01 Junho 2022
Michael Marder (Moscou, 1980) responde a cada pergunta com o zelo de quem procura verdadeiras respostas no oceano da incerteza. Conversamos com o pensador e pesquisador do Ikerbasque, autor de El vertedero filosófico (Ned Ediciones) sobre a importância do mundo vegetal no pensamento e na existência humana, o desafio da descarbonização e o papel da filosofia nos atuais desafios da humanidade.
A entrevista é de David Lorenzo Cardiel, publicada por Ethic, 25-05-2022. A tradução é do Cepat.
O livro concentra o seu olhar nos rincões da metafísica, ao mesmo tempo em que aborda a questão ambiental. Em que consiste o seu conceito de “pensamento vegetal”?
É crucial destacar que as questões ambientais persistem nos rincões obscuros e nas margens da metafísica ocidental. E isso, necessariamente, não acontece por acaso. Em seu conjunto, a filosofia ocidental com sua aspiração a uma universalidade abstrata representa uma completa separação do lugar, da incrustação no meio da vida, de tudo o que vê como um mero obstáculo no caminho para a abstração. As plantas, por outro lado, vivem em unidade dinâmica e comungam com os lugares de seu crescimento, em simbiose com fungos e bactérias, insetos e raízes de outras plantas.
Neste e em muitos outros aspectos, as plantas são as antípodas da metafísica ocidental, que se consolida por meio de sua exclusão e por imaginar o mundo da abstração sobre um modelo implícito antiplanta. Meu conceito de pensamento vegetal tenta recuperar esse lado suprimido. Em última instância, mostro que tanto o pensamento como a vida que ainda têm futuro, nesses tempos sombrios, são possíveis somente sobre esta base.
Em 2021, você publicou na Espanha seu livro ‘Chernóbil Herbarium’ (Ned Ediciones), onde combina reflexões sobre a física nuclear e o mundo vegetal. Duas dimensões da realidade que parecem se opor. Quais foram suas impressões de Chernobyl e de sua paisagem? Até que ponto considera que o ser humano é responsável pelo que acontece com as espécies de seres vivos com as quais convivemos?
Minha experiência com a radiação de Chernobyl foi indireta. Quando eu era criança, passei quase dois meses em uma zona de chuva radioativa, imediatamente após o acidente. A mobilidade das nuvens radioativas mostra que Chernobyl é um lugar que em si foi deslocado, que se expandiu para fora de sua localização limitada e viajou devido aos movimentos atmosféricos das massas de ar. Extraordinariamente móvel, o local também foi deslocado no sentido de que se tornou inapropriado para a habitabilidade humana: já não era (e ainda é) aberto, receptivo e acolhedor para os seres humanos.
Com a invocação da paisagem de Chernobyl, provavelmente esteja se referindo a estruturas abandonadas, frequentemente cobertas de vegetação, que todos vemos em fotografias e vídeos. Estes são, sem dúvida, os resultados do deslocamento radical, tanto em sua dimensão ôntica como ontológica.
É possível dizer que o local permaneceu hospitaleiro para a flora e a fauna que retornaram, após a partida dos seres humanos. Mas esse retorno pode durar muito pouco, dado que a radiação interfere nas frágeis comunidades de decompositores, fungos e bactérias que vivem no solo e “digerem” a matéria orgânica. Sem a continuidade de sua atividade, o solo de Chernobyl não será renovado e seu potencial para sustentar o crescimento futuro se verá drasticamente minado.
Em que aspectos a forma de nos relacionarmos com o meio ambiente mudou, a partir do desenvolvimento da física nuclear?
Não mudou em absoluto, infelizmente. Isso é o que é perigoso no desenvolvimento da ciência e da tecnologia: as capacidades criativas e destrutivas que colocam em nossas mãos não seguem o ritmo do amadurecimento coletivo humano, consistente no espírito de cooperação. Política, econômica e psicologicamente, a humanidade não foi preparada para receber as aplicações práticas da física nuclear, envolvendo o “átomo pacífico” no coração da energia nuclear e das armas atômicas.
Onde se situa a biodiversidade em dramas humanos como o de Chernobyl? As plantas são sobreviventes da fragilidade da vida e de suas circunstâncias (mesmo quando se revelam adversas)?
As plantas são as sobreviventes mais hábeis. Sua capacidade de adaptação a condições adversas é notável e, se você pensar bem, tiveram muito mais tempo na escala evolutiva para praticar e aperfeiçoar essas habilidades do que os humanos. Uma parte desta força flexível está na diversidade: as plantas sempre a sustentam e promovem, ao contrário dos seres humanos.
