: Ricardo Machado | IHU

 

A história como âncora da fé

 

Até aqui as lições sobre o método com que abordar o estudo da história centradas na profissão do homem que a investiga. Mas The Education of a Historian também oferece lições sobre os efeitos benéficos que a boa história produz sobre nós. A leitura transmite a sensação de que o autor esteja sereno no momento presente e otimista quanto ao futuro, pois conhece o passado. Essa crença não se abala nem mesmo quando ele relata as crises chocantes que testemunhou pessoalmente. O'Malley estava em Florença durante a grande enchente de 1966; estava em Detroit durante as revoltas catastróficas de 1967; estava na região de Boston, onde com vergonha e horror presenciou o surgimento do escândalo sexual relativo ao clero local, origem de um terremoto que logo abalaria a Igreja Católica. Mas ele também pode se gabar da experiência romana durante duas das sessões do Vaticano II, quando estava reelaborando sua tese para publicação; e novamente na Cidade Eterna quando, na década de 1980, os afrescos de Michelangelo na Capela Sistina foram restaurados (cf. pp. 3).

 

 

O volume também constitui um ato de generosa partilha de si mesmo de parte de O'Malley com seus leitores, porque descreve claramente como sua vida se entrelaçou com essa profissão. "Seja qual for seu objetivo específico - afirma -, meu livro não pode deixar de revelar a mim mesmo, um ser humano que enfrenta os desafios da vida, incluindo as recorrentes dúvidas pessoais" (p. 4). O historiador nos descreve a sua infância, em particular a relação com os pais, dos quais era filho único, e com a família alargada. Aprendemos quais eram as relações com os vizinhos e os colegas de escola. É feita referência à morte da mãe e ao segundo casamento do pai. O autor descreve a sua decisão de ingressar na Companhia de Jesus, e o que significou para seus pais tal escolha de seu filho único e a sucessiva formação como jesuíta. Faz-nos considerar o peso que a Companhia de Jesus teve na sua carreira de historiador. Nesse sentido, o livro será útil para qualquer leitor que deseje se beneficiar de um relato do itinerário existencial de outra pessoa. Pode-se falar de uma leitura edificante, não porque o livro contenha revelações ou eventos milagrosos vivenciados pelo autor, mas por seu caráter comum, porque deixa a impressão de que qualquer um poderia se tornar um O'Malley.

 

De modo geral, a narrativa retrata o autor lidando com as pessoas e os acontecimentos de sua vida, pequenos ou grandes, banais ou sérios, e nos mostra como cada um deles contribuiu para sua formação. Sua paixão por sorvete, por exemplo, o encorajou a estudar a história italiana em vez daquela alemã, e uma crise na Companhia de Jesus nas décadas de 1970 e 1980 o levou a reorientar sua pesquisa sobre os jesuítas. Independentemente de como se apresentasse a ele, o presente tornou-se uma janela da qual podia olhar para o passado. Enquanto estamos concentrados na leitura, quase podemos ouvi-lo reafirmar com firmeza que, se quisermos compreender o passado, devemos levar a sério o nosso presente.

 

Encontrar Deus em todas as coisas

 

Embora O'Malley afirme que o livro não é sobre sua relação com Deus, na verdade nos mostra como ele encontrou Deus em quase tudo ao seu redor. O conceito de encontrar Deus em todas as coisas remonta a Santo Inácio de Loyola, o fundador dos jesuítas. Simplificando, nos é sugerido perceber a presença de Deus fiel a nós em quaisquer circunstâncias em que nos encontremos. Algumas situações parecem completamente causais para nós, e nunca teríamos escolhido vivê-las. No entanto, mesmo nelas Deus se revela a nós. Esse tema transparece na narrativa de O'Malley, quando ele nos conta, por exemplo, "como encontros casuais mudaram [sua] vida e [sua] carreira como acadêmico, às vezes radicalmente" (p. 3). Houve muitos eventos desse tipo, que abriram as portas para realizações magníficas.

