17 Julho 2023
Celebrando a memória de Luigi Bettazzi, falecido no dia 16 de julho de 2023, republicamos a entrevista publicada no dia 13 de outubro de 2022.
Luigi Bettazzi, foi o único bispo italiano que assinou o Pacto das Catacumbas.
Há 60 anos da abertura do Concílio, fala Luigi Bettazzi, bispo emérito de Ivrea, na Itália. “Eu, jovem prelado, me encontrei imerso no episcopado mundial. Logo me dei conta da liberdade do debate. Alemães e holandeses eram os mais organizados”.
A reportagem é de Riccardo Maccioni, publicada por Avvenire, 11-10-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Quase sempre são as estatísticas que definem a grandeza de um evento: quantos participantes e de quais países, os jornalistas credenciados, os litros de água que serão bebidos. No imaginário coletivo, no coração das pessoas comuns, por outro lado, o dia 11 de outubro de 1962, dia de abertura do Concílio Vaticano II, é marcado sobretudo pelas palavras de João XXII, pelo “discurso da lua”.
Aquele convite muito terno para levar a carícia do papa às crianças e o incentivo a dizer uma palavra boa a quem se encontrava na tristeza são uma herança transmitida de pais para filhos, que também é conhecida por muitos jovens de hoje. Uma mensagem maravilhosa, certamente, mas que ao menos deveria ser relacionada ao discurso “Gaudet Mater Ecclesiae”, no qual, inaugurando a cúpula, o pontífice enfatizava que a Igreja, ao combater os erros, “prefere usar o remédio da misericórdia em vez de abraçar as armas do rigor”.
Uma virada, o anúncio de uma mudança profunda que talvez nem todos os Padres conciliares se deram conta. Naquela época, Dom Luigi Bettazzi, bispo emérito de Ivrea, ex-presidente da Pax Christi, tinha 39 anos. Ele participaria diretamente do Concílio na segunda sessão.
“O dia 11 de outubro de 1962 – explica o prelado que completará 99 anos em 26 de novembro – foi sobretudo um dia de folclore, com mais de 2.000 bispos do mundo que entravam em procissão em São Pedro, paramentados das formas mais vistosas (particularmente os de rito oriental). Pensava-se que, em pouco tempo, seriam aprovadas as dezenas de documentos preparados pelas respectivas comissões. Eu mesmo estava convencido disso. Nos últimos tempos, por solicitação do Papa João XXIII ao cardeal arcebispo de Bolonha, Giacomo Lercaro, de inserir alguns de seus padres nas comissões preparatórias, eu me encontrei na Comissão dos Seminários, na qual os especialistas (incluindo o famoso padre dominicano francês Congar) haviam preparado uma dezena de documentos. E me dei conta de que se tratava de problemas quase óbvios, por exemplo a preeminência da teologia de São Tomás de Aquino ou a severidade mais intransigente no âmbito sexual.”
O senhor entrou no Concílio durante a segunda sessão, em 29 de setembro de 1963, uma semana antes de 4 de outubro, quando seria consagrado bispo auxiliar de Bolonha. Pastor muito jovem para os parâmetros de hoje.
Sim, eu entrei no Concílio quando estava prestes a completar 40 anos (em âmbito missionário, havia alguns bispos até um pouco mais jovens; na Europa, geralmente alguém se tornava bispo depois dos 50 anos). A assembleia estava reunida em longos bancos em degraus no corredor central da basílica, com o lugar designado de acordo com a data da nomeação episcopal: junto ao altar, os cardeais e os patriarcas, depois, lá embaixo, perto da entrada, os arcebispos e os bispos; obviamente, no início, eu estava entre os últimos. Encontrei-me imerso no episcopado mundial, com bispos autóctones da África, da Ásia, da América Latina, e entendi por que a Igreja se chamava católica, ou seja, universal, enquanto pensávamos quase que a Igreja era Roma com a anexação de todo o mundo.
E logo me dei conta da liberdade com que se discutia nos corredores laterais ao longo das pausas (havia também dois bares sem álcool), mas também no centro, durante os debates sobre os documentos que iam sendo distribuídos aos poucos. Foi o próprio Papa João XXIII quem encorajou essa liberdade de discussão, adiando em alguns dias a votação para as comissões dos bispos sobre os vários assuntos, contra aquelas propostas pela secretaria – na prática, pela Cúria vaticana – e adiando com autoridade a nova feitura do documento sobre a Revelação, rejeitado por uma maioria pequena demais para ser aceita pelas normas impostas à discussão. Percebemos também que as discussões eram geralmente iniciadas pelos bispos mais organizados, como os alemães e os holandeses, acostumados a dialogar com os protestantes, ou os franceses e os belgas, acostumados a se mover em ambientes de laicidade. Os norte-americanos insistiam na liberdade religiosa, e os sul-americanos insistiam em uma Igreja atenta aos pobres.
Acima de tudo, o que restou do Concílio? Estou pensando obviamente nas constituições, em particular.
