Crise ambiental e climática e decrescimento demográfico no século XXI. Artigo de José Eustáquio Diniz Alves

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22 Novembro 2022

"O fato é que a humanidade precisa mudar o estilo de vida e o padrão de produção e consumo para evitar a possibilidade, cada vez mais provável, de um colapso sistêmico global."

O artigo é de José Eustáquio Diniz Alves, doutor em demografia e pesquisador de meio ambiente, publicado por EcoDebate, 21-11-2022.

Eis o artigo. 

“O futuro humano, inevitavelmente, será menor – menos pessoas, consumindo menos, em sociedades menos complexas. A maioria das pessoas está nervosa sobre como uma transformação tão dramática acontecerá” – Wes Jackson, Robert Jensen (2022)

Na semana passada o mundo chegou a 8 bilhões de habitantes, enquanto a COP27 discutia os efeitos da crise climática e ambiental sobre a população mundial. Porém, pouco foi debatido sobre a dinâmica demográfica e o padrão de consumo global.

O crescimento da população e da economia nos últimos 250 anos foi de tal ordem que degradou a maioria dos ecossistemas do Planeta, destruiu as florestas, provocou a perda de biodiversidade, poluiu e acidificou os oceanos, provocou erosão dos solos, expandiu os desertos e desestabilizou o clima que havia apresentado uma impressionante estabilidade no Holoceno. O período de maior crescimento das atividades humanas aconteceu após o fim da Segunda Guerra Mundial e é conhecido como a grande aceleração (MCNEILL, ENGELKE, 2014), o que gerou uma infinidade de mercadorias, a despeito da finitude do planeta O maior volume da produção e consumo de bens e serviços com que as atividades antrópicas ultrapassassem quatro das nove fronteiras planetárias, com forte potencial de desestabilizar o Sistema Terra (STEFFEN at al., 2015).

O impacto do crescimento econômico e demográfico influiu na sobrecarga ambiental e na elevação das emissões de carbono, que são vetores inequívocos do agravamento da crise climática e ambiental. Ao contrário do que opinam os céticos e negacionistas, o aumento das atividades humanas sobre o meio ambiente, principalmente nos últimos 70 anos, tem rompido os limites planetários. E, embora o aumento do volume global da produção de bens e serviços seja considerado o principal contribuidor da sobrecarga e o fator desestabilizador do Sistema Terra, não se pode desconsiderar a contribuição do crescimento demográfico para a ampliação do déficit ecológico global e para o aumento das emissões de CO2. Como mostraram Bongaarts e O’Neill (2018), o rápido crescimento populacional é um dos principais impulsionadores das emissões de gases de efeito estufa e a comunidade científica e as instituições multilaterais deveriam incorporar a análise da dinâmica demográfica e reconhecer a importância da defesa dos programas de saúde reprodutiva baseados em direitos.

A humanidade superou a capacidade de carga da Terra

O alto crescimento demográfico e econômico, em especial nas últimas sete décadas, fez a humanidade superar a capacidade de carga da Terra (REES, 2013). O instituto Global Footprint Network apresenta uma metodologia capaz de medir a resiliência do Planeta diante do crescimento das atividades antrópicas. São duas as medidas usadas para se avaliar este impacto humano sobre o meio ambiente e a disponibilidade de “capital natural” do mundo. A Pegada Ecológica serve para avaliar o impacto que o ser humano exerce sobre a biosfera e a Biocapacidade avalia o montante de terra e água, biologicamente produtivo, para prover bens e serviços do ecossistema à demanda humana por consumo, sendo equivalente à capacidade de carga do Planeta.

A Figura 1 mostra que em 1961 a Biocapacidade do Planeta era de 9,6 bilhões de hectares globais (gha) e a Pegada Ecológica era de 7 bilhões de gha, havendo um superávit ambiental de 37%. Por volta de 1970, a Pegada Ecológica superou a Biocapacidade e o mundo passou a conviver com um déficit ambiental crescente. Em 2018 (últimos dados disponíveis) a Pegada Ecológica global chegou a 21,2 bilhões de gha, enquanto a Biocapacidade ficou em 12,1 bilhões de gha. Por conseguinte, o superávit de 2,6 bilhões de gha, de 1961, se converteu em um déficit ambiental de 9,1 bilhões de gha em 2018 (ou 75%). A humanidade está consumindo 1,75 Planetas. Evidentemente, são as parcelas mais ricas que mais contribuem para déficit ambiental. Mas o aumento da Pegada Ecológica se espalha para todas as regiões do mundo na medida em que há aumento da população e da renda per capita.

