Entre dois mundos: José de Anchieta e Maria Tupansy. Entrevista especial com Felipe de Assunção Soriano

A aproximação desse missionário jesuíta com os modos de vida indígena o faz constituir Maria Tupansy, uma Virgem que emerge da experiência com a vida na aldeia

Acervo Santuário José de Anchieta

Por: João Vitor Santos | 09 Junho 2022



Em 9 de junho de 1597, morreu em Reritiba o missionário jesuíta José de Anchieta. A redução jesuítica que levava esse nome, cujo significa em Tupi é “muitas ostras”, deu origem à cidade de Anchieta, no litoral sul do atual estado do Espírito Santo. A fundação da cidade é só um dos inúmeros legados das missões capitaneadas por José de Anchieta que, por vezes, é lido pela história como herói nacional e, por outras vezes, como algoz de povos originários. Num exercício de se distanciar desse olhar polarizado e tentando compreender a complexidade dos contextos, o teólogo e historiador Felipe de Assunção Soriano observa que Anchieta “trabalhava entre dois mundos”. “A polarização em torno de sua ação apenas confirma que ele foi um homem de fronteira, entre a igreja oficial e a popular, entre a coroa portuguesa e o governo da Companhia, entre os interesses locais e a autoridade legítima dos morubixabas tupis”, pontua.



Soriano tem se dedicado a pesquisar a vida desse jesuíta, e foi num desses exercícios de vasculhar fontes históricas que descobriu a constituição de uma Virgem Maria indígena. “A apresentação de Maria Tupansy aos índios do Brasil leva em conta o papel social da mulher tupinambá, a partir do rito de acolhida nas aldeias tupis (Saudação Lagrimosa)”, explica na entrevista concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU. Assim, compreende que essa experiência anchietana revela que o jesuíta não agia apenas por imposição da fé cristã, mas no exercício de aproximação entre mundos. “O que Maria Tupansy vem fazer na aldeia é exercer essa autoridade ao expulsar anhangá (demônio), isto é, o inimigo e seu terror”, completa.



A pesquisa, que rendeu a Soriano a escrita de um livro, ainda revelou que “ao apostar no papel ordenador do feminino, José de Anchieta devolve essa figura centralizando Maria Tupansy no coração da aldeia”. Para o pesquisador, isso é fundamental e reitera que a ressignificação da mulher e da construção mariana só foi possível graças a uma aproximação muito estreita. “O que a figura de Maria Tupansy oportuniza é a passagem de uma verdade aprendida para uma verdade experimentada, pois, segundo nossa pesquisa, a Maria Tupansy é muito mais do que personagem: ela é o motivo do espetáculo, é seu assunto central e seu melhor resultado”, resume.

 

Felipe de Assunção Soriano (Foto: Santuário Anchieta)

 

Felipe de Assunção Soriano é jesuíta, possui graduação em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, graduação em Filosofia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia e mestrado em Teologia pela Universidade Católica de Pernambuco. Sua dissertação de mestrado, intitulada “Apresentação de "Maria" (A Tupansy) aos índios do Brasil: o Auto da Assunção como instrumento catequético em José de Anchieta no final do Séc. XVI”, deu origem ao livro “Maria Tupansy": O Auto da Assunção de São José de Anchieta” (São Paulo: Edições Loyola, 2022). Atualmente, é doutorando junto ao Programa em Pós-Graduação em História da Unisinos.

 

Confira a entrevista.

 

IHU – Como o senhor interpreta a passagem de José de Anchieta pelo Brasil?

 

Felipe de Assunção Soriano – Quando José de Anchieta nasce em Tenerife (Canárias), em 19 de março de 1534, San Cristóvão de la Laguna já era ocupada pelos espanhóis há 14 anos. Dos nativos guanches, naturais da ilha, pouca coisa restou além de objetos, costumes e seus restos funerários. Certamente o jovem Anchieta falava a língua dos nativos, de cujo sangue ele era herdeiro por parte de mãe.

 

A identificação com o Brasil encontra nesse fato de sua vida uma pista, pois, como quase nada se salvou da língua e dos costumes dos guanches, quando ouvia dizer que no Brasil tínhamos uma humanidade em estado primitivo, sabia que era o homem certo para essa missão. Ele sabia que sua vinda ao Brasil seria uma viagem sem volta, pois, dos seus 63 anos de vida, 44 foram dedicados a serviço do povo brasileiro. Ele foi o instrumento que a providência divina ofereceu para a catequese do gentio no Brasil.

