14 Setembro 2022
“John W. O'Malley ensinou que a história importa e que devemos colher constantemente o fruto maduro da experiência e torná-lo compreensível e acessível – embora ele constantemente (e às vezes cansado) lembre a seu público que, não, a história não pode se repetir porque cada momento de qualquer época depende de seu lugar, tempo e circunstância. Na verdade, ele achou a designação de historiador da Igreja não muito correta e um pouco limitante, preferindo se rotular como historiador da cultura religiosa e renascentista”, escreve Christopher M. Bellitto, professor de História na Kean University, Nova Jersey, em artigo publicado por National Catholic Reporter, 12-09-2022. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Quando a Igreja se colocou em situações que comprometeram sua integridade e autenticidade na proclamação do Evangelho, a história coloca o assunto em perspectiva. O jesuíta John W. O'Malley, que faleceu em 11 de setembro aos 95 anos, colocou a história da Igreja a serviço da Igreja, como ele descreveu em um artigo publicado na revista America em 1982. Ele era também gentil, modesto e, sobretudo, generoso. John era divertido, até mesmo travesso, como quando ele encerrou uma fala sobre Erasmo com um dos seus próprios jargões humanistas: “São Sócrates, rogai por nós”.
Obituários e bibliografias falarão a extensão do seu trabalho e impacto, tendo ensinado gerações de leigos e clérigos na Escola Jesuíta de Teologia Weston de 1979 até 2006, quando se mudou para a Georgetown Unviersity. Mas um ponto importante que não pode ser esquecido é como sua vida acadêmica era admirada e abraçada pelos pesquisadores de todas as fés ou até os sem fé. John era tão bem-vindo na conferência anual da Sociedade Renascentista da América quanto na Associação Histórica Católica Americana. Várias sociedades de pesquisa o homenagearam com prêmios: ACHA, RSA e a Sociedade de Estudos Históricos Italianos. Harvard, onde se doutorou em 1965, concedeu a John sua prestigiosa Medalha Centennial em 2016.
A obra de John serviu à Igreja, com certeza: seu livro “Os primeiros jesuítas” é um padrão transformador, assim como sua trindade de livros sobre Trento, Vaticano I e Vaticano II. Editou vários volumes que deram voz a estudiosos mais jovens, para quem sempre teve tempo e conselhos sérios. Além disso, seu foco na retórica e no humanismo, juntamente com os tópicos gêmeos de estilo e substância – dois assuntos frequentemente opostos aos quais John se casou – impactaram os métodos dos estudiosos em vários campos.
John também escreveu com entusiasmo, estilo e humor – às vezes seco, irônico e doce. Em uma palestra autobiográfica para a Conferência de Estudos do Século XVI que foi publicada em 2007 na The Catholic Historical Review, ele começou contando sua infância em uma pequena cidade de Ohio, perto das fronteiras da Virgínia Ocidental e da Pensilvânia, com estas deliciosas linhas: “Tia Annie, tio, e seu filho Paul eram nossos vizinhos de porta. Eles eram Easthoms, minha família por parte da mãe de minha mãe. Os Easthoms eram supostamente metodistas, mas eles fumavam, bebiam, e nunca souberam que seriam rejeitados na igreja. Eu gostava muito deles”.
Sua história pessoal é cativante: sua mãe adorava francês, ele frequentou escolas públicas durante a Grande Depressão e a Segunda Guerra Mundial e se apaixonou pelo latim graças à professora do primeiro ano do ensino médio Miss Funari: “Suas aulas foram certamente das mais importantes experiências intelectuais da minha vida”. Entrou no noviciado jesuíta em 1946, sem nunca ter conhecido um jesuíta antes de se candidatar.
John passou pela vida com os olhos bem abertos, sem medo de admitir que estava sozinho e entediado durante um triste último ano de formação jesuíta na Áustria em 1960-1961. Como ele contou em 2007, ele tirou uma lição para o historiador que logo se tornaria: “Percebi com profundidade que nenhum livro poderia me ensinar o quão difícil é ter empatia e entender uma cultura que não é a nossa”.