 

Evidentemente, são as parcelas mais ricas que mais contribuem para déficit ambiental. Mas o aumento da Pegada Ecológica se espalha para todas as regiões do mundo na medida em que há aumento da população e da renda per capita, como acontece em países como a China, a Índia, a Indonésia, Nigéria e tantos outros.

Crescimento da população e aquecimento global

Não existe população sem consumo e nem consumo sem população. Para sobreviver no mundo moderno, além das necessidades básicas, os habitantes da Terra precisam de moradia, transporte, equipamentos domésticos (fogão, geladeira, móveis, televisão, rádio, telefone, computador, etc.) serviços de saúde, educação, telecomunicações, lazer, turismo, etc. Todas as pessoas precisam de uma porção mínima de alimento e não é simples produzir comida para saciar o apetite de 8 bilhões de habitantes.

O relatório da ONU, “The Global Land Outlook” (UNCCD, 27/04/2022), registra que 52% do total das terras agricultáveis estão degradas e, globalmente, os sistemas alimentares são responsáveis ​​por 70% do uso da água doce, 80% do desmatamento, 29% das emissões de gases de efeito estufa, 70% da perda de biodiversidade terrestre e 50% da perda de biodiversidade marinha. A forma como atualmente recursos naturais são administrados está ameaçando a saúde e a sobrevivência contínua de muitas espécies na Terra, incluindo a nossa. Cerca de US$ 44 trilhões de produção econômica – mais da metade do PIB anual global – é moderada ou altamente dependente do capital natural. O fracasso agrícola será também um fracasso de toda a economia global.

O relatório do IPCC, “Climate Change and Land”, publicado em agosto de 2019, indica que os solos têm se aquecido duas vezes mais rápido que a atmosfera do Planeta. Mais de 70% da terra sem gelo já é moldada pela atividade humana. À medida que as árvores são derrubadas e as fazendas tomam seu lugar, essa terra explorada pelas atividades antrópicas emite cerca de um quarto da poluição global provocada por gases do efeito estufa a cada ano, incluindo 13% de dióxido de carbono e 44% do metano. Segundo o IPCC, o aumento da produção e consumo de alimentos contribuiu para o aumento das emissões líquidas de gases de efeito estufa (GEE), perda de ecossistemas naturais e diminuição da biodiversidade. O sistema alimentar responde por cerca de 30% de todas as emissões de GEE e 80% do desmatamento global.

Os gráficos abaixo mostram a inequívoca correlação entre o crescimento da população mundial e a elevação da temperatura global. Fica claro (no painel da esquerda) que o aumento da temperatura acompanha o aumento do número de habitantes. A reta de tendência linear entre as duas variáveis (painel da direita), indica que 86,9% da variabilidade da temperatura global está associada, diretamente, ao crescimento demográfico ao longo dos anos de 1880 e 2018.

 

Considerando a correlação entre o crescimento da população mundial e a o aumento das emissões globais de CO2, os gráficos abaixo mostram, de maneira ainda mais impactante, a enorme correlação entre o crescimento demográfico e o aumento das emissões globais de CO2. A reta de tendência linear (painel da direita), indica que significativos 99% da variabilidade da emissão global de CO2 está associada diretamente à variação da população mundial ao longo dos anos de 1880 e 2018.

 

Para os “céticos da demografia” – aquelas pessoas que se recusam a considerar os impactos negativos de um elevado volume de habitantes (“mundo cheio”) sobre o meio ambiente – os gráficos acima servem para mostrar que o ritmo ascendente de variação populacional importa, impacta e tem uma correlação enorme com a crise climática. Evidentemente, a dinâmica demográfica não atua no vácuo, pois a resultante do aumento do número de habitantes sobre as mudanças climáticas acontece com o incremento do padrão de consumo.

O decrescimento demoeconômico no século XXI

A discussão populacional no mundo é muito influenciada pelas formulações de Thomas Malthus no “An Essay on the Principle of Population, as it Affects the Future Improvement of Society with Remarks on the Speculations of Mr. Godwin, M. Condorcet, and Other Writers”, de 1798. Malthus que era contra os métodos de regulação da fecundidade, utilizou o argumento da tendência de um crescimento populacional incontrolável para justificar a pobreza e a necessidade de manutenção de um salário de subsistência. Infelizmente Malthus ficou muito mais conhecido do que o Marquês de Condorcet e William Godwin, autores que possuíam uma visão muito mais próxima da abordagem da transição demográfica. Como mostraram MARTINEZ-ALIER e MASJUAN (2004) já existia no século XIX um movimento progressista que acreditava que o ritmo de crescimento da população poderia ser reduzido com decisões voluntárias sobre a reprodução. Em 1848, o eminente economista John Stuart Mill, defendeu a perspectiva do fim do crescimento econômico e demográfico e a ideia do Estado Estacionário.

