John O’Malley sempre soube que sua missão seria ensinar. Acabou se tornando jesuíta, historiador, mas, ao longo de toda vida, sempre foi professor.
Reproduzimos a seguir, o perfil do professor John O’Malley produzido pela equipe do Instituto Humanitas Unisinos - IHU, pessoalmente, em 2015, em sua passagem pela Unisinos. O’Malley faleceu ontem, 11-09, em Baltimore, nos Estados Unidos. O texto foi publicado originalmente na edição 466 da Revista IHU On-Line, de 01 de junho de 2015.
Quando se pensa em padres jesuítas, logo associamos às missões e à educação, ao ensino. A história de vida do padre americano John O’Malley também tem muita relação com esse imaginário. Bastam cinco minutos de conversa com esse senhor sempre bem-humorado, de sorriso largo, para perceber o quanto respira história e faz questão de contá-la, como um professor. Muito mais acostumado a falar das origens da Companhia de Jesus e do passado da própria Igreja, O’Malley fica meio sem jeito ao falar de si. Mas conhecê-lo mais de perto é mergulhar em História, misturada à narrativa de uma vida inspiradora.
Com 88 anos de idade, recorda que aos 18 anos escreveu uma carta pedindo para entrar no seminário. Nascido numa pequena cidade do estado de Ohio, nos Estados Unidos, era único filho. Sempre frequentou escolas públicas, até que surgiu essa curiosidade em saber mais da vida de jesuítas. “Nunca tinha me encontrado com um jesuíta, mas tinha lido a respeito e sabia que eram missionários e atuavam na área de ensino. Sabia que queria ser um sacerdote, mas não diocesano. E os jesuítas me pareciam ok”, conta.
Embora acesa a chama vocacional para o sacerdócio, O’Malley se assustava com a forma de vida de padres em paróquias. “Os sacerdotes viviam sozinhos e tinham muitas atividades. A rotina deles é demais para o meu gosto.” Foi aí que, como ele mesmo diz, resolveu “dar um tiro no escuro” e tentar ingressar na Companhia de Jesus. “Foi uma coisa meio maluca”, brinca.
A carta foi lida e ele foi aceito na ordem. Tudo bem? Não. Ficou chocado já no primeiro dia. “Achei que tinha cometido um erro enorme. Mas como era orgulhoso demais para abandonar no mesmo dia, resolvi ficar mais um dia e depois ir embora.” Mas esse dia faria toda a diferença. “Esse foi o erro que fiz”, ironiza em meio a gargalhadas. “Depois desse dia, vieram os outros, as coisas já me pareciam melhores e fui me sentido em casa.”
O que O’Malley sentiu, na verdade, era um grande medo do desconhecido. “Me parecia tudo tão isolado, diferente de tudo que conhecia.” Passado esse “susto”, o professor olha para esse tempo e faz piada. “Até hoje, não sei por que meus pais permitiram que fizesse isso.” A verdade é que se sentiu acolhido na Ordem. Além disso, se aproximou do mestre dos noviços. Ele era historiador e passou a inspirar o jovem seminarista. “Eu gostava de história minha vida inteira, meus pais gostavam muito de história. Mas o meu encontro com aquela pessoa confirmou tudo isso. A partir de então, os jesuítas me incentivaram a ser historiador.”
Ainda sobre a época de noviço, O’Malley recorda alguns professores de teologia que foram importantes para sua formação. “Entre os teólogos jesuítas que mais me influenciaram estão William Miang, o mestre dos noviços, e John L. McKenzie , um dos melhores professores de Antigo Testamento”. Ele ainda recorda que um dos primeiros livros que leu como um jovem jesuíta foi de um dominicano francês, intitulado A Vida Intelectual (La vie intellectuelle, de A.-D. Sertillanges). Entre os autores que o influenciaram, também destaca Henri de Lubac e Karl Rahner.