Mas então veio a Itália. Ele se deleitava em contar como, passeando com uma casquinha de sorvete em sua primeira viagem a Florença, parou e percebeu: “Este é um bom país”. Ele relatou seu terror ao confrontar manuscritos medievais tardios sem um momento de treinamento paleográfico. John testemunhou a história e apreciou o poder de estar em Roma durante o Vaticano II enquanto pesquisava os esforços de reforma medieval nos momentos anteriores a Lutero para sua dissertação.
John viu os valores jesuítas em ação enquanto delegado na congregação geral de 1983 que elegeu Peter-Hans Kolvenbach para suceder Pedro Arrupe como superior geral após a intervenção do Papa Jõao Paulo II após o derrame de Arrupe dois anos antes. Ele estava em Roma quando o primeiro papa jesuíta foi eleito e assumiu o nome de Francisco em 2013. Sempre um bom amigo, John relatou como com algumas bebidas ele ajudou um colega jesuíta a superar a preocupação deste último de que Bergoglio – um pouco distante dos jesuítas — poderia instituir uma nova supressão. “Ele se saiu muito bem”, observou John em uma conferência alguns meses depois com evidente orgulho. “Francisco se saiu muito bem”.
Além de suas realizações em muitas áreas da erudição histórica, John abraçou a importância de estudar a própria história. Uma de suas frases favoritas era: “E daí?” que ele descreveu como uma característica adquirida de seu pai. Gaudium et Spes (Parágrafo 43) ensina que devemos estar cientes de nossas falhas para aprender com elas:
Embora pelo poder do Espírito Santo a Igreja permaneça a fiel esposa de seu Senhor e nunca deixe de ser o sinal da salvação na terra, ela sabe muito bem que entre seus membros, tanto clérigos como leigos, alguns foram infiel ao Espírito de Deus durante o curso de muitos séculos; também na época atual não escapa à Igreja a grande distância entre a mensagem que ela oferece e as falhas humanas daqueles a quem o Evangelho é confiado. Qualquer que seja o julgamento da história sobre esses defeitos, devemos estar conscientes deles e lutar contra eles energicamente, para que não prejudiquem a propagação do Evangelho. A Igreja percebe também que, ao desenvolver a sua relação com o mundo, tem sempre grande necessidade do amadurecimento que vem com a experiência dos séculos.
John ensinou que a história importa e que devemos colher constantemente o fruto maduro da experiência e torná-lo compreensível e acessível – embora ele constantemente (e às vezes cansado) lembre a seu público que, não, a história não pode se repetir porque cada momento de qualquer época depende de seu lugar, tempo e circunstância. Na verdade, ele achou a designação de historiador da Igreja não muito correta e um pouco limitante, preferindo se rotular como historiador da cultura religiosa e renascentista.
Sua robusta pesquisa construiu sua merecida reputação de mestre, mas sua carreira também demonstrou que os professores deveriam estar falando para um público mais amplo o tempo todo, assim como o biblista Raymond Brown, que seguia cada passo de um livro com pequenos artigos sobre o mesmo assunto em revistas católicas populares. Quando a Igreja discutiu sobre o celibato, lá estava um artigo na America contando a história e rascunhando lições. Alguns bispos anunciaram que não dariam a Eucaristia para político a favor da liberdade do aborto, e então, outra vez, a análise histórica de O'Malley alertava sobre a excomunhão.
John alcançou a muitos com seus artigos e em seus programas de rádio Now You Know Media/Learn25, que se tornaram em livretos sobre a história do papado e dos jesuítas. Ele frequentemente apontava que, sim, ele escreveu muitos livros acadêmicos, mas como ele disse em uma entrevista em 2020, “eu me sinto responsável não apenas a falar com outros historiadores. Nós frequentemente precisamos uma fotografia maior e a resposta à questão: ‘E então? E daí?’. Essa é a minha verdadeira questão”.
A Igreja é grata por suas respostas.
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Gratidão ao historiador que sempre perguntou: “E daí?”. O jesuíta John O’Malley - Instituto Humanitas Unisinos - IHU