 

Como toda memória autobiográfica, The Education of a Historian nos propõe uma visão subjetiva. Mas, para grande parte da obra, essa consideração pode ser tomada em sentido positivo. De fato, o que faz de O'Malley um historiador responsável é seu papel ativo na história que conta. A noção de objetividade, por vezes até enfatizada em demasia em âmbito acadêmico, neste caso é temperada pela responsabilidade pessoal. Ninguém, por mais que tente, pode se despersonalizar a ponto de tratar um tema como se fosse um espírito desencarnado. O'Malley nos torna partícipes dos detalhes de sua vida, porque acredita que "qualquer compreensão que um historiador tem do passado é colorida por sua personalidade, seus preconceitos e suas experiências" (p. 175).

 

Embora essa admissão justifique seu orgulho pelo que realizou, por um lado, também o torna profundamente humilde. O seu nunca é o único ponto de vista sobre algo, muito menos aquele definitivo. Com base em suas descobertas, ele pôde afirmar com um sincero sentimento de confiança: "Eu sabia o que sabia e sabia que o sabia". E essa mesma consciência o levou a acrescentar: "Saber o que eu sabia me fez perceber quão limitado era o alcance desse conhecimento e, portanto, me tornou dolorosamente consciente da amplitude do que eu não sabia" (p. 77). Da mesma fonte o historiador extraiu lições de justificado orgulho e humildade.

 

Anteriormente dissemos que entre os leitores que se sentirão pessoalmente interpelados por O'Malley estão os jesuítas. De fato, esse público pode ser ampliado para incluir todos os religiosos e as religiosas, especialmente aqueles que se inspiram na espiritualidade inaciana. No passado, aos noviços e aos jovens jesuítas em formação eram propostos excertos das Lettres édifiantes et curieuses, que principalmente relatavam crônicas missionárias de grandes e milagrosas empreitadas realizadas em terras distantes. Não lamentamos o desaparecimento desse tipo de ferramenta formativa, porque provavelmente muitos noviços contemporâneos não seriam edificados por ela. E, por outro lado, há a possibilidade de aprender com a história de outra pessoa, principalmente se for uma pessoa mais avançada na vida religiosa. Um conto como o de O'Malley, em seu caráter ordinário, parece-me ter essa qualidade.

 

No mesmo dia em que recebi o exemplar de The Education of a Historian, recebi um e-mail de um jovem jesuíta de Abidjan, na Costa do Marfim, que me confidenciava a sua paixão pela história. Esse desejo o havia levado a se fazer questionamentos importantes. Ele escrevia: "Honestamente não sei por onde começar e como enfrentar com essa disciplina", e depois acrescentar: "Estou tentando entender como esse meu interesse possa ser útil para a Companhia de Jesus". Não consigo pensar em um presente melhor do que o livro de O'Malley para enviar àquele jovem jesuíta. E poderia haver muitos outros jovens interessados na história como ele.

 

 

O livro pode oferecer também ensinamentos de forma mais geral aos jesuítas e outros religiosos. Há quem poderia gostar de saber como O'Malley se comportou quando, após seus estudos de doutorado, foi designado para um ministério sem consulta prévia. De fato, fica claro por sua narração que poucos dos serviços que desempenhou foram decorrentes de sugestões feitas por ele aos superiores.

 

No livro, até estas simples palavras revelam seu ânimo: “Na minha vida de jesuíta, […] o hábito da meditação diária que aprendi como noviço em Milford é cada vez mais importante para mim. Ele me nutriu e me permitiu ser sereno todos os dias, mesmo nos momentos que pareciam mais sombrios. Também me permitiu enfrentar a escuridão que encontrei dentro de mim. É por isso que aprecio aquele trinta ou sessenta minutos de oração todas as manhãs, e me certifico de que nada em meu programa interfira com eles” (p. 173).