No entanto, o que O’Malley aponta como fundamental na sua formação foram os três anos em que lecionou História numa escola de Ensino Médio em Chicago. “Aprendi como simplificar as coisas e me comunicar. Eu me dei conta de que conseguia fazer isso. Consegui atingir os ouvintes”, destaca. Estava, assim, pela primeira vez, cristalizada sua essência de professor. “Eu sempre tive essa sensação. A sensação de que eu era professor”, recorda, enquanto aperta suavemente os olhos. É um olhar de quem encontrou o seu caminho e é feliz por isso. E como nunca perde o humor, logo dispara em meio a risadas: “E também é só o que sei fazer”.
Mais tarde, foi para a Áustria com o objetivo de se dedicar à História da Alemanha. “Só que, durante esse período, passei uma semana na Itália e isso acabou mudando tudo.” Sobre a Itália, não esconde que foi seduzido pela comida, a beleza natural e artística, a arquitetura.
Encantado com os estudos da História Italiana, voltou aos Estados Unidos, desta vez em Harvard. E, na universidade, tem como “mentor” outro grande apaixonado pela História da Itália. O resultado foi sua tese de doutorado sobre um reformador italiano da Igreja do século XVI. Assim, nunca mais deixou de ser professor e historiador.
Agora, imagine O’Malley, um expert em História Italiana, num lugar onde os norte-americanos consideram como “A História” mais importante a dos Estados Unidos. “É verdade. Valorizam demais. Até porque não falam outra língua”, brinca. Mas, na realidade, gosta da História norte-americana. O que houve com a italiana foi uma paixão. “Achei muito mais interessante.”
Ao ser questionado sobre sua expectativa quanto à visita do Papa Francisco aos Estados Unidos, O’Malley dá um profundo suspiro, sorri e dispara: “oh, Deus. Quem sabe?! Não há como saber. Mas será interessante”. A reação é cheia de significados, pois ele sabe que há nos Estados Unidos certa resistência à forma bergogliana de conduzir a Igreja. Tanto por parte do episcopado quanto na questão política. “Por isso será interessante a fala dele ao Congresso. Muitos não compactuam com sua visão sobre os pobres, a imigração, entre outros temas”. Há católicos tanto entre republicanos como entre democratas, embora as posições dos democratas pareçam mais alinhadas com as do Papa. Por isso, brinca: “quando o Papa encerrar sua fala, certamente terá muita gente desapontada. Seja de um lado ou de outro”.
Outro ponto curioso da visita do Papa é com relação ao próprio presidente Barack Obama. O’Malley considera que há um alinhamento entre os dois. Um exemplo é a proposta de reforma na saúde, defendida pelo presidente e, de certa forma, apoiada por Bergoglio. No entanto, essa reforma não é aceita pelos bispos norte-americanos. “Não sei se devo falar isso, mas não sei do que os bispos estão falando”. Isso no sentido de que há crítica ao projeto com relação ao controle de natalidade. “Não é um plano perfeito. Mas pelo menos é algum. E ele ajuda os pobres.”
O’Malley também é profundo conhecedor da história dos jesuítas, tanto que escreveu a obra Os primeiros Jesuítas (São Leopoldo/Bauru: Editora Unisinos/Editora Edusc, 2004). Ele vê a Companhia de Jesus como uma ordem dentro da Igreja Católica, como outras tantas. No entanto, com muitas particularidades. “A primeira delas é que todos os dez primeiros jesuítas, encabeçados por Inácio de Loyola, haviam estudado na Universidade de Paris. Isso é importante porque tinham a melhor formação, de cultura mais elevada, para sua época. Não havia outro grupo semelhante a eles”, explica.
Essa formação foi fundamental para fundação da Companhia. É nessa perspectiva que se consolida a visão dos jesuítas. Além disso, há dois livros singulares para o grupo. O primeiro é Os Exercícios Espirituais, de Inácio de Loyola. “É um clássico. Criou um novo ministério, o do retiro espiritual. Teve um efeito profundo sobre os membros da ordem, pois todos que entram na Companhia têm que passar pelo retiro de 30 dias, ou seja, completar os exercícios espirituais”, pontua. O resultado é um estímulo para o estado de oração, motivação e profunda orientação espiritual.