O surgimento da agricultura já foi um grande ataque à biodiversidade vegetal e de outros tipos. A agricultura industrial e a proliferação de monoculturas são uma continuação intensificada desta tendência. Como resultado, os cultivos são mais propensos a doenças parasitárias, sem mencionar que a agricultura industrial e as monoculturas esgotam o solo. Nesses fenômenos muito concretos, vejo as consequências da metafísica ocidental: um mundo moldado sobre o ideal da universalidade abstrata é o mundo dos seres homogeneizados, carentes de diversidade.
Então, que aspectos podemos aprender do mundo vegetal?
Tudo: seus modos simbióticos de existência, sua relação com os lugares de crescimento e vida, a forma não oposicionista como abordam os desafios (muitas vezes, tornando-os vantajosos), seus métodos não violentos para obter energia, sua relação com o futuro – repondo o solo para um crescimento contínuo –, sua mutabilidade...
Poderíamos falar do que eu chamo de pedagogias vegetais ad infinitum. Embora ainda não seja tarde demais, devemos aprender com as plantas, já que, caso contrário, a sobrevivência da espécie humana e do planeta não estará garantida.
Thomas Hobbes acreditava que o homem é um lobo para o homem. Ainda temos margem para melhorar? Ou estamos, como espécie, condenados à autodestruição?
A humanidade não está aprendendo nada da experiência coletiva. A guerra continua sendo uma ferramenta à disposição dos Estados soberanos e, consequentemente, a política internacional tem o mesmo cenário da época de Hobbes, apesar da existência de instituições como a Organização das Nações Unidas.
Um dos maiores problemas é a capacidade destrutiva que pode ser desencadeada em uma guerra termonuclear. Vemos armas nucleares exibidas como um brinquedo ameaçador, em uma espécie de chantagem internacional, por líderes políticos: de Kim Jong-un a Vladimir Putin. Ao mesmo tempo, ainda me apego às intuições dos filósofos existencialistas sobre o próprio ser do ser humano como nada determinado, como cheio de possibilidades até o próprio fim (individual ou coletivo).
Não obstante, essas possibilidades também são indeterminadas, para o bem ou para o mal. Por mais estranho que pareça, a sensação de fatalidade está fora de lugar, mesmo e especialmente em um momento em que a desesperança se aprofunda e se amplia. Já temos profetas da fatalidade suficientes. O que precisamos é de um pessimismo saudável, que não seja paralisante, nem niilista. Penso que somente com base em tal pessimismo pode florescer uma nova esperança.
Seu ensaio ‘El vertedero filosófico’ (Ned Ediciones) se soma à sua extensa obra. Nele, reflete sobre o conceito de ‘despejo’, sobre o descartável. No plano mais filosófico de nossa existência, em que isto nos situa?
A ideia é que o despejo e a descarte, atualmente, são muito mais do que comportamentos. Ao contrário, minha sugestão neste livro é que despejo pode ser uma palavra apropriada para se referir a si mesmo no século XXI.
Dado que a realidade do despejo é ontológica, impregna todos os aspectos de nossa existência, do mercado de trabalho às relações interpessoais. Do despejo de informações que se acumula sobre nós aos microplásticos e agrotóxicos que ingerimos. Da atmosfera e os oceanos remodelados em seu caráter elementar à poluição industrial em massa.
Também a poluição sensorial que nos impede de apreciar paisagens, sons ou sabores mais sutis. Ou seja, a extensão total do despejo faz com que ninguém esteja isento dele. Mas em vez de buscar as ilhas de pureza virginal e intacta, devemos reconhecer esse dado ontológico e trabalhar com e através dele, para remodelá-lo por dentro.
Também fala do homem despejador. Em que consiste este conceito?
A mente é inseparável do corpo, e a unidade mente-corpo é inseparável de seu ambiente. Por isso, a poluição em massa se torna tão onipresente do ponto de vista filosófico: os microplásticos que ingerimos não se alojam apenas nos tecidos de nosso corpo, provocando todos os tipos de doenças, mas também afetam a mente e o pensamento. O CO2, os agrotóxicos e outras substâncias nocivas que liberamos no mundo exterior também acabam dentro de nós.
Isso significa que a visão do ser humano como sujeito ativo, manipulando a natureza do objeto, não se sustenta. Ao queimar o mundo, ao despejar quantidades incalculáveis de materiais não decomponíveis no meio ambiente, descartamos a nós mesmos e o futuro das gerações de seres humanos e não humanos por vir. Nesse sentido, nós, descartadores, eventualmente, fazemos a nós mesmos o que infligimos aos outros.