 

Por fim, há uma mensagem especial também para os idosos, especialmente para aqueles que têm dificuldade em aceitar a ideia de aposentadoria. Provavelmente conhecemos a máxima “Ore como se tudo dependesse de Deus; trabalhe como se tudo dependesse de você”, muitas vezes atribuído a Santo Agostinho de Hipona e às vezes a Santo Inácio de Loyola. Alguns estudiosos têm defendido que essa afirmação foi na realidade mal compreendida. Uma interpretação correta da espiritualidade inaciana levaria a trabalhar como se tudo dependesse de Deus e a orar como se tudo dependesse de nós. A diferença é sutil, mas decisiva.

 

Na opinião do jesuíta William A. Barry, "a versão usual [...] facilmente leva a uma implícita visão em que há duas esferas de atividade: o nosso mundo ordinário, que segue em frente como se Deus não tivesse nada a ver com isso, e um mundo sobrenatural, no qual Deus atua e do qual ele ocasionalmente intervém em nosso mundo ordinário".

 

Segundo Barry, quando oramos como se tudo dependesse de nós e trabalhamos como se tudo dependesse de Deus, a nossa existência é guiada por uma atitude espiritual completamente diferente: Dedico-me com todo o coração a qualquer tarefa que me seja atribuída e faço todo o possível para que meu trabalho seja bem-sucedido. Mas não me caso com aquela empreitada a ponto de me identificar totalmente com o trabalho ou o lugar que ocupo ou com as pessoas com quem o desempenho. Minha identidade depende principalmente de minha relação com Deus, que age para seu propósito dentro e através de mim. Assim, se aquela empreitada fracassar, ou se eu for designado para outra tarefa, ou se não puder mais realizá-la por motivos de saúde, não ficou desesperado e posso, como Inácio (embora talvez não tão facilmente), encontrar meu equilíbrio através da oração [8].

 

The Education of a Historian revela quem é John W. O'Malley. Mostra que ele nunca desposou a arte do historiador a ponto de submeter sua própria pessoa às suas prerrogativas. Isso fica evidente quando lemos sobre sua decisão de se aposentar: “Orei pedindo luz. Conversei com amigos. Obviamente, consultei meu provincial e tive várias conversas com meu superior em Georgetown. [Depois] eu me aposentei de meu cargo na universidade e me mudei para nossa comunidade de jesuítas aposentados em Baltimore em 12 de junho de 2020”(p. 171).

 

Depois dessas palavras conclusivas do autor, resta acrescentar apenas uma consideração: é preciso alguém do calibre de O'Malley para concentrar tantas coisas em menos de 200 páginas.

 

Referências

 

[1] Cf. J.W. O'Malley, The Education of a Historian: A Strange and Wonderful Story, Filadélfia, Saint Joseph's University Press, 2021.

[2] Cf. Id., The First Jesuits, Cambridge, MA, Harvard University Press, 1993.

[3] Cf. Id., What Happened at Vatican II, Cambridge, MA, Harvard University Press, 2008.

[4] Cf. Id, Vatican I: The Council and the Making of the Ultramontane Church, Cambridge, MA, Harvard University Press, 2018; cf. G. Pani, “Il Vaticano I. Un nuovo contributo di John O’Malley”, in Civ. Catt. 2020 II 76-81.

[5] Cf. B. Anderson, Imaged Communities: Reflections on The Origin and Spread of Nationalism, Condon, Verso, 1991.

[6] Cf. V. Gollancz, My Dear Timothy: An Autobiographic Letter to his Grandson, London, Camelot, 1952, 292.

[7] Cf. W.R. O'Neill, Reimagining Human Rights : Religion and the Common Good, Washington, Georgetown University Press, 2021.

[8] W.A. Barry, "Jesuit Spirituality for the Whole Life", in Studies in the Spirituality of Jesuits 31 (2003/1) 14 e 26.

 

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