 

 

IHU – Muitas vezes, a historiografia sofre polarizações e coloca figuras como José de Anchieta como algoz ou como santo. Quais os riscos dessas duas visões?

 

Felipe de Assunção Soriano – Vários pesquisadores, como Cassimiro de Abreu e tantos outros, insistem no serviço que P. Manoel da Nóbrega, P. José de Anchieta e P. Antônio Vieira prestaram na criação da nacionalidade brasileira. Obstante as diversas polarizações que marcaram o período colônia, o Brasil encontrou uma ordem religiosa capaz de se fixar na fronteira, lugar onde moram todos os riscos, mas, também, muitas oportunidades.

 

 

Como diz Alfredo Bosi, José de Anchieta trabalhava entre dois mundos, com dois códigos linguísticos e para vários públicos. Sua santidade é patente atestada por gerações em seu longo processo de canonização. Sua atenção ao indígena é facilmente notada nas cartas, testemunhos e na criatividade de seus instrumentos catequéticos. A polarização em torno de sua ação apenas confirma que ele foi um homem de fronteira, entre a igreja oficial e a popular, entre a coroa portuguesa e o governo da Companhia, entre os interesses locais e a autoridade legítima dos morubixabas tupis.

 

O perigo da polarização é não deixar ver o homem e seu legado, pois sua ação não se reduz aos esquemas que estamos acostumados a usar. Por isso que José de Anchieta segue chamando atenção, pois no palco do Brasil ele foi capaz de propor os caminhos para o país.

 

 

IHU – As missões também são lidas como um grande desafio aos jesuítas. Como podemos construir uma narrativa de José de Anchieta não como super-herói, mas como homem de seu tempo, com conflitos, dúvidas e contradições?

 

Felipe de Assunção Soriano – A Companhia de Jesus foi a primeira ordem religiosa criada sem fronteiras, isto é, sem os limites do coro e marcada por um labor apostólico ímpar. Sua inserção nas culturas onde atua constituiu sua principal marca, pois sabiam que estavam enviados para encontrar o caminho e formar pessoas. Para Pe. Manuel da Nóbrega, nosso trabalho é para quatro gerações, pois o limite que as missões traziam era desafio para o missionário e não tanto por causa da inconstância do indígena. Sem se adaptar ao secundário e ao externo a Companhia não conquistaria o espírito do gentio.

 

 

A experiência com a colonização espanhola na terra natal de Anchieta (Tenerife) marca a forma como ele compreende o projeto português, pois o primeiro lugar de conflito passa pela defesa do outro e na salvaguarda da cultura. Nos seus instrumentos catequéticos aparecem os tempos, os conflitos, as dúvidas, as novas elaborações e as contradições da integração. Quando o projeto missionário se cruza com o projeto civilizador, as ações convergem. Pois, quase sempre, a Companhia de Jesus aparece de modo ostensivo ora caminhando par a par, ora em sentido contrário, ora com um projeto próprio.

 

 

IHU – Que visão acerca dos povos originários a experiência dos jesuítas no Brasil inaugura, especialmente a partir de José de Anchieta?

 

Felipe de Assunção Soriano – É expressão própria da Companhia de Jesus chamar o nativo por gentio, tanto por causa do seu caráter teológico (tradição paulina) quanto pela gratuidade de sua abertura e docilidade ao Evangelho. José de Anchieta é quem mais enriquece essa visão multiplicando expressões para falar dos indígenas.

É certo que não podemos simplesmente atribuir autoria plena de pensamento às cartas anchietanas escritas enquanto formando na Companhia. Temos que analisar diferentemente essas cartas, atribuindo maior valor àquelas que foram escritas no uso de sua autoridade e liberdade. Na Carta aos Enfermos de São Vicente (1555), quando ele se nomeia de alveitar (veterinário), ele não está dizendo que os indígenas são animais, como alguns pensam, mas, sim, dele mesmo, que não pode se chamar de médico, mesmo exercendo tal ofício.

 

Existe a necessidade de tomarmos cuidado com o que temos nas mãos, isto é, com as traduções que usamos e seus destinatários, pois o “pressuposto que a observação do modo como a carta constitui e orienta a própria leitura explicita a historicidade dos critérios de verossimilhança de sua escrita” (HANSEN, O nu e a luz: cartas jesuíticas do Brasil, 1995, p. 88).

 

 

IHU – Em “Maria Tupansy – o auto da Assunção de José de Anchieta”, o senhor apresenta uma imagem mariana referenciada na cultura indígena. Quem é essa Maria que Anchieta apresenta e como ele a constitui?

