30 Junho 2022
Ainhoa Ruiz Benedicto é doutora em paz, conflitos e desenvolvimento pela Universidade Jaime I [Espanha], com uma tese sobre a militarização de fronteiras. Atualmente, é pesquisadora no Centro Delàs de Estudos pela Paz e coordenadora de projetos.
A entrevista é de Dani Domínguez, publicada por La Marea, 28-06-2022. A tradução é do Cepat.
Qual é a estratégia da OTAN em relação aos migrantes?
Na verdade, não existe uma estratégia concreta. A abordagem das migrações faz parte de um conjunto que foi aprovado em 2010, conhecido como o Conceito Estratégico de Lisboa. É aí que surgem e se ampliam novas ameaças à segurança que saem do quadro das ameaças militares tradicionais, como costumam ser as invasões territoriais pela força militar. Ao flexibilizar tanto o conceito de segurança, provoca-se uma desregulamentação da guerra, não ficando claro o que exatamente enfrentamos.
E é aí que se encontram os deslocamentos ou movimentos de pessoas forçados. No entanto, não se fala diretamente disso, ao contrário, oculta-se atrás de conceitos como tráfico de pessoas. Mas lutando contra isto, implanta-se ferramentas militares com o objetivo de parar e interceptar os fluxos migratórios.
Quais são as consequências disso? Em que se traduz a narrativa da segurança?
Isso faz com que o tratamento das migrações passe de ferramentas humanitárias a militares. Faz com que a OTAN seja introduzida para abordar uma problemática social bastante crítica de nosso tempo e que deveria ser abordada com outras ferramentas, mas que é abordada com instrumentos e mentalidade militares. As consequências não são apenas o uso da força, mas a contradição em identificar as pessoas migrantes como sujeitos em perigo e sujeitos perigosos, ao mesmo tempo.
A União Europeia, por parte da Alemanha, Turquia e Grécia, que são membros da Aliança, foi a que, em 2016, pediu à OTAN que agisse diante da mal denominada crise migratória. Isto levou a OTAN a fazer coisas que a União Europeia não pode fazer, como devolver os migrantes, independentemente de onde estiverem.
Ou seja, se a União Europeia encontrar um barco nas águas da Grécia, tem a obrigação de levá-lo para a costa da Grécia. A OTAN pode levá-lo para qualquer outro Estado membro, e o que faz é devolver os migrantes à Turquia. Todos conhecemos as normas da Turquia em relação ao refúgio, que não reconhecem os refugiados da Síria ou do Iraque. A União Europeia está ciente de que está deixando as pessoas totalmente desprotegidas.
Em um artigo publicado recentemente, você afirma que “a OTAN está longe de ser um instrumento gerador de estabilidade e segurança em contextos complexos”. Por quê?
Porque temos dados incipientes sobre como fica um país antes e depois de uma intervenção da OTAN. É o caso da Líbia, que antes da intervenção da OTAN tinha um índice de desenvolvimento humano consideravelmente alto para a região e acabou despencando, após a intervenção. A isso é preciso somar o aumento considerável de pessoas deslocadas à força, algo que também ocorreu no Iraque após a invasão.
O conceito de segurança humana e de paz positiva não é só que pare de haver guerra e violência física. Você pode viver em uma contínua insegurança, sem que haja guerra. E foi isso que aconteceu após a intervenção da OTAN na Líbia e no Iraque. Enquanto de fora o cidadão pode pensar que nesses países não há mais guerra e está tudo bem, na verdade, a situação pode continuar sendo insegura ou pior em todos os níveis. Por isso, dizemos que a OTAN não gera segurança, pois os dados mostram que a segurança e a estabilidade não melhoram e os países levam décadas para se recuperar.
A OTAN diz que defende os valores democráticos, mas sabemos que há muitos países com uma democracia muito duvidosa ou ausência total, como a Arábia Saudita, onde a OTAN não intervém. Portanto, existe uma agenda específica para que a OTAN atue em alguns países e em outros não, o que depende de determinados interesses.
O massacre de Melilla está relacionado a esta narrativa?
No mínimo, está relacionado a uma abordagem das migrações que nasce nos anos 1990, que é quando começam a ser construídos muros e aplicada uma narrativa da segurança. Cai o Muro de Berlim, mas começam a ser construído mais de 57 muros fronteiriços. Há uma intenção de parar os fluxos migratórios ao invés de entender por que acontecem e agir.
Os dados do ACNUR mostram que as pessoas deslocadas estão aumentando, por qualquer motivo, e isso não vai parar de crescer. E em vez de encontrar soluções para evitar que as pessoas tenham que se deslocar à força, estamos impedindo que entrem em nossa fortaleza de privilegiados.
Se tivéssemos outra forma de analisar, entenderíamos que uma das muitas razões pelas quais um senegalês foge de seu país é porque a União Europeia está permitindo que empresas europeias pesquem em suas águas. Estamos deixando-os sem trabalho e sem recursos. Por que não analisamos essas causas complexas? Porque simplesmente queremos parar os fluxos migratórios sem nos perguntarmos nada, porque a resposta traria mal-estar sobre como vivemos e mantemos nosso meio de vida.
Como avalia que essa narrativa da segurança afeta os cidadãos?
Aqueles que construíram a chamada “teoria da securitização”, precisamente a definiam como a construção e aceitação de novas ameaças. No momento em que você consegue implementar na mentalidade social que algo é uma ameaça, como é o caso das migrações, pode implementar políticas sem que as pessoas se escandalizem. É algo que vem sendo trabalhado há mais de 30 anos e agora você ouve as pessoas dizendo que não podemos acolher todos os migrantes. Ficamos aí, nesse discurso, que só serve para abonar e reforçar os discursos da ultradireita.
O problema é que os outros partidos não estão dispostos a lutar contra esse discurso e acabam comprando-o. Muitos partidos que não têm discursos antimigratórios ou racistas, por motivos eleitorais, os abraçam. E é assim que triunfa a narrativa antimigratória. Mas, na verdade, não são uma ameaça ao nosso modo de vida, ao contrário, o nosso é uma ameaça ao deles.
Considera que a OTAN está se preparando para um crescimento das migrações provenientes das consequências da crise climática: secas, fomes...?
Está em sua agenda, e depois do que aconteceu em Melilla, e por ser realizada em Madri [a Cúpula da OTAN], pode ganhar força. Após a invasão da Ucrânia, pensávamos que a OTAN revisaria o conceito de guerra tradicional, de invasão territorial de um país por métodos militares. Mas que isso aconteça justamente na Espanha, quando a cúpula acontece em Madri, muito possivelmente fará com que o tema das migrações apareça na agenda.
O problema é que a OTAN, como organização militar, aborda os conflitos globais assim: pela via militar. Não são uma organização de resgate, mas autorizada a usar a força e com meios para isso. Quando um Estado membro pede a intervenção da OTAN, então, fará o uso da força. Cada vez se dissolve mais a possibilidade de abordar as migrações a partir de uma perspectiva humanitária.
A OTAN seguirá criminalizando os migrantes e os tratando como uma ameaça. Por isso não falam de migrações, mas de tráfico de pessoas, o que facilita esse modelo de ação. Mas, ao final, afeta e corrói os direitos das pessoas que migram, mesmo que sejam as vítimas.
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“A OTAN seguirá criminalizando os migrantes e os tratando como uma ameaça.” Entrevista com Ainhoa Ruiz - Instituto Humanitas Unisinos - IHU