Existe algum legado do mundo do ‘fast food’ em todos os níveis da sociedade?
Se você considera que o mundo da comida rápida é o mundo do lixão, então, a questão do legado é muito complicada. O despejo cresce em grande parte graças à não decomposição do que é amontoado nele, e assim emerge como um gigantesco monumento em escala planetária. A época geológica do Antropoceno, quando os dejetos indecomponíveis e a poluição formaram uma das crostas terrestres, é outro nome para essa monumentalização, que é, suponho, o legado ao qual você se refere.
Concretamente, no que diz respeito à comida rápida (para além do contexto alimentar habitual, embora neste contexto continue sendo relevante: basta pensar nos hambúrgueres das redes de fast food que conservam seus aspectos originais anos depois de fabricados), sua solidez é inversamente proporcional às taxas de decomposição: a comida rápida está sujeita a digestões lentas, a desequilíbrios metabólicos em todas as escalas da existência, das fisiologias de nossa digestão ao metabolismo planetário.
Esse desajuste de escalas de tempo me preocupa. Um só caso de beber em um copo de espuma de poliestireno, é seguido por séculos de decadência, uma centelha de ignição, ativando a energia dos combustíveis fósseis, contrasta com os milhões de anos que a matéria vegetal e animal levou para petrificar, liquefazer ou gaseificar e os séculos de estragos que o aquecimento global resultante causará na Terra.
Outro momento interessante de ‘El vertedero filosófico’ é quando você fala a respeito da ‘toxicidade ontológica’. O que quer dizer?
Primeiro, precisamos entender exatamente o que significa toxicidade em contraste com, digamos, o veneno. Um veneno, liberado, por exemplo, por uma serpente, está destinado justamente ao objetivo do animal em situação de defesa. Os efeitos das toxinas são muito mais difusos e inespecíficos. Assim como a radiação, afetam indiscriminadamente tudo e a todos em seu caminho.
Frente aos agrotóxicos, uma criança que brinca na grama é tão vulnerável quanto as plantas indesejadas tratadas como ervas daninhas, como os insetos que habitam esse ecossistema, como os pássaros que se aproximam para bicar sementes ou insetos...
A toxicidade ontológica é o efeito conjunto do lixão, onde todos e tudo são desindividualizados, expostos, indiferente e indiferenciadamente alvejados com uma força letal lenta. É o efeito palpável do despejo.
Você nasceu em Moscou, mas desde jovem mora fora da Rússia, atualmente na Espanha. Como observa a guerra na Ucrânia? Considera que a Europa corre o risco de voltar a um novo período de conflitos internos?
Abordei a trágica situação que é a guerra na Ucrânia em várias oportunidades, às vezes, em colaboração com um filósofo ucraniano residente em Kiev, Anton Tarasyuk. A guerra na Ucrânia faz parte da incapacidade de Putin em aceitar o colapso da URSS, em 1991, o evento que ele sempre chamou de “o maior desastre geopolítico do século XX”, muito antes da recente invasão não provocada e da agressão genocida. Contudo, não considero Putin o único culpado.
Em todo caso, Putin é um sintoma da condição que afeta grande parte da população russa, incapaz de chorar a perda do império (do antigo império czarista ao reformado na União Soviética). Nesse sentido, a guerra iniciada pela Rússia na Ucrânia deveria ser um alerta aos estados europeus, em particular às antigas potências coloniais, como Espanha, Portugal, Reino Unido, França, Itália...
Embora esteja em andamento, o trabalho de luto pela perda do império precisa ser alcançado. Não há saídas fáceis, como glorificar e fetichizar francamente partes das ex-colônias: as fontes da “culpa branca” que está produzindo tal alívio e prazer inconsciente em si devem ser pensadas, analisadas e abordadas.
Há décadas, a União Europeia realiza crescentes esforços ambientais. No entanto, não parecem suficientes, como é possível deduzir do dilema em torno da dependência do fornecimento de combustíveis fósseis da Rússia. O trabalho está em boa direção? Ou a aposta no reforço nuclear, liderado por países como a França, aponta para uma época em que a natureza voltará a ser esquecida no velho continente?
É uma loucura afirmar que o desastre ambiental pode ser resolvido por meio de uma transição verde para fontes de energia nuclear. Nem mesmo em matéria de segurança técnica nas usinas nucleares que sofreram grandes acidentes, como nos casos de Three Miles Island, Chernobyl e Fukushima.
Também não estou me referindo aos problemas de armazenamento de materiais nucleares usados. Ao contrário, é que nosso modelo predominante de produção e consumo de energia permanece inalterado, independentemente das fontes de combustível que sejam favorecidas em determinado momento da história.