 

Felipe de Assunção Soriano – O espetáculo chamado popularmente de Auto da Assunção é a última peça mariana escrita em língua geral (Tupi). De fato, José de Anchieta não colocou título nesse espetáculo, chamado por Maria de Lourdes Paula Martins (1954) de “Quando levaram uma imagem a Reritiba”.

 

A sutileza desse espetáculo está na forma como os pesquisadores tentaram enfrentar a pergunta sobre a identidade de sua personagem. As traduções e a pouca atenção aos costumes e ritmos dos seus destinatários está na origem do impasse. A apresentação de Maria Tupansy aos índios do Brasil leva em conta o papel social da mulher tupinambá, a partir do rito de acolhida nas aldeias tupis (Saudação Lagrimosa). José de Anchieta, em carta escrita ao P. Inácio de Loyola (1554), explica que as mulheres tupis caminhavam nas batalhas à frente dos maridos. O que Maria Tupansy vem fazer na aldeia é exercer essa autoridade ao expulsar anhangá (demônio), isto é, o inimigo e seu terror.

 

Maria Tupansy – o auto da Assunção de José de Anchieta (São Paulo: Loyola, 2022)

 

 

A anfitriã

 

O ambiente cultural dos indígenas é tão hierarquizado quanto o ideário judaico-cristão. José de Anchieta unificará essas duas cosmovisões em um só programa com a entronização dessa imagem que traz nos braços seu Filho lindo, Jesus Tupã (Principal da aldeia). A leitura feita apresenta Maria Tupansy nessa função, que de hóspede se faz anfitriã recebendo os índios reunidos para o festim em sua missão.

 

Os principais das nações tupis dirigem-lhe sua atenção, prometendo a conversão em atenção a sua visita. Mesmo que a Virgem não tenha fala no espetáculo, sua elaboração confessa o diálogo de Deus com o seu povo. No coro dos nativos reconhece-se seu protagonista, pois sua entronização é a apresentação de Jesus Tupã como principal da aldeia.

 

 

IHU – Até que ponto Maria Tupansy pode ser lida como exemplo de inculturação da fé católica? Esse, também, pode ser um exemplo de destituição da cultura originária?

 

Felipe de Assunção Soriano – Nos estudos de Peter Burke na obra “Hibridismo Cultural” (2006) ele considera três coisas. Primeiro, que nesses artefatos é possível constatar características de inovação, efeitos equivalentes, assimilações e uma total recusa à imitação. Segundo, esse processo é algo dinâmica que incorpora estereótipos ou esquemas culturais assimilados ou equivalentes. E, terceiro, a existência desses artefatos confessa a persistência de práticas próprias e a existência de um povo mesmo híbrido.

 

 

O esforço dos missionários em equivalência dinâmica permitiu encontrar os silogismos para a criação do Diálogo da Fé (Catecismo). Da mesma forma, com o teatro, temos uma nova assimilação criativa. A Maria Tupansy não é somente uma etapa da inculturação, mas, sim, o produto do diálogo cultural desenvolvido pela Companhia de Jesus.

 

 

Segundo João Azevedo Fernandes (2016) na obra “De cunhã a mameluca: a mulher tupinambá e o nascimento do Brasil”, a catequese foi um golpe de morte no papel feminino nas aldeias. Ao apostar no papel ordenador do feminino, José de Anchieta devolve essa figura centralizando Maria Tupansy no coração da aldeia. É importante ressaltar que a ressignificação da mulher e a construção de Maria com essas características somente foi possível pela assimilação completa da língua indígena, em sua estrutura subjacente (Gramática) e profunda (Semântica), bem como toda a ideologia nela embutida.

 

Essa é a razão pela qual afirma-se que o Auto é a obra anchietana que oferece melhor acomodação ao evoluir a plena equivalência dinâmica e assimilação criativa desses elementos doutrinais.

 

Enquanto personagem silenciada, sua ação em favor do povo dá voz aos indígenas (toda sua ação é cantada pelos nativos), pois a única autoridade retratada é a dela, recebida pelos principais reunidos ao festim. Nela o nativo encontra a referência que pode agrupar as diversidades de nações que serão reunidas na missão de Reritiba, pois, como recomenda José de Anchieta: gravemos na mente o nome dela, invocando-a continuamente.

 

 

IHU – Qual foi a documentação base para sua leitura da constituição de Maria Tupansy de Anchieta? Como essas fontes foram trabalhadas e no que achas que ainda podem ser trabalhadas?

