06 Mai 2022
“Conversar com Kirill é mais chato do que olhar golfe na televisão”. E se ele diz isso, talvez haja alguma verdade. Andrei Kuraev, protodiácono da Igreja Ortodoxa, professor de teologia e filosofia, sessenta anos, foi durante muito tempo o principal colaborador do patriarca, o homem que construiu os fundamentos de sua doutrina. Até 24 de fevereiro.
A reportagem é de Marco Imarisio, publicada por Corriere della Sera, 05-05-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Naquele dia, uma das figuras religiosas mais amadas e respeitadas da Rússia tornou-se um pária para sua própria comunidade eclesiástica. Porque se posicionou de forma clara contra a chamada Operação Militar Especial, com palavras que marcavam uma escolha de lado. Ele já havia passado para a oposição, mas aquele foi seu passo de despedida, imposto de cima. As semelhanças entre a autoridade temporal máxima russa e a política também se aplicam aos métodos. No dia seguinte, Kirill declarou aberto o processo de privação de todo grau eclesiástico.
Kuraev voltou a se manifestar ontem. Com tons nada suaves, pelo contrário. “O Papa Francisco expressou conceitos muito profundos durante a entrevista ao Corriere della Sera. E tentou fazê-lo também durante a conversa com o patriarca, durante a qual Kirill se limitou a dar a costumeira aula de propaganda política. É por isso que é chato conversar com ele. Não escuta".
O homem que olha para aquela parcela não pequena de monges que vivem com desconforto as declarações como comandante em chefe do patriarca, não considera casual que o Papa tenha falado no dia seguinte a um sermão na Catedral da Anunciação em Moscou, onde Kirill afirmou que a Rússia não atacou ninguém e não quer lutar contra ninguém. "Parece uma piada do Senhor", diz Kuraev. “Ele literalmente colocou um espelho na frente de nossos eslavófilos convencidos de que os católicos têm o ‘culto da personalidade’ e que tudo naquelas partes se concentra no poder e no dinheiro. Agora, com um Pontífice que humildemente propõe vir a Moscou em nome da paz, entendem que existe um contraste de personalidade entre os dois. E além disso, a sua frase sobre o coroinha é a mais pungente. Ao pronunciá-la publicamente, o Papa está dizendo para excluir Kirill do grupo de seus possíveis interlocutores”.
Há também uma reação importante da frente leiga. O Novaya Gazeta, jornal dirigido pelo ganhador do Prêmio Nobel da Paz Dmitry Muratov, forçado a suspender as publicações após a aprovação da nova lei de censura, mas ainda ativo na web, publicou ontem um editorial assinado por Alexei Malyutin, seu especialista em religiões. “Entre Francisco e Kirill foi ao ar um conflito sobre valores. Um queria a paz, o outro falava sobre o tempo de voo dos mísseis lançados sobre a Ucrânia. Os detalhes daquela falta de diálogo surpreendem mesmo aqueles acostumados à habitual retórica militarista do chefe da Igreja Ortodoxa”.
Mas a delicadeza de uma eventual visita de Francisco a Moscou fica ainda mais evidente pelas reações ao seu anúncio. A União de Cidadãos Ortodoxos e a Associação de Peritos Ortodoxos, duas organizações radicais de direita da Igreja que até 24 de fevereiro eram consideradas marginais, mas que agora apoiam fervorosamente as teses do Kremlin e de Kirill, prometeram ao papa "uma recepção dura". Em vez disso, o chefe da União Mundial dos velhos crentes, Leonid Sevastianov, considerou sua viagem "necessária". "Francisco deve saber que encontrará muito mais amigos aqui do que possa imaginar." Não existe uma única Igreja. Nem mesmo na Rússia.
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“O patriarca não escuta. Com o Papa deu aula de propaganda” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU