"Em um contexto de guerras culturais e de ameaça às políticas de igualdade racial e reparação, o Carnaval se consolida como uma arena de luta por legitimidade social e direitos. Os desfiles têm a possibilidade de ser, por um lado, crônica, ou mesmo denúncia de situações da cidade, do país e do mundo, e por outro, projetos utópicos em movimento de construção de alternativas".
O artigo é de Lucas Bártolo, antropólogo, doutorando do PPGAS/MN/UFRJ e pesquisador colaborador do ISER, e Renata Menezes, antropóloga, professora associada do PPGAS/MN/UFRJ, pesquisadora do CNPq e Cientista do Nosso Estado / Faperj.
Depois de mais de dois anos, as escolas de samba do Rio de Janeiro retornaram à passarela em abril, uma semana após o término da quaresma. O calendário, bastante distinto daquele consagrado, indica as dificuldades provocadas pela pandemia, que implicaram no adiamento da festa. Ainda afetados por essa experiência carnavalesca que tanto aguardávamos, mas já com algum distanciamento um mês depois do seu acontecimento, tecemos alguns comentários sobre os enredamentos entre religião e cultura produzidos nos desfiles das escolas de samba deste ano.
Na celebração do retorno do Carnaval, o enredo da Unidos do Viradouro anunciou que “não há tristeza que possa suportar tanta alegria”. Porém, a felicidade do reencontro não excluiu as dimensões de luto e de luta, já que foram homenageadas as pessoas do mundo do samba falecidas pela Covid e os profissionais que se sustentam através do Carnaval, bastante prejudicados com o período de suspensão. Constatada a exuberância dos desfiles, verdadeiramente arrebatadores, podemos entendê-los como um ritual de expurgo da pandemia, em busca de trazer o fluxo da vida de volta à normalidade - ou quase, visto que o vírus ainda circula.
O fato de ter sido o primeiro Carnaval após o longo interregno - e ainda ocorrendo fora de época - já seria suficiente para torná-lo histórico. Porém, ele parece ter se singularizado também por um outro aspecto. Na repercussão após os desfiles, a mídia e as redes sociais destacaram seu caráter "afrocentrado". Difundiu-se uma impressão geral de que nunca desfilaram tantos orixás pelo Sambódromo da Av. Marquês de Sapucaí, no centro da cidade. O comentário do cantor Carlinhos Brown, um dos autores do samba-enredo deste ano da Mocidade Independente de Padre Miguel, em homenagem a Oxóssi, consagrou essa percepção. Na transmissão televisiva, ele disse que “no Carnaval deste ano ninguém fez enredo. Quem fez enredo foram os orixás” e “Viva a nova reafricanização do Brasil. Que entendam que esse é um caminho de paz”.
No Grupo Especial, Mocidade e Grande Rio apresentaram enredos sobre orixás específicos, respectivamente Oxóssi e Exu, mas as religiões afro-brasileiras também foram destaque em pelo menos outros quatro enredos que exaltavam a cultura negra: Empretecer o pensamento é ouvir a voz da Beija-Flor (Beija-Flor de Nilópolis); Resistência (Acadêmicos do Salgueiro); Ka ríba tí ÿe — Que nossos caminhos se abram (Paraíso do Tuiutí) e Igi Osè – Baobá (Portela). A vitória da Acadêmicos do Grande Rio, reconhecida pelo público e pela crítica como “campeã incontestável”, com um desfile sobre Exu, evidencia a força desta presença. Ao tratar das múltiplas facetas do orixá, a escola buscou desconstruir estereótipos, valorizar as religiões de matrizes africanas e denunciar a intolerância religiosa.
A exaltação ao afro, ou ao afro religioso, se não é uma novidade na passarela, também não deve ser banalizada. Há sete anos, desenvolvemos, no Laboratório de Antropologia do Lúdico e do Sagrado - Ludens, do Museu Nacional, pesquisas que abordam as relações entre religião e cultura no universo carioca das escolas de samba e sabemos que referências - explícitas ou implícitas - às religiões afro podem ser consideradas uma constante. Porém, é importante entender o que está em jogo com essa visibilização e reiteração na conjuntura atual.