 

Felipe de Assunção Soriano – O documento base foi o próprio espetáculo “Quando levaram uma imagem a Reritiba” (1590). Como ele foi escrito todo em língua geral (tupi), se somam as diversas traduções que temos: a tradução de Maria de Lourdes Paula Martins (1954), as duas traduções de Armando Cardoso (1977 e 1984) e a tradução de Eduardo Almeida Navarro (2004). Somam-se os biógrafos de Anchieta, a saber, Querício Caxa e Pero Rodrigues (1988) e Simão de Vasconcelos (1943) e os cronistas André Thévet (1878), Metraux (1950) e Fernão Cardim (1925). Soma-se o trabalho de Leodegário Filho (1966) e a constituição dos autos de Armando Cardoso (1977).

 

As fontes nos possibilitaram reconhecer a forma peculiar como os nativos receberam a imagem em sua cultura e costumes, pois logo na abertura o coro confessa que a Virgem inicia o ritual que as mulheres da aldeia devem fazer quando recebem uma visita. Dessa forma, é a virgem que se revela indígena, ao modelo das esposas do principal da aldeia, recebendo os índios reunidos ao festim. O nosso esforço foi devolver a alegoria ao espetáculo e deixar que ela se desvele no espetáculo anchietano.

 

 

IHU – Que caminhos a experiência de José de Anchieta pode nos servir de orientação para os desafios que temos vivido?

 

Felipe de Assunção Soriano – Nossa pesquisa revela como José de Anchieta, em sua pedagogia catequética, guarda em sua Maria Tupansy a identificação com elementos teológicos da tradição mariológica de sua época, conforme se lê na definição dos padres e nas narrativas evangélicas e como, num segundo momento, foram ressignificados à luz da cultura indígena, adequando-os à compreensão de seus destinatários. Nesse sentido, o espetáculo revela-se não somente como peça teatral, mas como memória de sua experiência de missionário ao realizar seu trabalho catequético sem a imposição de uma mentalidade europeia ou dominadora advinda da colonização, preocupando-se antes com a cultura e a assimilação de seus destinatários.

 

A novidade do método pedagógico anchietano está na transição do “discurso”, firmado no temor, na repetição e na doutrinação, para o ideal de aprendizagem firmado no “percurso”, abrindo espaço para a pessoa, para a sua autonomia, para sua vivência pessoal e comunitária. O que a figura de Maria Tupansy oportuniza é a passagem de uma verdade aprendida para uma verdade experimentada, pois, segundo nossa pesquisa, a Maria Tupansy é muito mais do que personagem: ela é o motivo do espetáculo, é seu assunto central e seu melhor resultado.

 

José de Anchieta se propõe, em sua catequese inculturada, a encontrar dentro do mundo indígena, a partir da tradição e a piedade popular, os elementos para sua apresentação. Ao contrário de uma Maria silenciada pela tradição medieval, apresentada como protótipo da mulher suave e aquiescente, passiva e concorde, nosso autor dá um destaque a sua Maria-Tupansy que, mesmo sem ter uma fala no espetáculo, se revela pela boca dos seus interlocutores como protagonista principal dentro dele.

 

Confira um trecho do Auto:

 

Por grande amor a nós, os pecadores,

Tupã fez uma santa excelsamente,

A mais linda de toda a nossa gente

E toda a enriqueceu dos dons melhores.


Dizendo “seja minha mãe querida”,

Entre toda mulher a fez eleita,

A engrandeceu com afeição perfeita,

E encheu de grandes bens a sua vida.

 

Deu-lhe nome “Maria”, co’apotência

De derrotar o mal, e filha e irmã.

A criou para ser a Mãe de Tupã,

Do Senhor imortal da existência.

 

Nela encarna Tupã, feito menino,

E nasce duma Virgem. A extirpar

Nossas misérias, vem nos visitar,

Querendo ser um lindo pequenino.

 

Maria Tupansy, que derrota

Anhangá (diabo) o inimigo e seu terror,

Companheira de lutas, seu vigor,

Nos ensina a virtude em nossa rota.

 

Amemos todos nós, Santa Maria,

Metendo sua lei nos corações

Nos desvie do mal e tentações,

Esmagando anhangá em nossa via.

 

Fechamento do espetáculo - Poema "Jandé Kañemiré" (Cantiga por Querendo o alto Deus).

Autoria: José de Anchieta. Tradução: P. Armando Cardoso (Teatro de Anchieta, 1977, p. 257-258).

 

 

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