Como as atividades antrópicas já geram uma sobrecarga da Terra, o Estado Estacionário não é suficiente para colocar a Pegada Ecológica em equilíbrio com a Biocapacidade. O mundo hoje precisa romper com a cultura do crescimento e começar a planejar o decrescimento econômico como mostrou Jason Hickel, no livro “Less is more: Degrowth Will Save the World” (2021). Tem crescido as pesquisas, as publicações e as mobilizações a favor do decrescimento (KALLIS, G. et al. 2018). Mas o decrescimento econômico sem o decrescimento demográfico pode provocar a redução da renda per capita e ter efeitos limitados para a redução da Pegada Ecológica e das emissões de CO2 (ALVES, 2022). Pela primeira vez, a Divisão de População da ONU apresenta uma projeção média com início do decrescimento demográfico no final do atual século.

Sem dúvida, decrescimento demográfico provocado pela redução das taxas de fecundidade gera uma mudança da estrutura etária que, em um primeiro momento, é favorável ao desenvolvimento humano pois aumenta a proporção de pessoas em idade ativa, mas, em um segundo momento, gera um envelhecimento populacional que gera muitos receios com a sustentabilidade dos sistemas previdenciários. Mas o envelhecimento populacional pode se tornar uma oportunidade se os países aproveitarem o segundo dividendo demográfico (MASON, LEE, 2006) ou o terceiro dividendo demográfico (OGAWA et al. 2021).

O fato é que a humanidade precisa mudar o estilo de vida e o padrão de produção e consumo para evitar a possibilidade, cada vez mais provável, de um colapso sistêmico global. É impossível manter o crescimento demoeconômico do Antropoceno quando o sistema produtivo e o padrão de consumo geram, ininterruptamente, um fluxo metabólico entrópico. Somente o decrescimento demográfico e econômico será capaz de garantir bem-estar humano e ambiental.

Referências

ALVES, JED. Crescimento demoeconômico no Antropoceno e negacionismo demográfico, Liinc em Revista, Rio de Janeiro, v. 18, n. 1, e5942, maio 2022. Disponível aqui.

BONGAARTS, J. O’NEILL, B. Global warming policy: Is population left out in the cold?, Science 361 (6403), 650-652, 2018. Disponível aqui.

HICKEL, J. Less is more: how degrowth will save the world, Penguin Random House, London, 2021.

KALLIS, G. et al. Research on degrowth. Annu Rev Environ Resour, 43: 291-31, 2018.

MARTINEZ-ALIER, Joan, MASJUAN, Eduard. Neo-Malthusianism in the Early 20th Century, Universitat Autònoma de Barcelona, International Society for Ecological Economics, Montréal 11-15 July 2004. Disponível aqui.

IPCC. Climate Change and Land: An IPCC Special Report on climate change, desertification, land degradation, sustainable land management, food security, and greenhouse gas fluxes in terrestrial ecosystems, 08/08/2019.

MASON, A, R. D. LEE. “Reform and Support Systems for the Elderly in Developing Countries: Capturing the Second Demographic Dividend.” GENUS, 62(2), p. 11-35, 2006.

MCNEILL J. R., ENGELKE, P. The Great Acceleration: An Environmental History of the Anthropocene since 1945. Cambridge: Harvard University Press, 2014. Disponível aqui.

OGAWA et al. Population Aging and the Three Demographic Dividends in Asia. Asian Development Review, v. 38, n. 1, p. 32-67, 2021. Disponível aqui.

REES, W.E. Carrying Capacity, Globalisation, and the Unsustainable Entanglement of Nations. In LAWN, P. (ed.), Globalisation, Economic Transition and the Environment: Forging a Path to Sustainable Development. London, 2013.

STEFFEN et al. Planetary boundaries: Guiding human development on a changing planet, SCIENCE, v. 347, 6223, 15 Jan 2015. Disponível aqui.

STUART-MILL, John. Principles of Political Economy with Some of their Applications to Social Philosophy. London, 1848.

UNCCD. United Nations Convention to Combat Desertification. The Global Land Outlook, second edition. UNCCD, Bonn, 2022.

JACKSON, Wes; JENSEN, Robert. An Inconvenient Apocalypse Environmental Collapse: Climate Crisis, and the Fate of Humanity, 2022. Disponível aqui.

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