Se referências generalizadas ao universo religioso já estão naturalizadas no imaginário da festa, chama atenção que enredos com temática religiosa tenham sido apresentados pontualmente e de forma intermitente pelas escolas do Grupo Especial até 2016; mas que desde então não houve um Carnaval sem que pelo menos uma delas abordasse a religião como tema central. Antes disso, o último enredo havia sido em 2012, quando a Portela falou das festas religiosas da Bahia (...E o povo na rua cantando... É feito uma reza, um ritual…). Ao longo deste século, passaram pela avenida 20 enredos centrados em temas religiosos, sendo 14 só nos últimos seis carnavais.
Essa tendência temática em alguma medida está relacionada à crise econômica que a partir de 2015 freou a questão dos patrocínios dos enredos, por vezes envolvendo uma comercialização pouco criteriosa que definiria as narrativas a partir da negociação com os financiadores. O fim da “era dos enredos patrocinados” abriu caminho para uma nova geração de artistas carnavalescos e permitiu o desenvolvimento de temas autorais sensíveis à identidade das agremiações e às questões sociais e políticas contemporâneas. Ao olhar para os enredos religiosos desses últimos anos, como o da Mangueira em 2017 (Só com a ajuda do santo) e o da Grande Rio em 2020 (Tatalondirá – Canto do Caboclo no Quilombo de Caxias), percebemos que expressões como africanidade, ancestralidade, religiosidade, brasilidade, sincretismo, resistência, tolerância e respeito, compõem uma espécie de campo semântico a ser materializado e performado pelas múltiplas formas expressivas dos cortejos.
Por uma lente mais sociológica, parece-nos que o aumento dos enredos de temática religiosa que mobilizem esse léxico está relacionado à reconfiguração pela qual passa o campo religioso brasileiro, caracterizada pela diminuição do número de católicos, pelo crescimento de evangélicos e dos sem religião na população, pelo surgimento de novas formas de adesão religiosa no país e pelos ataques de intolerância às religiões afro. E ao conjunto de transformações socioculturais, políticas, econômicas associadas a essa reconfiguração.
O mundo do carnaval foi atravessado pelos efeitos dessas mudanças principalmente durante o mandato do prefeito Marcelo Crivella (2017-2020), liderança política do campo evangélico neopentecostal, que impôs uma série de restrições aos desfiles e ao samba em geral. A reação dos sambistas passou por acusações de intolerância e racismo religioso e pela defesa das tradições de matriz africana como um dos pilares das escolas de samba, o que se daria também pela valorização desse universo simbólico por meio dos enredos – além de chegar a disputar os próprios sentidos do cristianismo, como propôs a Mangueira em 2020 com o enredo A verdade vos fará livre.
O que observamos nesses últimos carnavais e que encontrou o seu auge neste 2022, pode ser considerado um processo de reafricanização, empretecimento e “religiosificação” da festa considerada como representativa da cultura popular, carioca e brasileira. Em um contexto de guerras culturais e de ameaça às políticas de igualdade racial e reparação, o Carnaval se consolida como uma arena de luta por legitimidade social e direitos. Os desfiles têm a possibilidade de ser, por um lado, crônica, ou mesmo denúncia de situações da cidade, do país e do mundo, e por outro, projetos utópicos em movimento de construção de alternativas. Eles não se reduzem a reverberar ou espelhar tensões e questões contemporâneas, mas são capazes de produzir inflexões significativas no debate público e no imaginário social. Enquanto arenas, travam-se nos desfiles como que micro-batalhas, onde narrativas de Brasil são encenadas e performadas, tecidas e retecidas, bem como apostas de futuro são feitas, por meio das pessoas, em sua maioria negras, que dão corpo a essa forma cultural impactante que é a escola de samba.
O momento de euforia da festa, portanto, não significa algo alienante, ou apaziguador. Ele é um espaço-tempo de produção e circulação de chaves de leitura do mundo, de geração de novos focos de enquadramentos, de criações utópicas, de potências simbólicas e performativas, que podem adquirir maior força, ou maior adesão, do que aquilo que está posto. Ou seja, a festa não é necessariamente a mudança imediata da estrutura, mas pode ser sua desestabilização.
Não por acaso, como nos ensinou a Grande Rio a partir da visão de mundo das comunidades de matriz africana, o Carnaval é de Exu: energia transformadora, constante movimento, complexa comunicação, possibilidade de brincar com a vida e gerar vitalidade. Ambivalente e poderosa festa, que nos permite acessar o lúdico como via de transformação da crise em criação e do caos numa nova ordem.