25 Novembro 2022
Superiores regionais de várias comunidades religiosas da França realizam um encontro de formação sobre como destacar os “pequenos sinais” que podem levar a formas graves de abuso em suas comunidades.
A reportagem é de Christophe Henning, publicada por La Croix International, 25-11-2022. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
À luz da atual crise dos abusos sexuais que continua a abalar a Igreja Católica, cerca de 120 superiores e superioras de congregações religiosas na França iniciaram esforços para detectar melhor os “abusos cotidianos” que podem ser “pequenos sinais” de problemas mais graves na vida comunitária.
“Em tempos normais, os abusos se acumulam a ritmo de lesma. Os abusos da vida cotidiana são um gotejamento mortal”, observou a irmã dominicana Véronique Margron, presidente da Conferência dos Religiosos e Religiosas da França – CORREF, durante um dia de formação com os superiores e superioras de congregações apostólicas ou contemplativas nesta semana em Paris. “Pouco a pouco, pode-se estabelecer um domínio entre membros de uma mesma comunidade, um estrangulamento reforçado por expressões como ‘você deve carregar sua cruz’, ‘seja obediente’, ‘torne-se humilde’... que aprisionam as pessoas”, afirma Margron.
O silêncio de uma irmã, “o regateio” por uma nomeação, mas também pequenas palavras violentas ou diferenças culturais são situações que podem, de fato, levar ao abuso. “Entre o que não se fala e o que se fala demais, muitas vezes estamos no limite”, enfatizou uma das superioras. “Este é o desafio de falar com responsabilidade”, disse ela.
A irmã Isabelle Le Bourgeois, psicanalista e irmã Auxiliadora, juntamente com Cathy Leblanc, filósofa e especialista no universo concentracionista, conduziram o dia de treinamento. Eles descreveram a cadeia deletéria de eventos que começa com “posturas” adotadas em uma comunidade que podem chegar a constituir abuso.
“O sentimento de humilhação pode começar com pequenas coisas e destruir a humanidade em nós”, disse Leblanc. “Embora existam rotinas, horários que nos são impostos, é essencial que continuemos sendo os arquitetos do nosso cotidiano”, insistiu.
“O domínio nasce de um excesso, é um mecanismo que vai te permitir tecer sua teia para tomar o poder sobre o outro em nome da obediência”, explicou Le Bourgeois. Ela apontou que isso às vezes leva a abusos, violência ou agressão sexual mais sérios nos casos mais extremos.
Enquanto a formação enfocou os tipos de abusos que podem ameaçar a vida da comunidade, foram mais amplamente os obstáculos e, às vezes, as feridas da vida religiosa que foram abordadas nas discussões.
“Como conectamos o ‘eu’ e o grupo, a aspiração pessoal e a vida comunitária?”, questionou uma irmã cisterciense na formação. É uma questão que diz respeito à governança da comunidade, bem como aos “acidentes” relacionais que constituem os vários abusos da vida cotidiana.
Esses tipos comuns de abuso podem levar o perpetrador a empoderar o irmão ou a irmã alvo. Os religiosos identificaram alguns exemplos desse processo de controle em movimento: levar o outro à mentira, fazendo-o acreditar que é o “favorito”, ou – ao contrário – criticando-o continuamente...
“Mas o que pode ser feito quando um agressor e a pessoa abusada vivem sob o mesmo teto?”, perguntou um superior.
“Às vezes você tem que admitir que duas pessoas não podem viver juntas”, disse a irmã Le Bourgeois, a psicanalista. “Não fomos feitos para ficar em situações que machucam a nós mesmos ou aos outros”, ela insistiu.
Embora a análise desses abusos na vida cotidiana tenha sido aplicada em particular às comunidades religiosas, ela atinge naturalmente todas as realidades humanas.
Le Bourgeois disse que isso implica “estar consciente do nosso inconsciente”, seja alguém consagrado ou não, porque é uma “falta de clareza consigo mesmo que pode nos tornar vulneráveis”. Além disso, ela destacou que há também uma espécie de perfeccionismo ou “sede de ideal, que pode se tornar uma armadilha”.
Ela disse que todos esses são problemas que levam os líderes comunitários de volta à questão do discernimento vocacional e da formação. O dever de vigilância nas comunidades exige uma escuta, que não se destina apenas a identificar os riscos de deriva e abuso, mas também constitui um acolhimento do outro, para que cada um possa “crescer em liberdade”.
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“Um gotejamento mortal”: as ordens religiosas da França procuram cortar os abusos pela raiz - Instituto Humanitas Unisinos - IHU