21 Abril 2022
É na mais feroz humilhação do corpo que está o triunfo de Jesus: aquela pedra angular é a terrível tampa do túmulo, mas é também a representação explícita do advento disruptivo de um messias que é o contrário do que se esperava. Pedra angular, mas também pedra de tropeço.
A análise é do historiador da arte italiano Tomaso Montanari, professor da Universidade Federico II de Nápoles. O artigo foi publicado na revista Vita Pastorale, de fevereiro de 2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A “Deposição” para a Igreja Nova em Roma (hoje nos Museus Vaticanos) talvez seja o único quadro de Caravaggio que sempre gozou de um sucesso incondicional.
“Deposizione”, 1602-1604, Caravaggio, Pinacoteca Vaticana (Foto: Wikimedia Commons)
Neste caso, Caravaggio se inspira na mais eleita e na mais áulica das tradições figurativas: no corpo abandonado de Jesus, lemos referências diretas à Pietà vaticana de Michelangelo, à Deposição Baglione de Rafael na Galeria Borghese, até referências mais ou menos explícitas ao Pontormo di Santa Felicita.
Por sua vez, essa pintura teve um grande impacto. Rubens está entre os primeiros que a copiaram, em um ininterrupto seguimento pelo menos até Davi: na sua Morte de Marat o braço (que pende sem vida) do revolucionário assassinado na banheira cita diretamente o de Caravaggio, que por sua vez se referia a Rafael, em uma tradição que remonta aos antigos sarcófagos com a morte de Meleagro.
Um Caravaggio atento à tradição, portanto: mas que não renuncia em nada à sua fortíssima originalidade, à sua concepção personalíssima, ao seu modo novo de tocar a emoção do espectador; pelo menos tanto quanto chama a atenção dos seus olhos, da sua cabeça.
O quadro representa o momento final da Paixão: “Nicodemos também foi. Nicodemos era aquele que antes tinha ido de noite encontrar-se com Jesus. Levou mais de trinta quilos de uma mistura de mirra e resina perfumada. Então eles pegaram o corpo de Jesus e o enrolaram com panos de linho junto com os perfumes, do jeito que os judeus costumam sepultar. No lugar onde Jesus fora crucificado havia um jardim, onde estava um túmulo, em que ninguém ainda tinha sido sepultado. Então, por causa do dia de preparativos para a Páscoa e porque o túmulo estava perto, lá colocaram Jesus” (Jo 19,39-42; trad. Bíblia Pastoral).
Caravaggio imagina que o espectador – nós mesmos que na Igreja Nova vemos apenas uma cópia, mas ainda mais o sacerdote que celebrava naquele altar – se encontra de algum modo no sepulcro: é uma cena vista a partir de dentro do túmulo, onde o corpo de Jesus é descido, lentamente.
Fora da ficção, no espaço real, o que vemos? Vemos que o corpo de Cristo desce sobre o altar: uma alusão direta à consagração eucarística. Assim como a presença real na hóstia e no cálice desce sobre aquele altar, assim também aquele corpo desce lentamente no nosso espaço real.
De onde vinha essa ideia? É possível lembrar que, precisamente no momento em que Caravaggio pinta esta obra, a velha basílica constantiniana de São Pedro tinha como local de conservação da eucaristia um tabernáculo que Donatello havia esculpido para uma capela dos Palácios Apostólicos, a capela Parva, e que depois foi transferido para a basílica. Quando Caravaggio ia a São Pedro, portanto, o tabernáculo principal, o foco do culto eucarístico na principal igreja papal, era essa herança da escultura do século XV (hoje no Museu do Tesouro de São Pedro). Donatello imagina uma espécie de grande arco triunfal, em cujo fórnice central é posto o Sacramento, e finge que no ático do arco se estende um pano no qual aparece a cena da Deposição.
Pois bem, alguns traços salientes da invenção de Caravaggio (os braços erguidos para o céu de Maria de Cléofas, o corpo encurvado e os traços somáticos daquele que com toda a evidência é José de Arimateia, e a própria aparência da virgem, da qual Longhi notava o estranho aspecto de pleureuse medieval, de freira de casa: com aquele estranho véu), estão presentes primeiro na Deposição que Donatello havia esculpido no tabernáculo vaticano.
Portanto, é em Donatello que Caravaggio se inspira para a sua obra: e o fato de ele ter se inspirado em um tabernáculo eucarístico permite entender por que ele teve a ideia de ligar tão fortemente o que acontece no quadro e o que acontece no altar na consagração.
O seu biógrafo, Giovan Pietro Bellori, diz que essa é uma das melhores obras que saíram do pincel de Merisi: “As figuras estão situadas em cima de uma pedra, na abertura do sepulcro pode-se ver no meio o sagrado corpo”. Como sempre em Caravaggio, o quadro se resolve em um grande raciocínio sobre o corpo: neste caso, sobre o corpo de Jesus, na sua materialidade individual, mas também na sua transfiguração eucarística.
O sagrado corpo é segurado por Nicodemos, ou José de Arimateia, “desde os pés abraçando-o debaixo dos joelhos, e, ao abaixar as coxas, as pernas aparecem. A partir disso, São João coloca o braço nas costas do redentor, e sua face e seu peito permanecem estendidos, pálidos até à morte, com o braço pendendo com o lençol”.
Essa descida ao túmulo é como uma cena congelada: congelada em uma série de tomadas que parecem mostrar um único corpo descendo em câmera lenta. E, em vez disso, vemos nada menos do que cinco vivos e um morto: um movimento de corpos que colapsa sobre aquela que talvez seja a verdadeira protagonista do quadro, essa grande pedra, que vemos pela lateral, em primeiro plano.
O que é? É a pedra que fechará o sepulcro de Jesus, é claro: aquela pedra que depois saltará durante a ressurreição. Um símbolo da morte derrotada, do triunfo da vida: mas essa pedra vista de lado é também uma poderosa alusão ao Cristo, pedra angular. O Homem das dores rejeitado pelos homens e humilhado, a pedra descartada, que em vez disso se torna a pedra fundamental.
É na mais feroz humilhação do corpo que está o triunfo de Jesus: aquela pedra angular é a terrível tampa do túmulo, mas é também a representação explícita do advento disruptivo de um messias que é o contrário do que se esperava. Pedra angular, mas também pedra de tropeço. E, naturalmente, é também uma alusão à pedra do altar: porque Cristo é ao mesmo tempo altar, vítima e sacerdote.
O último que se torna o primeiro, o corpo mutilado que está destinado a ressurgir: é nesse núcleo da revelação cristã que Caravaggio se reconhece profundamente. Ele que, dos corpos martirizados pelo poder, havia feito uma nova religião.
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Jesus descido ao sepulcro. Artigo de Tomaso Montanari - Instituto Humanitas Unisinos - IHU