O segundo livro é a Constituição dos jesuítas, redigida pelo próprio Inácio de Loyola. “É um documento importante, mas que é insuficientemente estudado. E também não havia nada comparável nas outras ordens”, considera. Isso porque, na maioria das ordens, a constituição era formada por um conjunto de regras. Já a Constituição dos Jesuítas tem uma progressão psicológica, estabelece ideais e apresenta uma certa flexibilidade. Há cláusulas fixas, mas há certa liberdade “Acompanha o jesuíta desde que entra na ordem até que professe os votos. E ela pressupõe uma ideia de evolução, progresso. Assim, aquilo que é próprio para um noviço não é necessariamente apropriado para um membro mais maduro.”
Os jesuítas estiveram entre os arquitetos do Concílio Vaticano II. O’Malley destaca nomes como John Courtney Murray , Henri de Lubac, Jean Daniélou, entre outros. “Por um lado, eram os arquitetos do Concílio. E, por outro, também foram afetados pelo Concílio”, destaca. Isso significa que foram levados a refletir sobre suas origens.
Para exemplificar, o professor retoma o documento do Vaticano II, A Igreja no Mundo de Hoje. Os princípios desse documento funcionam como uma espécie de atualização da própria ordem, “podendo assim aplicar a ideia de ‘os jesuítas’ no mundo de hoje e não mais como no século XIX, com a resistência à modernidade, contra o mundo”. O’Malley reluta ao afirmar que Gaudium et Spes é o documento do Vaticano II mais importante para os jesuítas. No entanto, reconhece que é o mais significativo para a Companhia. “É simbólico, como um símbolo do que aconteceu com os jesuítas”, pontua.
Relacionando ao atual pontificado, lembra que Bergoglio é o primeiro Papa que não participou do Concílio. “Então, não tem aquelas memórias anteriores — e mesmo durante — do Vaticano II. E parece ter tido ótimos professores e captado muito bem a mensagem básica do Concílio.” Isso significa dizer que a compreensão que tem da Igreja é a do Concílio Vaticano II, tomando a experiência do encontro eclesial como algo dado. Assim, a partir dele estruturando sua perspectiva. Nas ações do Papa, segundo O’Malley, é possível perceber o espírito do Concílio. Por exemplo, as ações diante de outras religiões, a colegialidade, entre outros aspectos. “Claro, tem a ver com o Concílio, mas também com a experiência de Bergoglio enquanto jesuíta”, frisa.
O professor é um dos especialistas em Vaticano II, escreveu o livro What Happened at Vatican II (Harvard, 2008) . Mas o que fazia durante o Concílio? “Oh, escrevia minha dissertação para a Universidade de Harvard, mas estava em Roma”, brinca. No entanto, revela que conseguiu sim acompanhar alguns movimentos muito de perto. “Pude assistir às sessões públicas e também às coletivas de imprensa. Mas nunca achei que escreveria profissionalmente sobre o Concílio, já que era especializado no século XVI”. No entanto, em 1971 escreveu o primeiro artigo sobre o Concílio. E nunca mais parou. “Em 2008, escrevi o livro e achei que era suficiente. Mas depois vieram os aniversários e jubileus. E aqui estou eu no Brasil.”
Estando no Brasil pela primeira vez, o historiador diz que quando pensa no país não consegue dissociar das imagens de Francisco no Rio de Janeiro. Perguntado o porquê, ele brinca: “um observador da viagem do Papa ao Rio disse que presenciou dois milagres: um argentino humilde e um brasileiro devoto, religioso”. Esse é o jeito John O’Malley de ser. Um senhor encantador, de sorrisos largos e apaixonado por história, da atualidade ou antiga. Nessa passagem pelo Brasil, terminou um livro sobre um barco chamado Lusitânia, que foi naufragado por um submarino alemão na guerra. E começou outro sobre a atual suprema corte dos Estados Unidos.