Esse modelo é invariavelmente extrativo-destrutivo: nós nos esforçamos para extrair a potencialidade que abriga o atual, descartando aquilo do qual é extraído como uma casca inútil. O cuspir do átomo, neste plano filosófico, não é diferente do fracking ou da combustão de materiais para produzir energia.
Além de economistas, cientistas e políticos que dirijam a transição de um tipo de extração para outro, precisamos de filósofos e estudiosos em humanidades energéticas para fazer as difíceis perguntas sobre o que realmente é a energia e quais paradigmas energéticos são concebíveis ou desejáveis.
Acredita que o ambientalismo continuará tendo futuro em tempos líquidos e vertiginosos?
Inegavelmente, o ambientalismo e o pensamento da ecologia, hoje em dia, estão tingidos de tons reativos. Se há um interesse tão intenso por essas questões, é porque um mundo habitável está a ponto de se tornar inabitável. Está se tentando dizer, com Hegel, que os fenômenos aparecem em toda a sua clareza aos olhos da mente, quando estão a ponto de desaparecer, quando, muito maduros, já estão a ponto de decair e morrer.
Essa ideia parece se aplicar ao ambientalismo e ao pensamento ecológico: estão no seu melhor porque seu objeto está à beira do colapso. A boa notícia é que não há perigo de que o ativismo e o pensamento essencialmente reativo desapareçam: os desastres naturais vão se intensificar, dando lugar a mais tuítes e lamentações que simplesmente mudarão de uma região geográfica para outra.
A má notícia é que por mais urgente que seja nossa reação, não nos leva a desenvolver uma noção de ecologia positiva. No lugar de tal noção, encontramos visões de harmonia idílica, uma malha indiferenciada ou emaranhados, uma palavra de moda ideológica atual que tenta compensar a ausência de pensamento.
Em resumo, estamos presos entre uma versão catastrófica da natureza e uma versão idealista que canta louvores ao totalmente contrário. Uma noção positiva de ecologia, que ainda está para ser pensada, não evitará a negatividade que marcou a noção catastrófica. Por outro lado, não partirá de um sentimento reativo, por mais agitado que esteja, para pensar com o mundo ou mundos habitados por seres humanos e não humanos.
A metafísica permanece viva na filosofia? Até que ponto pensadores e cientistas devem cooperar para o desenvolvimento do conhecimento?
A metafísica está viva nos produtos de nossas indústrias. Conforme destaco em El vertedero filosófico, as ruínas dos sistemas de pensamento passados, da antiga Grécia e Roma às tradições chinesas, do gnosticismo aos Vedas indianos, não são os magníficos naufrágios de mundos de outrora, são os escombros que se cristalizaram em toxicidade ontológica.
A verdade do platonismo (note que não estou dizendo “de Platão”) é o urânio empobrecido. A realização histórica do confucionismo é a guerra contra a natureza que esconde o céu sobre Pequim dos moradores da cidade ou que o lança sobre eles com a sopa de produtos químicos que o ar se tornou. A metafísica também está viva sob a aparência de ideologias, do chamado senso comum que (em si, como um lixão) contém traços de ideias metafísicas sem conexão com suas fontes ou os contextos em que surgiram.
Ao mesmo tempo, não devemos confundir o conhecimento e o pensamento com a metafísica. De fato, o conhecimento e o pensamento só têm futuro na medida em que são não-metafísicos ou pós-metafísicos. Aqui, as colaborações de pensadores e cientistas são cruciais, mas sempre devemos nos perguntar “para quê?”, em relação ao desenvolvimento colaborativo do conhecimento.
Devem ser buscados para tornar as indústrias mais competitivas ou o mundo mais habitável? Visam estudar o “outro” e inclusive nós mesmos em prol de uma melhor e mais efetiva manipulação dos estudados ou para aprender com o outro, encontrar-se com o outro “no meio do caminho”, como reflito em Plant-Thinking a propósito de nosso outro vegetal?
No meu caso, busco estudos colaborativos com cientistas de plantas, concentrando-me em temas de inteligência vegetal, porque, em primeira e última instância, tais estudos reconhecem e confirmam a condição das plantas como sujeitos, em vez de meros objetos passivos de conhecimento. Esses esforços são contínuos e inesgotáveis, verdadeiramente sustentáveis e sustentados pela alteridade de nosso outro vegetal, incluindo nossa própria vegetalidade em grande medida não reconhecida.
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“Diferente dos seres humanos, as plantas sempre sustentam e promovem a diversidade”. Entrevista com Michael Marder - Instituto Humanitas Unisinos - IHU