Dos 16 documentos que foram emitidos, mais do que as três declarações e os nove decretos, são precisamente as constituições que marcam a novidade, mas ainda insuficiente, na vida da Igreja. Como se sabe, elas são sobre a Divina Liturgia, sobre a Divina Revelação, sobre a Igreja em si mesma e sobre a Igreja no mundo contemporâneo. Assim, a Liturgia não é mais vista como o conjunto das normas para o culto, mas como a orientação para a oração comum dos cristãos, com a língua de cada povo e uma maior compreensão e simplificação dos ritos, mas – é preciso dizer – sem uma conversão mais ampla de mentalidade, razão pela qual ainda hoje se gostaria, aqui e acolá, de voltar às antigas fórmulas, como se fossem mais devotas e convincentes.
Assim, a Bíblia, cuja leitura era desaconselhada para cristãos individuais pelo risco de uma excessiva familiaridade com os protestantes, foi posta nas mãos de todos os batizados, mas sempre com as hesitações de quem sabe que não é fácil compreender o que foi escrito milênios atrás, com uma mentalidade muito diferente da nossa. A Constituição sobre a Igreja revoluciona seu conceito: ela é encarada em primeiro lugar não mais como uma “sociedade perfeita” fundada na hierarquia, mas como povo de Deus, no qual cada batizado é parte importante, enquanto a hierarquia, embora caracterizada pelo sacramento da Ordem, está ao serviço da vida da comunidade cristã, nas experiências individuais e em sua coletividade.
A Gaudium et spes, sobre a Igreja no mundo contemporâneo, é, como todos sabem, a constituição pastoral. Um texto certamente ligado ao tempo histórico em que foi redigido, mas que também permanece muito atual. Por exemplo, em relação ao estilo de ser uma comunidade centrada no Evangelho. Ou na referência à necessidade de dialogar de modo abrangente com a cultura contemporânea, a partir da antropologia.
Desde o início, o documento declara que as alegrias e as esperanças (em latim, “gaudium et spes”), “as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo; e não há realidade alguma verdadeiramente humana que não encontre eco no seu coração”. Toda a constituição continua expondo a doutrina do Evangelho como uma confirmação e um desenvolvimento daquilo que é “genuinamente humano”. Depois de refletir sobre a dignidade da pessoa humana, sobre a comunidade humana e sua atividade, ele passa por alguns exemplos, do matrimônio e da família à cultura, da vida econômica à política, da comunidade internacional à paz.
E aqui alguns bispos (por exemplo o cardeal Feltin, arcebispo de Paris, e o cardeal Alfrink de Utrecht) pediam a condenação da guerra, de todas as guerras (que, em tempos atômicos, eram uma loucura, como o Papa João XXIII havia declarado na Pacem in terris), com a resistência, por exemplo, dos bispos dos Estados Unidos (então engajados na guerra anticomunista no Vietnã) que suplicavam: “Não apunhalem pelas costas os nossos jovens que estão defendendo a civilização cristã no Extremo Oriente”. Mas, nessa constituição, há a única condenação (ao contrário dos anátemas dos outros Concílios contra os erros da época), e é aquela, no número 80, contra a “guerra total”, como hoje é toda guerra, de fato: todo ato de guerra que visa indiscriminadamente à destruição de cidades inteiras ou de vastas regiões e de seus habitantes é um crime contra Deus e contra a própria humanidade, e deve ser condenado com firmeza e sem hesitação.
Congar dizia que o Concílio seria plenamente compreendido 50 anos depois. Hoje chegamos lá.
É verdade que, depois de 50 anos, a pastoral do Papa Francisco relembra o Concílio. A sinodalidade se refere à colegialidade da Lumen gentium, ampliando a responsabilidade dos bispos com o papa com a de cada batizado pela vida da Igreja, enquanto a atenção aos pobres e aos descartados do mundo realiza aquela Igreja do pobres iniciada no Concílio, mas que o Papa Paulo VI freava, temendo interpretações políticas pela Guerra Fria então em curso entre os Estados Unidos e a URSS, prometendo que trataria disso em uma encíclica, que foi a Populorum progressio de 1967, que, aliás, trata da paz, mais do que da pobreza.
O senhor aderiu ao Pacto das Catacumbas. Qual a inspiração dele para sua vida? E o senhor fortaleceu laços com os outros signatários?
Como o papa hesitava em tratar da Igreja dos pobres, o movimento em questão, com tinha a sua sede em Roma no Colégio Belga, perto do fim do Concílio, em 16 de novembro de 1965, promoveu um encontro livre dos bispos nas Catacumbas de Domitilla. Lá se encontraram cerca de 40 bispos, que ocasionalmente tomaram conhecimento da iniciativa. O bispo belga Himmer de Tournai presidiu a Eucaristia e no fim apresentou um documento segundo o qual cada bispo se comprometia exemplarmente a uma vida mais pobre na moradia e nos meios de transporte, a uma pastoral mais próxima dos trabalhadores manuais e aos setores mais marginalizados, e a fazer com que as finanças suas e diocesanas fossem administradas por leigos de confiança. Quarenta e dois bispos assinaram (casualmente, eu era o único italiano) e nos comprometemos a fazer com que bispos amigos assinassem, de modo que foram levadas mais de 500 assinaturas ao papa. Não nos encontramos mais, senão com os amigos de antes. Eu estava no grupo de cerca de 20 bispos, de todas as partes do mundo, inspirados pelo irmão Charles De Foucauld, hoje santo.
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O Vaticano II que eu vivi. Entrevista com Luigi Bettazzi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU